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O 18 BRUMÁRIO-LUÍS BONAPARTE

O 18 Brumário de Luis Bonaparte
KARL MARX
ÍNDICE
Apresentação
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Notas
Capítulo I
Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história
do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como
tragédia, a segunda como farsa. Caussidière por Danton, Luís Blanc por Robespierre, a Montanha de
1845-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio. E a mesma caricatura ocorre nas
circunstâncias que acompanham a segunda edição do Dezoito Brumário! Os homens fazem sua própria
história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas
com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações
mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em
revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise
revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado, tomando-lhes
emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar e nessa linguagem
emprestada. Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de 1789-1814 vestiu-se
alternadamente como a república romana e como o império romano, e a Revolução de 1848 não soube
fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793-1795. De maneira
idêntica, o principiante que aprende um novo idioma, traduz sempre as palavras deste idioma para sua
língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no
emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela.
O exame dessas conjurações de mortos da história do mundo revela de pronto uma diferença marcante.
Camile Desmoulins, Danton, Robespierre, Saint-Just, Napoleão, os heróis, os partidos e as massas da
velha Revolução Francesa, desempenharam a tarefa de sua época, a tarefa de libertar e instaurar a
moderna sociedade burguesa, em trajes romanos e com frases romanas. Os primeiros reduziram a
pedaços a base feudal e deceparam as cabeças feudais que sobre ela haviam crescido. Napoleão, por seu
lado, criou na França as condições sem as quais não seria possível desenvolver a livre concorrência,
explorar a propriedade territorial dividida e utilizar as forcas produtivas industriais da nação que tinham
sido libertadas; além das fronteiras da França ele varreu por toda parte as instituições feudais, na medida
em que isto era necessário para dar à sociedade burguesa da França um ambiente adequado e atual no
continente europeu. Uma vez estabelecida a nova formação social, os colossos antediluvianos
desapareceram, e com eles a Roma ressurrecta - os Brutus, os Gracos, os Publícolas, os tribunos. os
senadores e o próprio César. A sociedade burguesa, com seu sóbrio realismo, havia gerado seus
verdadeiros intérpretes e porta-vozes nos Says, Cousins, Royer-Coilards, Benjamm Constants e Guizots;
seus verdadeiros chefes militares sentavam-se atrás das mesas de trabalho e o cérebro de toucinho de
Luís XVIII era a sua cabeça política. Inteiramente absorta na produção de riqueza e na concorrência
pacífica, a sociedade burguesa não mais se apercebia de que fantasmas dos tempos de Roma haviam
velado seu berço. Mas, por menos heróica que se mostre hoje esta sociedade, foi não obstante necessário
heroísmo, sacrifício, terror, guerra civil e batalhas de povos para torná-la uma realidade. E nas tradições
classicamente austeras da república romana, seu5 gladiadores encontraram os ideais e as formas de arte,
as ilusões de que necessitavam para esconderem de si próprios as limitações burguesas do conteúdo de
suas lutas e manterem seu entusiasmo no alto nível da grande tragédia histórica. Do mesmo modo, em
outro estágio de desenvolvimento, um século antes, Cromwell e o povo inglês haviam tomado
emprestado a linguagem, as paixões e as ilusões do Velho Testamento para sua revolução burguesa. Uma
vez alcançado o objetivo real, uma vez realizada a transformação burguesa da sociedade inglesa, Locke
suplantou Habacuc.
A ressurreição dos mortos nessas revoluções tinha, portanto, a finalidade de glorificar as novas lutas e
não a de parodiar as passadas; de engrandecer na imaginação a tarefa a cumprir, e não de fugir de sua
solução na realidade; de encontrar novamente o espírito da revolução e não de fazer o seu espectro
caminhar outra vez.
De 1848 a 1851 o fantasma da velha revolução anda em todos os cantos: desde Marrast, o républicain en
gants jaunes(1), que se disfarça no velho Bailly, até o aventureiro de aspecto vulgar e repulsivo que se
oculta sob a férrea máscara mortuária de Napoleão. Todo um povo que pensava ter comunicado a si
próprio um forte impulso para diante, por meio da revolução, se encontra de repente trasladado a uma
época morta, e para que não possa haver sombra de dúvida quanto ao retrocesso, surgem novamente as
velhas datas, o velho calendário, os velhos nomes, os velhos éditos que já se haviam tornado assunto de
erudição de antiquário, e os velhos esbirros da lei que há muito pareciam defeitos na poeira dos tempos.
A nação se sente como aquele inglês louco de Bedlam vivendo na época dos antigos faraós e
lamentando-se diariamente do trabalho pesado que deve executar como garimpeiro nas minas de ouro da
Etiópia, emparedado na prisão subterrânea, uma lâmpada de luz mortiça presa à testa, o feitor dos
escravos atrás dele com um longo chicote, e nas saídas a massa confusa de mercenários bárbaros, que
não compreendem nem aos forçados das minas e nem se entendem entre si, pois não falam uma língua
comum. "E me impuseram tudo isto" - suspira o louco - "a mim, um cidadão inglês livre, para que
produza ouro para os faraós!" "Para que pague as dívidas da família Bonaparte" - suspira a nação
francesa. O inglês, enquanto esteve em seu juízo perfeito, não podia livrar-se da idéia fixa de conseguir
ouro. Os franceses, enquanto estiveram empenhados em uma revolução, não podiam livrar-se da
memória de Napoleão, como provaram as eleições de 10 de dezembro. Diante dos perigos da revolução,
ansiavam por voltar à abundância do Egito; e o 2 de Dezembro de 1851 foi a resposta. Não só fizeram a
caricatura do velho Napoleão, como geraram o próprio velho Napoleão caricaturado, tal como deve
aparecer necessariamente em meados do século XIX.
A revolução social do século XIX não pode tirar sua poesia do passado, e sim do futuro. Não pode iniciar
sua tarefa enquanto não se despojar de toda veneração supersticiosa do passado. As revoluções anteriores
tiveram que lançar mão de recordações da história antiga para se iludirem quanto ao próprio conteúdo. A
fim de alcançar seu próprio conteúdo, a revolução do século XIX deve deixar que os mortos enterrem
seus mortos. Antes a frase ia além do conteúdo; agora é o conteúdo que vai além da frase.
A Revolução de Fevereiro foi um ataque de surpresa, apanhando desprevenida a velha sociedade, e o
povo proclamou esse golpe inesperado como um feito de importância mundial que introduzia uma nova
época. A 2 de dezembro, a Revolução de Fevereiro é escamoteada pelo truque de um trapaceiro, e o que
parece ter sido derrubado já não é a monarquia e sim as concessões liberais que lhe foram arrancadas
através de séculos de luta. Longe de ser a própria sociedade que conquista para si mesma um novo
conteúdo, é o Estado que parece voltar à sua forma mais antiga, ao domínio desavergonhadamente
simples do sabre e da sotaina. Esta é a resta que dá ao coup de main(2) de fevereiro de 1848 o coup de
tête(3) de dezembro de 1851. O que se ganha facilmente se entrega facilmente. O intervalo de tempo,
porém, não passou sem proveito. Entre os anos de 1848 e 1851 a sociedade francesa supriu - e por um
método abreviado, por ser revolucionário - estudos e conhecimentos que em um desenvolvimento
regular, de lição em lição, por assim dizer, teriam tido que preceder a Revolução de Fevereiro se esta
devesse constituir mais do que um estremecimento da superfície. A sociedade parece ter agora
retrocedido para antes do seu ponto de partida; na realidade, somente hoje ela cria o seu ponto de partida
revolucionário, isto é, a situação, as relações, as condições sem as quais a revolução moderna não adquire
um caráter sério.
As revoluções burguesas, como as do século XVIII, avançam rapidamente de sucesso em sucesso; seus
efeitos dramáticos excedem uns aos outros; os homens e as coisas se destacam como gemas fulgurantes;
o êxtase é o estado permanente da sociedade; mas estas revoluções têm vida curta; logo atingem o auge,
e uma longa modorra se apodera da sociedade antes que esta tenha aprendido a assimilar serenamente os
resultados de seu período de lutas e embates. Por outro lado, as revoluções proletárias, como as do século
XIX, se criticam constantemente a si próprias, interrompem continuamente seu curso, voltam ao que
parecia resolvido para recomeçá-lo outra vez, escarnecem com impiedosa consciência as deficiências,
fraquezas e misérias de seus primeiros esforços, parecem derrubar seu adversário apenas para que este
possa retirar da terra novas forças e erguer-se novamente, agigantado, diante delas, recuam
constantemente ante a magnitude infinita de seus próprios objetivos até que se cria uma situação que
toma impossível qualquer retrocesso e na qual as próprias condições gritam:
Hic Rhodus, hic salta!
Aqui está Rodes, salta aqui!
Quanto ao resto, qualquer observador medianamente competente, mesmo que não tivesse seguido passo a
passo a marcha dos acontecimentos na França, deve ter pressentido que a revolução estava fadada a um
terrível fiasco. Bastava ouvir os jactanciosos latidos de vitória com que os senhores democratas se
congratulavam pelas conseqüências milagrosas que esperavam dos acontecimentos do segundo domingo
de maio de 1852. O segundo domingo de maio de 1852 tornara-se em suas cabeças uma idéia fixa, um
dogma, como na cabeça dos quiliastas o dia em que Cristo deveria ressurgir e que assinalaria o começo
da era milenar. Como sempre, a fraqueza se refugiara na crença nos milagres, imaginava o inimigo
vencido, quando tinha sido afastada apenas em imaginação, e perdia toda compreensão do presente em
uma glorificação passiva do que o futuro reservava e dos feitos que guardava in petto mas que não
considerava oportuno revelar ainda. Os heróis que procuram refutar sua comprovada incapacidade
oferecendo-se apoio mútuo e reunindo-se em um bloco haviam amarrado suas trouxas, recolhido suas
coroas de louros adquiridas a crédito e estavam nesse momento empenhados em descontar no mercado
de letras de cambio as repúblicas in partibus para as quais já tinham, no silêncio de suas almas modestas,
previdentemente organizado o corpo governamental. O 2 de Dezembro os surpreendeu como um raio em
céu azul e os povos que, em períodos de depressão pusilânime, deixam de boa vontade sua apreensão
anterior ser afogada pelos que gritam mais alto, terão talvez se convencido de que já se foi o tempo em
que o grasnar dos gansos podia salvar o Capitólio.
A Constituição, a Assembléia Nacional, os partidos dinásticos, os republicanos azuis e vermelhos, os
heróis da África, o trovão vibrado da tribuna, a cortina de relâmpagos da imprensa diária, toda a
literatura, os políticos de renome e os intelectuais de prestígio, o código civil e o código penal, a liberte,
égalité, fraternité e o segundo domingo de maio de 1852 - tudo desaparecera como uma fantasmagoria
diante da magia de um homem no qual nem seus inimigos reconhecem um mágico. O sufrágio universal
parece ter sobrevivido apenas por um momento, a fim de fazer, de próprio punho, o seu último
testamento perante os olhos do mundo inteiro e declarar em nome do próprio povo: Tudo o que existe
merece perecer.
Não é suficiente dizer, como fazem os franceses, que a nação fora tomada de surpresa. Não se perdoa a
uma nação ou a uma mulher o momento de descuido em que o primeiro aventureiro que se apresenta as
pode violar. O enigma não é solucionado por tais jogos de palavras; é apenas formulado de maneira
diferente. Não se conseguiu explicar ainda como uma nação de 36 milhões de habitantes pôde ser
surpreendida e entregue sem resistência ao cativeiro por três cavalheiros de indústria.
Recapitulemos em linhas gerais as fases que atravessou a revolução francesa de 24 de fevereiro de 1848
a dezembro de 1851.
Três períodos principais se destacam: o período de fevereiro; de 4 de maio de 1848 a 28 de maio de
1849, o período da Constituição da República, ou da Assembléia Nacional Constituinte; de 28 de maio de
1849 a 2 de dezembro de 1851, o período da República Constitucional ou da Assembléia Nacional
Legislativa.
O primeiro período, de 24 de fevereiro - data da queda de Luís Filipe - até 4 de maio de 1848 - data da
instalação da Assembléia Constituinte ou seja, o período de fevereiro propriamente dito, pode ser
chamado o prólogo da revolução. Seu caráter foi oficialmente expressado pelo fato de que o governo por
ele improvisado apresentou-se como um governo provisório e, assim como o governo, tudo que era
proposto, tentado ou enunciado durante esse período era proclamado apenas provisório. Nada e ninguém
se atrevia a reclamar para si o direito de existência ou de ação real. Todos os elementos que haviam
preparado ou feito a revolução - a oposição dinástica, a burguesia republicana, a pequena burguesia
democrático-republicana e os trabalhadores social-democratas - encontram provisoriamente seu lugar no
governo de fevereiro.
Não podia ser de outra maneira. O objetivo inicial das jornadas de fevereiro era uma reforma eleitoral,
pela qual seria alargado o círculo dos elementos politicamente privilegiados da própria classe possuidora
e derrubado o domínio exclusivo da aristocracia financeira. Quando estalou o conflito de verdade, porém,
quando o povo levantou as barricadas, a Guarda Nacional manteve uma atitude passiva, o exército não
ofereceu nenhuma resistência séria e a monarquia fugiu, a república pareceu ser a seqüência lógica. Cada
partido a interpretava a seu modo. Tendo-a conquistado de armas na mão, o proletariado imprimiu-lhe
sua chancela e proclamou-a uma república social. Indicava-se, assim, o conteúdo geral da revolução
moderna, conteúdo esse que estava na mais singular contradição com tudo que, com o material
disponível, com o grau de educação atingido pelas massas, dadas as circunstâncias e condições
existentes, podia ser imediatamente realizado na prática. Por outro lado, as pretensões de todos os demais
elementos que haviam colaborado na Revolução de Fevereiro foram reconhecidas na parte de leão que
obtiveram no governo. Em nenhum período, portanto, encontramos uma mistura mais confusa de frases
altissonantes e efetiva incerteza e imperícia, aspirações mais entusiastas de inovação e um domínio mais
arraigado da velha rotina, maior harmonia aparente em toda a sociedade e mais profunda discordância
entre seus elementos. Enquanto o proletariado de Paris deleitava-se ainda ante a visão das amplas
perspectivas que se abriam diante de si e se entregava a discussões sérias sobre os problemas sociais, as
velhas forças da sociedade se haviam agrupado, reunido, concertado e encontrado o apoio inesperado da
massa da nação: os camponeses e a pequena burguesia, que se precipitaram de golpe sobre a cena política
depois que as barreiras da monarquia de julho caíram por terra.
O segundo período, de 4 de maio de 1848 até fins de maio de 1849, é o período da constituição, da
fundação da república burguesa. Imediatamente após as jornadas de fevereiro não só viu-se a oposição
dinástica surpreendida pelos republicanos, e estes pelos socialistas, como toda a França foi surpreendida
por Paris. A Assembléia Nacional, que se reunira a 4 de maio de 1848, sendo o resultado de eleições
nacionais, representava a nação. Era um protesto vivo contra as presunçosas pretensões das jornadas de
fevereiro e devia reduzir os resultados da revolução à escala burguesa. O proletariado de Paris, que
compreendeu imediatamente o caráter dessa Assembléia Nacional, tentou em vão, a 15 de maio, poucos
dias depois de sua instalação, anular pela força a sua existência, dissolvê-la, desintegrar novamente em
suas partes componentes, o organismo por meio do qual o ameaçava o espírito reacionário da nação.
Como se sabe, o 15 de Maio não teve outro resultado senão o de afastar Bianqui e seus camaradas, isto é,
os verdadeiros dirigentes do partido proletário da cena pública durante todo o ciclo que estamos
considerando.
À monarquia burguesa de Luís Filipe só pode suceder uma república burguesa, ou seja, enquanto um
setor limitado da burguesia governou em nome do rei, toda a burguesia governará agora em nome do
povo. As reivindicações do proletariado de Paris são devaneios utópicos, a que se deve por um paradeiro.
A essa declaração da Assembléia Nacional Constituinte o proletariado de Paris respondeu com a
Insurreição de junho, o acontecimento de maior envergadura na história das guerras civis da Europa. A
república burguesa triunfou. A seu lado alinhavam-se a aristocracia financeira, a burguesia industrial, a
classe média, a pequena burguesia, o exército, o lúmpen proletariado organizado em Guarda Móvel, os
intelectuais de prestígio, o clero e a população rural. Do lado do proletariado de Paris não havia senão ele
próprio. Mais de três mil insurretos foram massacrados depois da vitória e quinze mil foram deportados
sem julgamento. Com essa derrota o proletariado passa para o fundo da cena revolucionária. Tenta
readquirir o terreno perdido em todas as oportunidades que se apresentam, sempre que o movimento
parece ganhar novo impulso, mas com uma energia cada vez menor e com resultados sempre menores.
Sempre que uma das camadas sociais superiores entra em efervescência revolucionária o proletariado
alia-se a ela e, consequentemente, participa de todas as derrotas sofridas pelos diversos partidos, umas
depois das outras. Mas esses golpes sucessivos perdem sua intensidade à medida que aumenta a
superfície da sociedade sobre a qual são distribuídos. Os dirigentes mais importantes do proletariado na
Assembléia e na imprensa caem sucessivamente, vítima dos tribunais, e figuras cada vez mais equívocas
assumem a sua direção. Lança-se em parte a experiências doutrinárias, bancos de intercâmbio e
associações operárias, ou seja, a um movimento no qual renuncia a revolucionar o velho mundo com
ajuda dos grandes recursos que lhe são próprios, e tenta, pelo contrário, alcançar sua redenção
independentemente da sociedade, de maneira privada, dentro de suas condições limitadas de existência,
e, portanto, tem por força que fracassar. Parece incapaz de descobrir novamente em si a grandeza
revolucionária ou de retirar novas energias no vínculos que criou, até que todas as classes contra as quais
lutou em junho estão, elas próprias, prostradas ao seu lado. Mas pelo menos sucumbe com as honras de
uma grande luta histórico-universal; não só a França mas toda a Europa treme diante do terremoto de
junho, ao passo que as sucessivas derrotas das classes mais altas custam tão pouco que só o exagero
descarado do partido vitorioso pode fazê-las passar por acontecimentos, e são tanto mais ignominiosas
quanto mais longe do proletariado está o partido derrotado.
A derrota dos insurretos de junho preparara e aplainara, indubitavelmente, o terreno sobre a qual a
república burguesa podia ser fundada e edificada, mas demonstrara ao mesmo tempo que na Europa as
questões em foco não eram apenas de "república ou monarquia". Revelara que aqui república burguesa
significava o despotismo ilimitado de uma classe sobre as outras. Provara que em países de velha
civilização, com uma estrutura de classes desenvolvida, com condições modernas de produção, e com
uma consciência intelectual na qual todas as idéias tradicionais se dissolveram pelo trabalho de séculos -
a república significava geralmente apenas a forma política da revolução da sociedade burguesa e não sua
forma conservadora de vida, como por exemplo nos Estados Unidos da América, onde, embora já
existam classes, estas ainda não se fixaram, trocando ou permutando continuamente os elementos que as
constituem em um fluxo contínuo, onde os modernos meios de produção, em vez de coincidir com uma
superpopulação crônica, compensam, pelo contrário, a relativa escassez de cabeças e de braços, e onde,
finalmente, o febril movimento juvenil da produção material, que tem um novo mundo para conquistar,
não deixou nem tempo nem oportunidade de abolir a velha ordem de coisas.
Durante as jornadas de junho todas as classes e partidos se haviam congregado no partido da ordem,
contra a classe proletária, considerada como o partido da anarquia, do socialismo, do comunismo.
Tinham "salvo" a sociedade dos "inimigos da sociedade". Tinham dado como senhas a seu exércitos as
palavras de ordem da velha sociedade - "propriedade, família, religião, ordem - e proclamado aos
cruzados da contra-revolução: "Sob este signo Vencerás" A partir desse instante, tão logo um dos
numerosos partidos que se haviam congregado sob esse signo contra os insurretos de junho tenta
assenhorear-se do campo de batalha revolucionário em seu próprio interesse de classe, sucumbe ante o
grito: "Propriedade, família religião, ordem." A sociedade é salva tantas vezes quantas se contrai o
círculo de seus dominadores e um interesse mais exclusivo se impõe ao mais amplo. Toda reivindicação
ainda que da mais elementar reforma financeira burguesa, do liberalismo mais corriqueiro, do
republicanismo mais formal, da democracia mais superficial, é simultaneamente castigada como um
"atentado à sociedade" e estigmatizada como "socialismo". E, finalmente, os próprios pontífices da
"religião e da ordem" são derrubados a pontapés de seus trípodes píticos, arrancados de seus leitos na
calada da noite, atirados em carros celulares, lançados em masmorras ou mandados para o exílio; seu
templo é totalmente arrasado, suas bocas trançadas, suas penas quebradas, sua lei reduzida a frangalhos
em nome da religião, da propriedade, da família e da ordem. Os burgueses fanáticos pela ordem são
mortos a tiros nas sacadas de suas janelas por bandos de soldados embriagados, a santidade dos seu lares
é profanada, e suas casas são bombardeadas como diversão em nome da propriedade, da família, da
religião e da ordem. Finalmente, a ralé da sociedade burguesa constitui a sagrada falange da ordem e o
herói Crapulinski se instala nas Tulherias como o "salvador da sociedade".
Capítulo II
Retomemos o fio dos acontecimentos.
A história da Assembléia Nacional Constituinte a partir das jornadas de junho é a história do domínio e
da desagregação da fração republicana da burguesia, da fração conhecida pelos nomes de republicanos
tricolores, republicanos puros, republicanos políticos, republicanos formalistas etc.
Sob a monarquia burguesa de Luís Filipe essa fração formara a oposição republicana oficial e era,
consequentemente, parte integrante reconhecida do mundo político de então. Tinha seus representantes
nas Câmaras e uma considerável esfera de ação na imprensa. Seu órgão parisiense, o National, era
considerado tão respeitável, em seu gênero, como o Journal des Débats. Seu caráter correspondia à
posição que ocupava sob a monarquia constitucional. Não era uma fração da burguesia unida por grandes
interesses comuns e destacadas das outras por condições específicas de produção. Era um grupo de
burgueses de idéias republicanas - escritores, advogados, oficiais e funcionários de categoria que deviam
sua influência às antipatias pessoais do país contra Luís Filipe, à memória da velha república, à fé
republicana de um grupo de entusiastas, e sobretudo ao nacionalismo francês, cujo ódio aos acordos de
Viena e à aliança com a Inglaterra eles atiçavam constantemente. Grande parte dos partidários com que
contava o National durante o governo de Luís Filipe eram devidos a esse imperialismo camuflado, que
pôde consequentemente enfrentá-lo mais tarde, durante a república, como um inimigo mortal na pessoa
de Luís Bonaparte. Combatia a aristocracia financeira da mesma forma que todo o resto da oposição
burguesa. As polêmicas contra o orçamento, que estavam, na França, estreitamente ligadas à luta contra a
aristocracia financeira, proporcionavam uma popularidade demasiado barata e material para editoriais
puritanos demasiado abundante para não ser explorado. A burguesia industrial estava-lhe agradecida por
sua servil defesa do sistema protecionista francês, que ele aceitava, porém, mais por razões nacionais do
que no interesse da economia nacional; a burguesia, como um todo, estava-lhe agradecida por suas torpes
denúncias contra o comunismo e o socialismo. Quanto ao mais, o partido do National era puramente
republicano, ou seja, exigia que a dominação burguesa adotasse formas republicanas ao invés de
monárquicas e, principalmente, exigia a parte do leão nesse domínio. Relativamente às condições dessa
transformação não tinha um plano claro de ação. O que, pelo contrário, parecia-lhe claro como a luz do
dia e era publicamente admitido nos banquetes reformistas dos últimos tempos do reinado de Luís Filipe
era a sua impopularidade entre os democratas pequenos burgueses e, em particular, perante o proletariado
revolucionário. Esses republicanos puros - os republicanos puros são assim - estavam já a ponto de se
contentar no momento com a regência da duquesa de Orléans, quando irrompeu a Revolução de
Fevereiro e seus representantes mais conhecidos foram apontados para postos no Governo Provisório.
Desde o início contavam, naturalmente, com o apoio da burguesia e com a maioria na Assembléia
Nacional Constituinte, elementos socialistas do Governo Provisório foram imediatamente excluídos da
Comissão Executiva formada pela Assembléia Nacional por ocasião de sua instalação, e o partido do
National aproveitou a deflagração da insurreição de junho para dissolver também a Comissão Executiva,
e livrar-se assim de seus rivais mais próximos, os republicanos pequenos burgueses ou republicanos
democratas (Ledru-Rollin etc.). Cavaignac o general do partido republicano burguês que comandara a
batalha de junho, tomou o lugar da Comissão Executiva, com poderes quase ditatoriais. Marrast,
ex-redator-chefe do National, tornou-se o presidente perpétuo da Assembléia Nacional Constituinte, e os
ministérios, bem como todos os demais postos importantes, caíram em mãos dos republicanos puros.
A fração republicano-burguesa, que há muito se considerava a herdeira legítima da monarquia de julho,
viu assim excedidas suas mais caras esperanças; alcançou o poder, não, porém, como sonhara, sob o
governo de Luís Filipe, através de uma revolta liberal da burguesia contra o trono, e sim através de um
levante do proletariado contra o capital, levante esse que foi sufocado a tiros de canhão. O que imaginara
como o acontecimento mais contra-revolucionário. O fruto caiu-lhe nas mãos, mas caído da árvore do
conhecimento e não da árvore da vida.
O domínio exclusivo dos republicanos burgueses durou apenas de 24 de junho a 10 de dezembro de
1848. Resumiu-se na elaboração da Constituição republicana e na proclamação do estado de sítio em
Paris.
A nova Constituição era, no fundo, apenas a reedição, em forma republicana, da Carta constitucional de
1830. O limitado cadastro eleitoral da monarquia de julho, que excluía do domínio político mesmo uma
grande parte da burguesia, era incompatível com a existência da república burguesa. Em vez dessas
restrições, a Revolução de Fevereiro proclamara imediatamente o sufrágio universal e direto. Os
republicanos burgueses não puderam desfazer esse ato. Tiveram que contentar-se com acrescentar uma
cláusula instituindo a obrigatoriedade de pelo menos seis meses de residência no distrito eleitoral. A
velha organização da administração, do sistema municipal, do sistema jurídico, militar etc., permaneceu
intacta ou, onde foi modificada pela Constituição, a modificação atingia o rótulo, não o conteúdo, o
nome, não a coisa em si.
O inevitável estado-maior das liberdades de 1848, a liberdade pessoal, as liberdades de imprensa, de
palavra, de associação de reunião, de educação, de religião etc., receberam um uniforme constitucional
que as fez invulneráveis. Com efeito, cada uma dessas liberdades é proclamada como direito absoluto do
cidadão francês, mas sempre acompanhada da restrição à margem, no sentido de que é ilimitada desde
que não esteja limitada pelos "direitos iguais dos outros e pela segurança pública" ou por "leis"
destinadas a restabelecer precisamente essa harmonia das liberdades individuais entre si e com a
segurança pública. Por exemplo:
"Os cidadãos gozam do direito de associação, de reunir-se pacificamente e desarmados, de formular
petições e de expressar suas opiniões, quer pela imprensa ou por qualquer outro modo. O gozo desses
direitos não sofre qualquer restrição, salvo as impostas pelos direitos iguais dos outros e pela segurança
pública. (Capítulo II, § 8, da Constituição Francesa.) "O ensino é livre. A liberdade de ensino será
exercida dentro das condições estabelecidas pela lei e sob o supremo controle do Estado." (Ibidem, § 9.)
"O domicílio de todos os cidadãos é inviolável, exceto nas condições prescritas na lei." (Capítulo II, § 3.)
Etc. etc. A Constituição, por conseguinte, refere-se constantemente a futuras leis orgânicas que deverão
pôr em prática aquelas restrições e regular o gozo dessas liberdades irrestritas de maneira que não
colidam nem entre si nem com a segurança pública. E mais tarde essas leis orgânicas foram promulgadas
pelos amigos da ordem e todas aquelas liberdades foram regulamentadas de tal maneira que a burguesia
no gozo delas, se encontra livre de interferência por parte dos direitos iguais das outras classes. Onde são
vedadas inteiramente essas liberdades "aos outros" ou permitido o seu gozo sob condições que não
passam de armadilhas policiais, isto é feito sempre apenas no interesse da "segurança pública", isto é, da
segurança da burguesia, como prescreve a Constituição. Como resultado, ambos os lados invocam
devidamente, e com pleno direito, a Constituição: os amigos da ordem, que ab-rogam todas essas
liberdades, e os democratas, que as reivindicam. Pois cada parágrafo da Constituição encerra sua própria
antítese, sua própria Câmara Alta e Câmara Baixa, isto é, liberdade na frase geral, ab-rogação da
liberdade na nota à margem. Assim, desde que o nome da liberdade seja respeitado c impedida apenas a
sua realização efetiva - de acordo com a lei, naturalmente - a existência constitucional da liberdade
permanece intacta, inviolada, por mais mortais que sejam os golpes assestados contra sua existência na
vida real.
Esta Constituição, tornada inviolável de maneira tão engenhosa, era, contudo, como Aquiles, vulnerável
em uni ponto; não no calcanhar, mas na cabeça, ou por outra, nas duas cabeças em que se constituiu: de
um lado, a Assembléia Legislativa, de outro, o Presidente. Um exame da Constituição revelará que só os
parágrafos onde é definida a relação do Presidente com a Assembléia Legislativa são absolutos,
positivos, não contraditórios, e sem tergiversação possível. Pois os republicanos burgueses tratavam,
aqui, de garantir sua posição. Os parágrafos 45 a 70 da Constituição acham-se redigidos de tal maneira
que a Assembléia Nacional tem poderes constitucionais para afastar o Presidente, ao passo que este só
inconstitucionalmente pode dissolver a Assembléia Nacional, suprimindo a própria Constituição. Ela
mesma provoca, portanto, a sua violenta destruição. Não só consagra a divisão dos poderes, tal como a
Carta de 1830, como a amplia a ponto de transformá-la em uma contradição insustentável. O jogo dos
poderes constitucionais, como Guizot denominava as contendas parlamentares entre o Poder Legislativo
e o Executivo, é, na Constituição de 1848, constantemente jogado va-banque. De um lado estão 750
representantes do povo, eleitos por sufrágio universal e reelegíveis; constituem uma Assembléia
Nacional incontrolável, indissolúvel, indivisível, uma Assembléia Nacional que desfruta de onipotência
legislativa, decide em última instância sobre as questões de guerra, de paz e tratados comerciais, possui,
só ela, o direito de anistia e, por seu caráter permanente, ocupa perpetuamente o proscênio. Do outro lado
está o Presidente, com todos os atributos do poder real, com autoridade para nomear e exonerar seus
ministros independentemente da Assembléia Nacional, com todos os recursos do Poder Executivo em
suas mãos, distribuindo todos os postos e dispondo, assim, na França, da existência de pelo menos um
milhão e meio de pessoas, pois tantos são os que dependem das 500 mil autoridades e funcionários de
todas as categorias. Tem atrás de si todo o poder das forças armadas. Goza do privilégio de conceder
indulto individual aos criminosos, suspender a Guarda Nacional, destruir, com o beneplácito do Conselho
de Estado, os conselhos gerais, cantonais e municipais eleitos pelos próprios cidadãos. A iniciativa e a
direção de todos os tratados com países estrangeiros são faculdades reservadas a ele. Enquanto a
Assembléia permanece constantemente em cena exposta às críticas da opinião pública, o Presidente leva
uma vida oculta nos Campos Elíseos, com o Artigo 45 da Constituição diante dos olhos e gravado no
coração, a gritar-lhe diariamente: Frére, il faut mourir!(5) Teu poder cessa no segundo domingo do lindo
mês de maio, no quarto ano após a tua eleição! Tua glória terminará então, a peça não é representada
duas vezes, e se tens dívidas, cuida a tempo de saldá-las com os 600 mil francos que a Constituição te
concede, a menos que prefiras ser recolhido a Clichy na segunda-feira seguinte ao segundo domingo do
lindo mês de maio! - Assim, enquanto a Constituição outorga poderes efetivos ao Presidente, procura
garantir para a Assembléia Nacional o poder moral. À parte o fato de que é impossível criar um poder
moral mediante os parágrafos de uma lei, a Constituição mais uma vez se anula ao dispor que o
Presidente seja eleito por todos os franceses, através do sufrágio direto. Enquanto os votos da França são
divididos entre os 750 membros da Assembléia Nacional, são aqui, pelo contrário, concentrados em um
único indivíduo. Enquanto cada representante do povo representa apenas este ou aquele partido, esta ou
aquela cidade esta ou aquela cabeça de ponte, ou até mesmo a mera necessidade de eleger algum dos 750
candidatos, sem levar na devida consideração nem a causa nem o homem, ele é o eleito da nação e o ato
de sua eleição é o trunfo que o povo soberano lança uma vez em cada quatro anos. A Assembléia
Nacional eleita está em relação metafísica com a Nação ao passo que o Presidente eleito está em relação
pessoal com ela. A Assembléia Nacional exibe realmente, em seus representantes individuais, os
múltiplos aspectos do espírito nacional, enquanto no Presidente esse espírito nacional encontra a sua
encarnação. Em comparação com a Assembléia ele possui uma espécie de direito divino; é Presidente
pela graça do povo.
Tétis, a deusa do mar, profetizara a Aquiles que ele morreria na flor da juventude. A Constituição que,
como Aquiles, tinha seu ponto fraco, tinha também como Aquiles o pressentimento de que morreria
cedo. Bastava que os republicanos puros empenhados na elaboração da Constituição baixassem o olhar
do paraíso de sua república ideal e olhassem este mundo profano, para perceberem como a arrogância
dos monarquistas, dos bonapartistas, dos democratas, dos comunistas, bem como seu próprio descrédito,
cresciam diariamente à medida que sua grande obra de arte legislativa chegava ao término, sem que para
isso Tétis tivesse que sair do mar e vir comunicar-lhes o seu segredo. Tentaram fugir ao destino por meio
de um dispositivo constitucional, através do § 111, segundo o qual toda moção visando à revisão da
Constituição tinha que ser apoiada pelo menos por três quartos dos votantes, em três debates sucessivos,
entre os quais devia haver sempre um mês de intervalo, e que exigia ademais, que pelos menos 500
membros da Assembléia Nacional participassem da votação. Com isto fizeram apenas a tentativa
desesperada de exercer, como minoria a que profeticamente já se viam reduzidos - um poder que naquele
momento, quando dispunham de maioria parlamentar e de todos os recursos da autoridade
governamental, escapava-lhes dia a dia das mãos.
Finalmente a Constituição, em um parágrafo melodramático, se confia "à vigilância e ao patriotismo de
todo o povo francês e de cada cidadão francês", depois de ter anteriormente confiado os "vigilantes" e
"patriotas", em um outro parágrafo, aos cuidados mais ternos e dedicados da Alta Corte de justiça, a
Haute Court, expressamente criada para isso.
Esta era a Constituição de 1848, que a 2 de dezembro de 1851 não foi derrubada por uma cabeça, mas
caiu por terra ao contato de um simples chapéu; esse chapéu, evidentemente, era um tricórnio
napoleônico.
Enquanto os republicanos burgueses se entrelinham, na Assembléia, em criar, discutir e votar essa
Constituição, fora da Assembléia Cavaignac mantinha o estado de sítio em Paris. O estado de sítio foi a
parteira da Assembléia Constituinte em seus trabalhos de criação republicana. Se a Constituição foi
subseqüentemente liquidada por meio de baionetas, é preciso não esquecer que foi também por baionetas,
e estas voltadas contra o povo, que teve de ser protegida no ventre materno e trazida ao mundo. Os
precursores dos "respeitáveis republicanos" haviam mandado seu símbolo, a bandeira tricolor, em uma
excursão pela Europa. Eles próprios, por sua vez, produziram um invento que percorreu todo o
Continente mas que retornava à França com amor sempre renovado, até que agora adquirira carta de
cidadania na metade de seus departamentos - o estado de sítio. Um invento esplêndido, empregado
periodicamente em todas as crises ocorridas durante a Revolução Francesa. O quartel e o bivaque, porém,
que eram assim postos periodicamente sobre a cabeça da sociedade francesa a fim de comprimir-lhe o
cérebro e reduzi-la à passividade; o sabre e o mosquetão, aos quais era periodicamente permitido
desempenhar o papel de juizes e administradores, de tutores e censores, brincar de polícia e servir de
guarda-noturno; o bigode e o uniforme, periodicamente proclamados como sendo a mais alta expressão
da sabedoria da sociedade e como seus guardiães - não deviam acabar forçosamente o quartel e o
bivaque, o sabre e o mosquetão, o bigode e o uniforme, tendo a idéia de salvar a sociedade de uma vez
para sempre, proclamando seu próprio regime como a mais alta forma de governo e libertando
completamente a sociedade civil do trabalho de governar a si mesma? O quartel e o bivaque, o sabre e o
mosquetão, o bigode e o uniforme tinham forçosamente que acabar tendo essa idéia, com tanto mais
razão quanto poderiam então esperar também melhor recompensa por esses serviços mais importantes, ao
passo que através de um mero estado de sítio periódico e de passageiros salvamentos da sociedade a
pedido desta ou daquela fração burguesa, conseguiam pouca coisa de sólido, exceto alguns mortos e
feridos e algumas caretas amigáveis por parte dos burgueses. Não deveriam finalmente os militares jogar
um dia o estado de Sítio em seu próprio interesse e em seu próprio benefício, sitiando ao mesmo tempo
as bolsas burguesas? Além disso, seja dito de passagem, é preciso não esquecer que o Coronel Bernard, o
mesmo presidente da comissão militar que, sob Cavaignac, ajudara a deportar sem julgamento 15 mil
insurretos, estava novamente à frente das comissões militares que atuavam em Paris.
Se, com o estado de sítio na capital francesa, os respeitáveis e puros republicanos plantaram o viveiro em
que haviam de crescer os pretorianos do 2 de dezembro de 1851, são, por outro lado, dignos de louvor
porque, em vez de exagerarem o sentimento nacional, como foi o caso de Luís Filipe, agora que
dispunham do poder nacional, rastejavam diante dos países estrangeiros e, em vez de libertar a Itália,
deixaram que fosse reconquistada pelos austríacos e napolitanos. A eleição de Luís Bonaparte como
presidente, em 10 de dezembro de 1848, pôs fim à ditadura de Cavaignac e à Assembléia Constituinte.
O § 44 da Constituição declara: "O Presidente da República Francesa não deverá ter perdido nunca sua
cidadania francesa." O primeiro presidente da República Francesa, L.N. Bonaparte, tinha não só perdido
sua cidadania francesa, não só fora um agente especial dos ingleses, mas era até naturalizado suíço.
Tratei em outra passagem do significado da eleição de 10 de dezembro. Não voltarei ao assunto aqui.
Será suficiente observar que foi uma reação dos camponeses, que tinham tido que pagar as custas da
Revolução de Fevereiro, contra as demais classes da nação, uma reação do campo contra a cidade. Esta
reação encontrou grande apoio no exército, ao qual os republicanos do National não haviam dado nem
glória nem remuneração adicional, entre a alta burguesia, que saudou Bonaparte como uma ponte para a
monarquia, entre os proletários e pequenos burgueses, que o saudaram como um flagelo para Cavaignac.
Terei oportunidade mais adiante de examinar mais detalhadamente a relação dos camponeses com a
Revolução Francesa.
O período compreendido de 20 de dezembro de 1848 à dissolução da Assembléia Constituinte em maio
de 1849, abrange a história do ocaso dos republicanos burgueses. Após terem fundado uma república
para a burguesia, expulsado do campo de luta o proletariado revolucionário e reduzido
momentaneamente ao silêncio a pequena burguesia democrática, são eles mesmos postos de lado pela
massa da burguesia, que com justa razão reclama essa república como sua propriedade. Essa massa era,
porém, monárquica. Parte dela, latifundiários, dominara durante a Restauração e era, portanto,
legitimista. A outra parte, os aristocratas da finança e os grandes industriais, havia dominado durante a
monarquia de julho e era, consequentemente, orleanista. Os altos dignitários do exército, da universidade,
da igreja, da justiça, da academia e da imprensa podiam ser encontrados dos dois lados, embora em
proporções várias. Aqui, na república burguesa, que não ostentava nem o nome de Bourbon nem o nome
de Orléans, e sim o nome de Capital, haviam encontrado a forma de governo na qual podiam governar
conjuntamente. A insurreição de junho já os unira no "partido da ordem". Era agora necessário, em
primeiro lugar, afastar o núcleo de republicanos burgueses que ocupavam ainda as cadeiras da
Assembléia Nacional. Na mesma proporção em que esses republicamos puros haviam sido brutais em
seu emprego da força física contra o povo, eram agora covardes, dissimulados, desanimados e incapazes,
de lutar na hora da retirada, quando se tratava de assegurar seu republicanismo e seus direitos legislativos
contra o Poder Executivo e os monarquistas. Não preciso relatar aqui a história ignominiosa de sua
dissolução. Não sucumbiram; desapareceram. Sua história terminou para sempre, e tanto dentro como
fora da Assembléia, figuram no período seguinte apenas como recordações, recordações que parecem
reviver sempre que o mero nome república está novamente em causa e sempre que o conflito
revolucionário ameaça descer ao nível mais baixo. Posso observar de passagem que o jornal que deu seu
nome a esse partido, o National, foi convertido ao socialismo no período seguinte.
Antes de terminarmos com este período precisamos ainda lançar um olhar retrospectivo aos dois poderes,
um dos quais aniquilou o outro a 2 de dezembro de 1848 até a dissolução da Assembléia Constituinte.
Referimo-nos a Luís Bonaparte, de um lado, e ao partido dos monarquistas coligados, o partido da
ordem, da alta burguesia, do outro. Ao ascender à presidência Bonaparte formou imediatamente um
ministério com base no partido da ordem, à frente do qual colocou Odilon Barrot, o velho dirigente, nota
bene, da fração mais liberal da burguesia parlamentar. O Sr. Barrot havia finalmente conseguido a pasta
ministerial cujo espectro o perseguia desde 1930 e, melhor ainda, a chefia do ministério; não, todavia,
como imaginara sob Luís Filipe, como o dirigente mais avançado da oposição parlamentar, mas sim com
a tarefa de liquidar um Parlamento e como aliado dos seus piores inimigos, os jesuítas e os legitimistas.
Trouxe finalmente a noiva para casa, mas só depois de prostituída. O próprio Bonaparte parecia ter-se
apagado completamente. Esse partido agia por ele.
Logo na primeira reunião do conselho de ministros foi resolvida a expedição a Roma que, concordou-se,
seria feita à revelia da Assembléia Nacional, da qual seriam arrancadas as verbas necessárias sob falsos
pretextos. Assim, começaram burlando a Assembléia Nacional e conspirando secretamente com os
poderes absolutistas do estrangeiro contra a república romana revolucionária. Foi do mesmo modo e por
meio das mesmas manobras que Bonaparte preparou o seu golpe do 2 de Dezembro contra o Legislativo
realista e sua república Constitucional. É preciso não esquecer que o mesmo partido que formou o
ministério de Bonaparte a 20 de dezembro de 1848 constituía a maioria da Assembléia Nacional
Legislativa a 2 de dezembro de 1851.
Em agosto a Assembléia Constituinte decidira só dissolver-se depois de ter elaborado e promulgado toda
uma série de leis orgânicas que deveriam complementar a Constituição. A 6 de janeiro de 1849 o partido
da ordem fez com que um deputado de nome Rateau apresentasse moção propondo que a Assembléia
interrompesse a discussão das leis orgânicas e decidisse sobre sua própria dissolução. Não só o
ministério, chefiado por Odilon Barrot, mas todos os membros monarquistas da Assembléia Nacional,
indicaram nesse momento, em termos imperiosos, que a dissolução era necessária para a restauração do
crédito, para a consolidação da ordem, para pôr fim aos indefinidos arranjos provisórios e estabelecer
uma situação definitiva; que a Assembléia impedia a atuação do novo governo e procurava prolongar sua
existência apenas com intuitos malévolos; que o país estava farto dela. Bonaparte tomou nota de todas
essas invectivas contra o Poder Legislativo, a 2 de dezembro de 1851 demonstrou aos parlamentares que
havia aproveitado a lição. Voltou contra eles seus próprios argumentos.
O ministério Barrot e o partido da ordem foram mais longe. Fizeram com que de toda a França fossem
dirigidas petições à Assembléia Nacional, nas quais se requeria amavelmente que levantasse
acampamento. Levaram, assim, as massas desorganizadas do povo à luta contra a Assembléia Nacional,
expressão constitucionalmente organizada do povo. Ensinaram Bonaparte a apelar para o povo contra as
assembléias parlamentares. Finalmente, a 29 de janeiro de 1849, chegou o dia no qual a Assembléia
Constituinte deveria decidir sua própria dissolução. Encontrou o edifício em que se realizavam suas
sessões ocupado pelos militares; Changarnier, o general do partido da ordem, em cujas mãos se
concentrava o comando supremo da Guarda Nacional e das tropas de linha, realizou em Paris uma grande
revista de tropas, como se uma batalha estivesse iminente, e os monarquistas coligados declararam
ameaçadoramente à Assembléia Constituinte que seria empregada a forca caso ela se mostrasse pouco
dócil. A Assembléia mostrou-se dócil e ganhou apenas o brevíssimo período adicional de vida que
negociara. Que foi o 29 de janeiro senão o golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851, realizado desta
vez pelos monarquistas juntamente com Bonaparte contra a Assembléia Nacional republicana? Esses
senhores não perceberam, ou não quiseram perceber, que Bonaparte se valeu do 29 de janeiro de 1849
para fazer com que uma parte das tropas desfilasse diante dele nas Tulherias e aproveitou avidamente
essa primeira convocação do poder militar contra o poder parlamentar para evocar Calígula. Eles,
naturalmente, viam apenas o seu Changarnier.
Um dos motivos que levaram especialmente o partido da ordem a encurtar pela força a duração da vida
da Assembléia Constituinte foram as leis orgânicas suplementares à Constituição, tais como a lei do
ensino, a lei sobre o culto religioso etc. Para os monarquistas coligados era da maior importância que eles
próprios elaborassem essas leis, evitando que fossem feitas pelos republicanos que já se mostravam
desconfiados. Entre essas leis orgânicas, entretanto, havia também uma lei regulamentando as
responsabilidades do presidente da República. Em 1851 a Assembléia Legislativa ocupava-se
precisamente da redação dessa lei quando Bonaparte impediu esse golpe com o golpe de 2 de dezembro.
Que não teriam dado os monarquistas coligados em sua campanha parlamentar de inverno de 1851 para
terem à mão já pronta esta Lei Sobre a Responsabilidade Presidencial e elaborada, ademais, por uma
Assembléia republicana desconfiada e hostil!
Depois que a Assembléia Constituinte havia ela própria desmantelado sua última arma a 29 de janeiro de
1849, o ministério Barrot e os amigos da ordem perseguiram-na até a morte, não deixaram por fazer nada
que pudesse humilhá-la e arrancaram de sua desesperada debilidade leis que custaram o derradeiro
resquício de respeito aos olhos do público. Bonaparte, ocupado com sua idéia fixa napoleônica, foi
suficientemente atrevido para explorar publicamente essa degradação do poder parlamentar. Pois quando
a 8 de maio de 1849 a Assembléia Nacional aprovou um voto de censura do ministério em vista da
ocupação de Civitavecchia por Oudinot e ordenou-lhe que reduzisse a expedição romana ao objetivo
proposto, Bonaparte na mesma noite publicou no Moniteur uma carta a Oudinot, na qual se congratulava
com ele por suas proezas heróicas e, em contraste com os escribas parlamentares, assumiu já a posse de
generoso protetor do exército. Isto provocou sorrisos dos monarquistas que o consideravam apenas como
enganado por eles. Finalmente, quando Marrast, o presidente da Assembléia Constituinte, acreditou por
um momento que a segurança da Assembléia Nacional estava em perigo e, confiando na Constituição,
requisitou um coronel com seu regimento, o coronel negou-se a atender, invocou a disciplina e
recomendou que Marrast apelasse para Changarnier; este repeliu com desprezo o pedido, observando que
não gostava de baionetas inteligentes. Em novembro de 1851 quando os monarquistas coligados
quiseram iniciar a luta decisiva contra Bonaparte, tentaram introduzir por meio de seu célebre Projeto dos
Questores o princípio da requisição direta de tropas pelo presidente da Assembléia Nacional. Um de seus
generais, Leflô, subscrevera o projeto. Em vão Changarnier votou a favor da proposta e Thiers rendeu
homenagem à previdência da antiga Assembléia Constituinte. O ministro da Guerra, Saint-Arnaud,
respondeu-lhe como Changarnier respondera a Marrast - o que lhe valeu a aclamação dá Montanha!
Foi assim que o próprio partido da ordem, quando não constituía ainda a Assembléia Nacional, quando
era ainda apenas o ministério, estigmatizou o regime parlamentar. E brada aos céus quando o 2 de
Dezembro de 1851 baniu esse regime da França!
Capítulo III
A Assembléia Legislativa Nacional reuniu-se a 28 de maio de 1849. A 2 de dezembro de 1851 foi
dissolvida. Esse período cobre a vida efêmera da república constitucional ou república parlamentar.
Na primeira Revolução Francesa o domínio dos constitucionalistas é seguido do domínio dos girondinos
e o domínio dos girondinos pelo dos jacobinos. Cada um desses partidos se apoia no mais avançado.
Assim que impulsiona a revolução o suficiente para se tornar incapaz de levá-la mais além, e muito
menos de marchar à sua frente, é posto de lado pelo aliado mais audaz que vem atrás e mandado à
guilhotina. A revolução move-se, assim, ao longo de uma linha ascensional.
Com a Revolução de 1848 dá-se o inverso. O partido proletário aparece como um apêndice do partido
pequeno-burguês democrático. É traído e abandonado por esse a 16 de abril, a 15 de maio e nas jornadas
de junho. O partido democrata, por sua vez, se apoia no partido republicano burguês. Assim que
consideram firmada a sua posição os republicanos burgueses desvencilham-se do companheiro
inoportuno e apoiam-se sobre os ombros do partido da ordem. O partido da ordem ergue os ombros
fazendo cair aos trambolhões os republicanos burgueses e atira-se, por sua vez, nos ombros das forças
armadas. Imagina manter-se ainda sobre estes ombros militares, quando, um belo dia, percebe que se
transformaram em baionetas. Cada partido ataca par trás aquele que procura empurrá-lo para a frente e
apoia pela frente naquele que o empurra para trás. Não é de admirar que nessa postura ridícula perca o
equilíbrio e, feitas as inevitáveis caretas, caia por terra em estranhas cabriolas. A revolução move-se,
assim, em linha descendente. Encontra-se nesse estado de movimento regressivo antes mesmo de ser
derrubada a última barricada de fevereiro e constituído o primeiro órgão revolucionário.
O período que temos diante de nós abrange a mais heterogênea mistura de contradições clamorosas:
constitucionalistas que conspiram abertamente contra a constituição; revolucionários declaradamente
constitucionalistas; uma Assembléia Nacional que quer ser onipotente e permanece sempre parlamentar;
uma Montanha que encontra sua vocação na paciência e se consola de suas derrotas atuais com profecias
de vitórias futuras; realistas que são patres conscripti(6) da república e que são forçados pela situação a
manter no estrangeiro as casas reais hostis, de que são partidários, e a manter na França a república que
odeiam; um Poder Executivo que encontra sua força em sua própria debilidade e sua respeitabilidade no
desprezo que inspira; uma república que nada mais é do que a infâmia combinada de duas monarquias, a
Restauração e a monarquia de julho, com rótulo imperialista; alianças cuja primeira cláusula é a
separação; lutas cuja primeira lei é a indecisão; agitação desenfreada e desprovida de sentido em nome da
tranqüilidade, os mais solenes sermões sobre a tranqüilidade em nome da revolução; paixões sem
verdade, verdades sem paixões, heróis sem feitos heróicos, história sem acontecimentos;
desenvolvimento cuja única força propulsora parece ser o calendário, fatigante pela constante repetição
das mesmas tensões e relaxamentos; antagonismos que parecem evoluir periodicamente para um clímax,
unicamente para se embotarem e desaparecer sem chegar a resolver-se; esforços pretensiosamente
ostentados e terror filisteu ante o perigo de o mundo acabar-se, e ao mesmo tempo as intrigas mais
mesquinhas e comédias palacianas representadas pelos salvadores do mundo que, em seu laisser aller(7)
recordam mais do que o dia do juízo final os tempo da Fronda - o gênio coletivo oficial da França
reduzido a zero pela estupidez astuciosa de um único indivíduo; a vontade coletiva da nação, sempre que
se manifesta por meio do sufrágio universal, buscando sua expressão adequada nos inveterados inimigos
dos interesses das massas, até que finalmente a encontra na obstinação de um flibusteiro. Se existe na
história do mundo um período sem nenhuma relevância, é este. Os homens e os acontecimentos
aparecem como Schlemihls invertidos, como sombras que perderam seus corpos. A revolução paralisa
seus próprios portadores, e dota apenas os adversários de uma força apaixonada. Quando o "espectro
vermelho", continuamente conjurado e exorcizado pelos contra-revolucionários, finalmente aparece, não
traz à cabeça o barrete frígio da anarquia, mas enverga o uniforme da ordem, os culotes vermelhos.
Vimos que o ministério nomeado por Bonaparte, no dia de sua ascensão, 20 de dezembro de 1848, era
um ministério do partido da ordem, da coligação legimitista e orleanista. Esse ministério Barrot-Falloux
sobrevivera à Assembléia Constituinte republicana, cujo termo de vida cortara de um modo mais ou
menos violento, e encontrava-se ainda ao leme. Changarnier, o general dos monarquistas coligados,
continuou a reunir em sua pessoa o comando geral da Primeira Divisão do Exército e da Guarda
Nacional de Paris. Finalmente, as eleições gerais haviam assegurado ao partido da ordem uma ampla
maioria na Assembléia Nacional. Os deputados e pares de Luís Filipe defrontaram-se aqui com uma
hoste sagrada de legitimistas, para os quais muitos dos votos da nação haviam-se transformado em
cartões de ingresso para o teatro político. A representação bonapartista era por demais escassa para poder
formar um partido parlamentar independente. Apareciam apenas como mauvaise queue(8) do partido da
ordem. O partido da ordem encontrava-se, assim, de posse do poder governamental, do exército e do
Poder Legislativo, em suma, de todo o poder estatal; fora moralmente fortalecido pelas eleições gerais,
que fizeram aparecer o seu domínio como sendo a expressão da vontade do povo, e pelo simultâneo
triunfo da contra-revolução em todo o continente europeu.
Nunca um partido iniciou sua campanha com tantos recursos ou sob auspícios tão favoráveis.
Os republicanos puros naufragados verificaram que estavam reduzidos a um grupo de cerca de 50
homens na Assembléia Legislativa Nacional, chefiados pelos generais africanos Cavaignac, Lamoricière
e Bedeau. O grande partido da oposição, entretanto, era constituído pela Montanha, o partido
social-deomocrata adotara no Parlamento este nome de batismo. Comandava mais de 200 dos 750 votos
da Assembléia Nacional e era, por conseguinte, pelo menos tão poderoso quanto qualquer das três
frações partido da ordem tomadas isoladamente. Sua inferioridade numérica em comparação com toda a
coligação monarquista parecia estar compensada por circunstâncias especiais. Não só as eleições
departamentais demonstraram que ele havia conquistado um número considerável de partidários entre a
população rural como contava em suas fileiras com quase todos os deputados eleitos por Paris; o exército
fizera profissão de fé democrática elegendo três suboficiais, e o líder da Montanha, Ledru-Rollin, em
contraste com todos os representantes do partido da ordem, fora elevado à nobreza parlamentar por cinco
departamentos, que haviam concentrado nele a sua votação. Em vista dos inevitáveis choques entre os
monarquistas e de todo o partido da ordem com Bonaparte, a 28 de maio de 1849 a Montanha parecia ter
diante de si todos os elementos de êxito. Quinze dias depois perdia tudo, inclusive a honra.
Antes de prosseguirmos com a história parlamentar desta época tornam-se necessárias algumas
observações a fim de evitar as concepções errôneas tão comuns a respeito do caráter geral da época que
temos diante de nós. Aos olhos dos democratas, o período da Assembléia Legislativa Nacional
caracterizava-se pelo mesmo problema vivido durante a Assembléia Constituinte: a simples luta entre
republicanos e monarquistas. Resumiam, entretanto, o movimento propriamente dito em uma só palavra:
"reação" - noite em que todos os gatos são pardos e que lhes permite desfiar todos os seus
lugares-comuns de guarda-noturno. E, certamente, à primeira vista, o partido da ordem revela um
emaranhado de diferentes facções monarquistas, que não só intrigam uma contra a outra, cada qual
tentando elevar ao trono o seu próprio pretendente e excluir o da facção contrária, como se unem todas
no ódio comum e nas investidas comuns contra a "república". Em contraste com essa conspiração
monarquista, a Montanha, por seu lado, aparece como representante da "república". O partido da ordem
parece estar perpetuamente empenhado em uma "reação", dirigida contra a imprensa, o direito de
associações e coisas semelhantes, uma reação nem mais nem menos como a que sucedeu na Prússia, e
que, com na Prússia, é exercida na forma de brutal interferência policial por parte da burocracia, da
gendarmaria e dos tribunais. A Montanha, por sua vez, está igualmente ocupada em aparar esses golpes,
defendendo assim os "eternos direitos do homem", como todos os partidos supostamente populares vêm
fazendo, mais ou menos, há um século e meio. Quando, porém, se examina mais de perto à situação e os
partidos, desaparece essa aparência superficial que dissimula a luta de classes e a fisionomia peculiar da
época.
Os legitimistas e os orleanistas, como dissemos, formavam as duas grandes facções do partido da ordem.
O que ligava estas facções aos seus pretendentes e as opunha uma à outra seriam apenas as flôres-de-lís e
a bandeira tricolor, a Casa dos Bourbons e a Casa de Orléans, diferentes matizes do monarquismo? Sob
os Bourbons governara a grande propriedade territorial, com seus padres e lacaios; sob os Orléans, a alta
finança, a grande indústria, o alto comércio, ou seja, o capital, com seu séquito de advogados, professores
e oradores melífluos. A monarquia legitimista foi apenas a expressão política do domínio hereditário dos
senhores de terra, como a monarquia de julho fora apenas a expressão política do usurpado domínio dos
burgueses arrivistas. O que separava as duas facções, portanto, não era nenhuma questão de princípios,
eram suas condições materiais de existência, duas diferentes espécies de propriedade, era o velho
contraste entre a cidade e o campo, a rivalidade entre o capital e o latifúndio. Que havia, ao mesmo
tempo, velhas recordações, inimizades pessoais, temores e esperanças, preconceitos e ilusões, simpatias e
antipatias, convicções, questões de fé e de princípio que as mantinham ligadas a uma ou a outra casa real
- quem o nega? Sobre as diferentes formas de propriedade, sobre as condições sociais, maneiras de
pensar e concepções de vida distintas e peculiarmente constituídas. A classe inteira os cria e os forma
sobre a base de suas condições materiais e das relações sociais correspondentes. O indivíduo isolado, que
as adquire através da tradição e da educação, poderá imaginar que constituem os motivos reais e o ponto
de partida de sua conduta. Embora orleanistas e legitimistas, embora cada facção se esforçasse por
convencer-se e convencer os outros de que o que as separava era sua lealdade às duas casa reais, os atos
provaram mais tarde que o que impedia a união de ambas era mais a divergência de seus interesses. E
assim como na vida privada se diferencia o que um homem pensa e diz de si mesmo do que ele realmente
é e faz, nas lutas históricas deve-se distinguir mais ainda as frases e as fantasias dos partidos de sua
formação real e de seus interesses reais, o conceito que fazem de si do que são na realidade. Orleanistas e
legitimistas encontram-se lado a lado na república, com pretensões idênticas. Se cada lado desejava levar
a cabo a restauração de sua própria casa real, contra a outra, isto significava apenas que cada um dos dois
grandes interesses em que se divide a burguesia - o latifúndio e o capital - procurava restaurar sua própria
supremacia e suplantar o outro. Falamos em dois interesses da burguesia porque a grande propriedade
territorial, apesar de suas tendências feudais e de seu orgulho de raça, tornou-se completamente burguesa
com o desenvolvimento da sociedade moderna. Também os tories na Inglaterra imaginaram por muito
tempo entusiasmar-se pela monarquia, a igreja e as maravilhas da velha Constituição inglesa,. até que a
hora do perigo arrancou-lhes a confissão de que se entusiasmam apenas pela renda territorial.
Os monarquistas coligados intrigavam-se uns contra os outros pela imprensa, em Ems, em Claremont,
fora do Parlamento. Atrás dos bastidores envergavam novamente suas velhas librés orleanistas e
legitimistas e novamente se empenhavam nas velhas disputas. Mas diante do público, em suas grande
representações de Estado, como grande partido parlamentar, iludem suas respectivas casas reais com
simples mesuras e adiam in infinitum a restauração da monarquia. Exercem suas verdadeiras atividades
como partido da ordem, ou seja, sob um rótulo social, e não sob um rótulo político; como representantes
do regime burguês, e não como paladinos de princesas errantes; como classe-burguesa contra as outras
classes e não como monarquistas contra republicanos. E como partido da ordem exerciam um poder mais
amplo e severo sobre as demais classes da sociedade do que jamais haviam exercido sob a Restauração
ou sob a monarquia de julho, um poder que, de maneira geral, só era possível sob a forma de república
parlamentar, pois apenas sob esta forma podiam os dois grandes setores da burguesia francesa unir-se e,
assim, pôr na ordem do dia o domínio de sua classe, em vez do regime de uma facção privilegiada desta
classe. Se, não obstante, como partido da ordem, insultavam também a república e manifestavam a
repugnância que sentiam por ela, isto não era devido apenas a recordações monarquistas. O instinto
ensinava-lhes que a república, é bem verdade, torna completo seu domínio político, mas ao mesmo
tempo solapa suas fundações sociais, uma vez que têm agora de se defrontar com as classes subjugadas e
lutar com elas sem qualquer mediação, sem poderem esconder-se atrás da coroa, sem poderem desviar o
interesse da nação com as lutas secundárias que sustentavam entre si e contra a monarquia. Era um
sentimento de fraqueza que os fazia recuar das condições puras do domínio de sua própria classe e ansiar
pelas antigas formas, mais incompletas, menos desenvolvidas e portanto menos perigosas, desse
domínio. Por outro lado, cada vez que os monarquistas coligados entram em conflito com o pretendente
que se lhes opunha, com Bonaparte, cada vez que julgam sua onipotência parlamentar ameaçada pelo
Poder Executivo, cada vez, portanto, que têm que exibir o título político de seu domínio, apresentam-se
como republicanos e não como monarquistas, desde o orleanista Thiers, que adverte a Assembléia
Nacional de que a república é o que menos os separa, até o legitimista Berryer que, a 2 de dezembro de
1851, cingindo uma faixa tricolor, arenga o povo reunido diante da prefeitura do décimo distrito em
nome da república. É claro que um eco zombeteiro responde-lhe: Henrique V! Henrique V!
Contra a burguesia coligada fora formada uma coalizão de pequenos burgueses e operários, o chamado
partido social democrata. A pequena burguesia percebeu que tinha sido mal recompensada depois das
jornada e junho de 1848, que seus interesses materiais corriam perigo e que as garantias democráticas
que deviam assegurar a efetivação desses interesses estavam sendo questionadas pela contra-revolução.
Em vista disto aliou-se aos operários. Por outro lado, sua representação parlamentar, a Montanha, posta à
margem durante a ditadura dos republicanos burgueses, reconquistara na segunda metade do período da
Assembléia Constituinte sua popularidade perdida com a luta contra Bonaparte e os ministros
monarquistas. Concluíra uma aliança com os dirigentes socialistas. Em fevereiro de 1849 a reconciliação
foi comemorada com banquetes. Foi elaborado um programa comum, organizados comitês eleitorais
comuns e lançados candidatos comuns. Quebrou-se o aspecto revolucionário das reivindicações sociais
do proletariado e deu-se a elas uma feição democrática; despiu-se a forma puramente política das
reivindicações democráticas da pequena burguesia e ressaltou-se seu aspecto socialista. Assim surgiu a
social-democracia. A nova Montanha, resultado dessa combinação, continha, além de alguns figurantes
tirados da classe operária e de alguns socialistas sectários, os mesmos elementos da velha Montanha,
mas, mais fortes numericamente. Em verdade, ela se tinha modificado no curso do desenvolvimento, com
a classe que representava. O caráter peculiar da social-democracia resume-se no fato de exigir
instituições democrático-republicanas como meio não de acabar com dois extremos, capital e trabalho
assalariado, mas de enfraquecer seu antagonismo e transformá-lo em harmonia. Por mais diferentes que
sejam as medidas propostas para alcançar esse objetivo, por mais que sejam enfeitadas com concepções
mais ou menos revolucionárias, o conteúdo permanece o mesmo. Esse conteúdo é a transformação da
sociedade por um processo democrático, porém uma transformação dentro dos limites da pequena
burguesia. Só que não se deve formar a concepção estreita de que a pequena burguesia, por princípio,
visa a impor um interesse de classe egoísta. Ela acredita, pelo contrário, que as condições especiais para
sua emancipação são as condições gerais sem as quais a sociedade moderna não pode ser salva nem
evitada a luta de classes. Não se deve imaginar, tampouco, que os representantes democráticos sejam na
realidade todos shopkeepers (lojistas) ou defensores entusiastas destes últimos. Segundo sua formação e
posição individual podem estar tão longe deles como o céu da terra. O que os toma representantes da
pequena burguesia é o fato de que sua mentalidade não ultrapassa os limites que esta não ultrapassa na
vida, de que são consequentemente impelidos, teoricamente, para os mesmos problemas e soluções para
os quais o interesse material e a posição social impelem, na prática, a pequena burguesia. Esta é, em
geral, a relação que existe entre os representantes políticos e literários de uma classe e a classe que
representam.
Depois desta análise, é evidente que se a Montanha lutava continuamente contra o partido da ordem em
prol da república e dos chamados direitos do homem nem a república nem os direitos do homem
constituíam seu objetivo final, da mesma maneira por que um exército ao qual se quer despojar de suas
armas e que resiste não entrou em luta, com o objetivo de conservar a posse de suas armas.
Logo que se reuniu a Assembléia Nacional, o partido da ordem provocou a Montanha. A burguesia sentia
agora a necessidade de acabar com a pequena burguesia democrática, assim como um ano atrás
compreendera a necessidade de ajustar contas com o proletariado revolucionário. Apenas, a situação do
adversário era diferente. A força do partido proletário estava nas ruas, ao passo que a da pequena
burguesia estava na própria Assembléia Nacional. Tratava-se, pois de atraí-los para fora da Assembléia
Nacional, para as ruas, e fazer com que eles mesmos destroçassem sua força parlamentar antes que o
tempo e as circunstâncias pudessem consolidá-la. A Montanha precipitou-se de corpo e alma na
armadilha.
O bombardeio de Roma pelas tropas francesas foi a isca que lhe atiraram. Violava o artigo 5 da
Constituição, que proibia qualquer declaração de guerra por parte do Poder Executivo sem o
assentimento da Assembléia Nacional, e em resolução de 8 de maio a Assembléia Constituinte
expressara sua desaprovação à expedição romana. Baseado nisso, a 11 de junho de 1849 Ledru-Rollin
apresentou um projeto de impeachment contra Bonaparte e seus ministros. Exasperado pelas alfinetadas
de Thiers, deixou-se na realidade arrastar ao ponto de ameaçar defender a Constituição por todos os
meios, inclusive de armas na mão. A Montanha levantou-se como um só homem e repetiu esse apelo às
armas. A 12 de junho a Assembléia Nacional rejeitou o projeto de impeachment e a Montanha deixou o
Parlamento. Os acontecimentos de 13 de junho são conhecidos: a proclamação lançada por uma ala da
Montanha declarando Bonaparte e seus ministros "fora da Constituição!"; a passeata da Guarda Nacional
democrática que, desarmada como estava, dispersou-se ao defrontar as tropas de Changarnier etc. etc.
Uma parte da Montanha fugiu para o estrangeiro; outra parte foi citada pelo Supremo Tribunal de
Bourges, e uma resolução parlamentar submeteu os restantes à vigilância de bedel do presidente da
Assembléia Nacional. O estado de sítio foi novamente declarado em Paris e a ala democrática da Guarda
Nacional dissolvida. Quebrou-se, assim, a influência da Montanha no Parlamento e a força da pequena
burguesia em Paris.
Lyon, onde o 13 de junho dera a senha para uma sangrenta insurreição operária foi, juntamente com os
cinco departamentos adjacentes, declarada igualmente sob estado de sítio, situação que perdura até o
presente momento.
A maior parte da Montanha abandonara sua vanguarda na hora difícil, recusando-se a assinar a
proclamação. A imprensa desertara, apenas dois jornais ousando publicar o pronunciamento. A pequena
burguesia traiu seus representantes, pelo fato de a Guarda Nacional ou não aparecer ou, onde apareceu,
impedir o levantamento de barricadas. Os representantes, por sua vez, ludibriaram a pequena burguesia,
pelo fato de que os seus pretensos aliados do exército não apareceram em lugar nenhum. Finalmente, em
vez de ganhar forças com o apoio do proletariado, o partido democrático infetara o proletariado com sua
própria fraqueza e, como costuma acontecer com os grandes feitos dos democratas, os dirigentes tiveram
a satisfação de poder acusar o "povo" de deserção, e o povo a satisfação de poder acusar seus dirigentes
de o terem iludido.
Raramente fora uma ação anunciada tão estrepitosamente como a iminente campanha da Montanha,
raramente um acontecimento fora alardeado com tanta segurança ou com tanta antecedência como a
vitória inevitável da democracia. É mais do que certo que os democratas acreditam nas trombetas diante
de cujos toques ruíram as muralhas de Jericó. E sempre que enfrentam as muralhas do despotismo
procuram imitar o milagre. Se a Montanha queria vencer no Parlamento, não devia ter apelado para as
armas. Se apelou para as armas no Parlamento, não devia ter-se comportado nas ruas de maneira
parlamentar. Se a demonstração pacífica tinha um caráter sério, então era loucura não prever que teria
uma recepção belicosa. Se se pretendia realizar uma luta efetiva, então era uma idéia esquisita depor as
armas com que teria que ser conduzida esta luta. Mas as ameaças revolucionárias da pequena burguesia e
de seus representantes democráticos não passam de tentativas de intimidar o adversário. E quando se
vêem em um beco sem saída, quando se comprometeram o suficiente para tornar necessário levar a cabo
suas ameaças, fazem-no então de maneira ambígua, que evita principalmente os meios de alcançar o
objetivo, e tenta encontrar pretextos para sucumbir. A estrepitosa abertura que anunciou a contenda
perde-se em um murmúrio pusilânime assim que a luta tem que começar; os atores deixam de se levar a
sério e a peça murcha lamentavelmente, como um balão furado.
Nenhum partido exagera mais os meios de que dispõe, nenhum se ilude com tanta leviandade sobre a
situação como o partido democrático. Como uma ala do exército votara em seu favor, a Montanha estava
agora convencida de que o exército se levantaria ao seu lado. E em que situação? Em uma situação que,
do ponto de vista das tropas, não tinha outro significado senão o de que os revolucionários haviam-se
colocado ao lado dos soldados romanos, contra os soldados franceses. Por outro lado, as recordações de
junho de 1848 ainda estavam muito frescas para provocar outra coisa que não fosse a profunda aversão
do proletariado à Guarda Nacional e a completa desconfiança dos chefes das sociedades secretas em
relação aos dirigentes democráticos. Para superar essas diferenças era necessário que grandes interesses
comuns estivessem em jogo. A violação de um parágrafo abstrato da Constituição não poderia criar esses
interesses. Não fora a Constituição violada repetidas vezes, segundo afirmavam os próprios democratas?
Não haviam os periódicos mais populares estigmatizado essa Constituição como sendo obra
desconchavada de contra-revolucionários? Mas o democrata, por representar a pequena burguesia, ou
seja, uma classe de transição na qual os interesses de duas classes perdem simultaneamente suas arestas,
imagina estar acima dos antagonismos de classes em geral. Os democratas admitem que se defrontam
com uma classe privilegiada mas eles, com todo o resto da nação, constituem o povo. O que eles
representam é o direito do povo; o que interessa a eles é o interesse do povo. Por isso, quando um
conflito está iminente, não precisam analisar os interesses e as posições das diferentes classes. Não
precisam pesar seus próprios recursos de maneira demasiado crítica. Tem apenas que dar o sinal e o
povo, com todos os seus inexauríveis recursos, cairá sobre os opressores. Mas se na prática seus
interesses mostram-se sem interesse e sua potência, impotência, então ou a culpa cabe aos sofistas
perniciosos, que dividem o povo indivisível em diferentes campos hostis, ou o exército estava por demais
embrutecido e cego para compreender que os puros objetivos da democracia são o que há de melhor para
ele, ou tudo fracassou devido a um detalhe na execução, ou então um imprevisto estragou desta vez a
partida. Haja o que houver, o democrata sai da derrota mais humilhante, tão imaculado como era
inocente quando entrou na questão, com a convicção recém-adquirida de que terá forçosamente que
vencer, não porque ele e seu partido deverão abandonar o antigo ponto de vista, mas, pelo contrário,
porque as condições tem que amadurecer para se porem de acordo com ele.
Não se deve imaginar, por conseguinte, que a Montanha, dizimada e destroçada como estava, e
humilhada pelo novo regulamento parlamentar, estivesse especialmente desconsolada. Se o 13 de Junho
removera seus dirigentes, tinha, por outro lado, aberto vaga para homens de menor envergadura, que se
sentiam desvanecidos com esta nova posição. Se sua impotência no Parlamento já não deixava lugar a
dúvida, tinham agora o direito de limitar suas atividades a rasgos de indignação moral e ruidosa oratória.
Se o partido da ordem simulava ver encarnados neles os últimos representantes oficiais da revolução e
todos os horrores da anarquia, podiam mostrar-se na realidade ainda mais insípidos e modestos.
Consolaram-se, entretanto, pelo 13 de junho, com esta sentença profunda: Mas se ousarem investir contra
o sufrágio universal, bem, então lhes mostraremos de que somos capazes! Nous verrons!(9)
Quanto aos montagnards(10) que haviam fugido para o estrangeiro, basta observar aqui que
Ledru-Rollin, em vista de ter conseguido arruinar irremediavelmente, em menos de 15 dias, o poderoso
partido que chefiava - via-se agora chamado a formar um governo francês in partibus, que à medida que
caía o nível da revolução e os maiorais oficiais da França oficial diminuíam de tamanho, sua figura à
distancia, fora do campo de ação, parecia crescer em estatura; que podia figurar como pretendente
republicano para 1852, e que dirigia circulares periódicas aos valáquios e a outros povos, nas quais os
déspotas do continente eram ameaçados com as façanhas dele e de seus confederados. Estaria Proudhon
inteiramente errado quando gritou a esses senhores: Vous n 'étes que des blagueurs?(11)
A 13 de junho o partido da ordem não tinha apenas destroçado a Montanha: tinha efetuado a
subordinação da Constituição às decisões majoritárias da Assembléia Nacional. E compreendia a
república da seguinte maneira: que a burguesia governa aqui sob formas parlamentares, sem encontrar,
como na monarquia, quaisquer barreiras tais como o veto do Poder Executivo ou o direito de dissolver o
Parlamento. Esta era uma república parlamentar, como a cognominou Thiers. Mas se a burguesia
assegurou a 13 de junho sua onipotência dentro do Parlamento, não tornara ao mesmo tempo o próprio
Parlamento irremediavelmente fraco diante do Poder Executivo e do povo, expulsando a bancada mais
popular? Entregando numerosos deputados, sem maiores formalidades, por intimação dos tribunais, ela
aboliu suas próprias imunidades parlamentares. O regulamento humilhante a que submeteu a Montanha
exaltava o presidente da República na mesma medida em que degradava os representantes do povo.
Denunciando uma insurreição em defesa da carta constitucional como um ato de anarquia visando à
subversão do regime, vedou a si própria a possibilidade de recorrer à insurreição no caso de o Poder
Executivo violar contra ela a Constituição. E, por ironia da história, o general que por ordem de
Bonaparte bombardeou Roma e forneceu, assim, o motivo imediato da revolta constitucional de 13 de
junho, aquele mesmo Oudinot, seria o homem que o partido da ordem, suplicante e inutilmente,
apresentaria ao povo a 2 de dezembro de 1851 como o general que defendia a Constituição contra
Bonaparte. Outro herói do 13 de junho, Vieyra, que fora elogiado da tribuna da Assembléia Nacional
pelas brutalidades que cometera nas redações de jornais democráticos à frente de um bando da Guarda
Nacional pertencente aos altos círculos financeiros - este mesmo Vieyra fora iniciado na conspiração de
Bonaparte e contribuiu essencialmente para privar a Assembléia Nacional, na hora de sua morte, de
qualquer proteção por parte da Guarda Nacional.
O 13 de junho tem ainda outro significado. A Montanha havia querido forçar o impeachment de
Bonaparte. Sua derrota foi, portanto, uma vitória direta de Bonaparte, seu triunfo pessoal sobre seus
inimigos democratas. O partido da ordem conquistou a vitória; Bonaparte tinha apenas que embolsá-la.
Foi o que fez. A 14 de junho podia ler-se nos muros de Paris uma proclamação em que o presidente,
relutantemente, como que a contragosto, compelido pela simples força dos acontecimentos, emerge de
seu isolamento claustral e, afetando virtude ofendida, queixa-se das calúnias de seus adversários e,
embora pareça identificar sua pessoa com a causa da ordem, antes identifica a causa da ordem com sua
pessoa. Além disso, a Assembléia Nacional havia, é bem verdade, aprovado subseqüentemente a
expedição contra Roma, mas Bonaparte assumira a iniciativa da questão. Depois de reinstalar o pontífice
Samuel no Vaticano, podia esperar entrar nas Tulherias como novo rei David. Conquistara o apoio dos
padres.
A revolta de 13 de junho limitou-se, como vimos, a uma passeata pacífica. Lauréis guerreiros não
podiam, portanto, ser conquistados em sua repressão. Contudo, em uma época dessas, tão pobre de heróis
e acontecimentos, o partido da ordem transformou esta batalha incruenta em uma segunda Austerlitz. Da
tribuna e na imprensa elogiava-se o exército como o poder da ordem, em contraste com as massas
populares, que representavam a impotência da anarquia, e se exalava Changarnier como o "baluarte da
sociedade", ilusão em que ele próprio veio finalmente a acreditar. Subrepticiamente, porém, os corpos de
tropa que pareciam duvidosos foram transferidos de Paris, os regimentos em que as eleições haviam
produzido os resultados mais democráticos foram banidos da França para a Argélia, os espíritos
turbulentos existentes entre as tropas foram relegados a destacamentos penais e, por fim, o isolamento
entre a imprensa e o quartel e entre o quartel e a sociedade burguesa foi efetuado de maneira sistemática.
Chegamos aqui ao ponto decisivo da história da Guarda Nacional francesa. Em 1830 ela tivera ação
decisiva na queda da Restauração. Sob Luís Filipe abortaram todas as rebeliões nas quais a Guarda
Nacional colocou-se ao lado das tropas. Quando nas jornadas de fevereiro de 1848 ela manteve uma
atitude passiva diante da insurreição e urna atitude equívoca para com Luís Filipe, este considerou-se
perdido e, efetivamente, estava perdido. Arraigou-se assim a convicção de que a revolução não poderia
triunfar sem a Guarda Nacional nem o exército vencer contra ela. Era a superstição do exército sobre a
onipotência burguesa. As jornadas de junho de 1848, quando toda a Guarda Nacional, juntamente com as
tropas de linha, sufocou a insurreição, haviam reforçado essa superstição. Depois que Bonaparte assumiu
o poder, a posição da Guarda Nacional foi, de certo modo, enfraquecida pela união inconstitucional, na
pessoa de Changarnier, do comando de suas forças com o comando da Primeira Divisão do Exército.
Assim como o comando da Guarda Nacional aparecia aqui como atributo do comandante-geral do
exército, a própria Guarda Nacional parecia ser um mero apêndice das tropas de linha. Finalmente, a 13
de junho seu poder foi quebrado, e não só por sua dissolução parcial, que daí por diante repetiu-se
periodicamente por toda a França, até que dela restaram apenas meros fragmentos. A manifestação de 13
de junho fora, sobretudo, uma manifestação da Guarda Nacional democrática. Não tinham, .é verdade,
empunhado armas contra o exército, e sim envergado apenas sua farda; precisamente nessa farda, porém,
estava o talismã. O exército convenceu-se de que esse uniforme era um pedaço de lã como qualquer
outro. Quebrou-se o encanto. Nas jornadas de junho de 1848 a burguesia e a pequena burguesia, na
qualidade de Guarda Nacional, se tinham unido ao exército contra o proletariado; a 13 de junho de 1849
a burguesia fez dispersar a Guarda Nacional pequeno-burguesa pelo exército; a 2 de dezembro de 1851
desapareceu a própria Guarda Nacional burguesa e Bonaparte limitou-se a registrar esse fato quando
subseqüentemente assinou o decreto de sua dissolução. A burguesia destruiu assim sua derradeira arma
contra o exército, mas teve de fazê-lo em um momento no qual a pequena burguesia não mais a seguia
como vassalo e sim levantava-se diante dela como rebelde, como de maneira geral teria forçosamente
que destruir com suas próprias mãos todos os seus meios defesa contra o absolutismo, tão logo se
tornasse ela própria absolutista.
Enquanto isso, o partido da ordem celebrava a reconquista do poder que parecia ter-lhe escapado em
1848, apenas para voltar em 1849 sem limite algum, e celebrava-a por meio de invectivas contra a
república e a Constituição, com maldições contra todas as revoluções presentes, passadas e futuras,
inclusive as organizadas por seu próprio dirigente e por meio de leis que amordaçavam a imprensa,
destruíam o direito de associação e faziam do estado de sítio uma instituição regular, orgânica. A
Assembléia Nacional suspendeu então seus trabalhos desde meados de agosto até meados de outubro,
depois de ter designado uma comissão permanente para representá-la durante o período de recesso.
Durante esse recesso, os legitimistas conspiraram em Ems, os orleanistas em Claremont, Bonaparte por
meio de excursões principescas, e os Conselhos Departamentais nas deliberações sobre a revisão da
Constituição - incidentes que geralmente ocorrem nos períodos de recesso da Assembléia Nacional e que
só comentarei quando constituírem acontecimentos. Basta acrescentar aqui que a Assembléia Nacional
agiu impoliticamente desaparecendo de cena durante longos intervalos e deixando que aparecesse à
frente da república uma única e mesmo assim triste figura, a de Luís Bonaparte, enquanto para escândalo
do público o partido da ordem fragmentava-se em seus componentes monarquistas e entregava-se às suas
divergências internas sobre a Restauração monárquica. Tantas vezes emudecia durante esses recessos o
barulho confuso do Parlamento e seus membros dissolviam-se pela nação, quantas se tornava
indubitavelmente claro que só faltava uma coisa para completar o verdadeiro caráter dessa república:
tornar permanente o recesso e substituir a Liberté, Égalité, Fraternité, pelas palavras inequívocas:
Infantaria, Cavalaria, Artilharia!
Capítulo IV
Em meados de outubro de 1849 a Assembléia Nacional reuniu-se uma vez mais. A lo. de novembro
Bonaparte surpreendeu-a com uma mensagem em que anunciava a demissão do ministério
Barrot-Falloux e a formação de um novo ministério. Jamais alguém demitiu lacaios com tanta
sem-cerimônia como Bonaparte a seus ministros. Os pontapés destinados à Assembléia Nacional foram,
no momento, dados em Barrot e companhia.
O ministério Barrot, como vimos, fora composto de legitimistas e orleanistas, um ministério do partido
da ordem. Bonaparte necessitava dele para dissolver a Assembléia Constituinte republicana, para levar a
cabo a expedição contra Roma e para destroçar o partido democrático. Eclipsara-se aparentemente detrás
desse ministério, entregara o poder governamental nas mãos do partido da ordem e assumira o modesto
disfarce que o editor-responsável de um jornal usara sob Luís Filipe, a máscara de homme de paille(12).
Agora arremessava fora essa máscara que não constituía mais o véu diáfano atrás do qual podia esconder
sua fisionomia, e sim uma máscara de ferro que o impedia de exibir uma fisionomia própria. Nomeara o
ministério Barrot com o objetivo de quebrar a Assembléia Nacional em nome do partido da ordem;
destituiu-o a fim de declarar-se independente da Assembléia Nacional do partido da ordem.
Não faltavam pretextos plausíveis para essa destituição. O ministério Barrot descuidava-se inclusive do
decoro que teria permitido com que o presidente da República aparecesse como um poder ao lado da
Assembléia Nacional. Durante o recesso da Assembléia Nacional, Bonaparte publicou uma carta dirigida
a Edgar Ney na qual parecia desaprovar a atitude liberal do Papa, da mesma forma que, quando se
opusera à Assembléia Constituinte, publicara uma carta na qual elogiava Oudinot pelo ataque contra a
república romana. Quando a Assembléia Nacional votou os créditos para a expedição romana, Victor
Hugo, por um pretenso liberalismo, levantou a questão da carta. O partido da ordem sufocou com
clamores despicientemente incrédulos a idéia de que os caprichos de Bonaparte pudessem ter qualquer
importância política. Nenhum dos ministros levantou a luva em favor dele. Em outra ocasião, Barrot,
com sua conhecida retórica oca, deixou escapar da tribuna palavras de indignação sobre as "abomináveis
intrigas" que, segundo afirmava, se teciam nos círculos mais chegados ao presidente. Finalmente, embora
o ministério tivesse obtido da Assembléia Nacional uma pensão de viuvez para a duquesa de Orléans,
rejeitava toda e qualquer proposta que visasse a aumentar a Lista Civil do presidente. E em Bonaparte o
pretendente imperial estava tão intimamente ligado com o aventureiro em maré de pouca sorte que sua
grande idéia, a de que era chamado a restaurar o império, era sempre suplementada pela outra, de que o
povo francês tinha a missão de pagar suas dívidas.
O ministério Barrot-Falloux foi o primeiro e último ministério parlamentar criado por Bonaparte. Sua
destituição assinala, por conseguinte, uma reviravolta decisiva. O partido da ordem perdeu assim, para
nunca mais reconquistar, uma posição indispensável para a manutenção do regime parlamentar, a
alavanca do Poder Executivo. Torna-se imediatamente óbvio que em um país como a França, onde o
Poder Executivo controla um exército de funcionários que conta mais de meio milhão de indivíduos e
portanto mantém uma imensa massa de interesses e de existências na mais absoluta dependência; onde o
Estado enfeixa, controla, regula, superintende e mantém sob tutela a sociedade civil, desde suas mais
amplas manifestações de vida até suas vibrações mais insignificantes, desde suas formas mais gerais de
comportamento até a vida privada dos indivíduos; onde através da mais extraordinária centralização, esse
corpo de parasitas adquire uma ubiqüidade, uma onisciência, uma capacidade de acelerada mobilidade e
uma elasticidade que só encontra paralelo na dependência desamparada, no caráter caoticamente informe
do próprio coro social - compreende-se que em semelhante país a Assembléia Nacional perde toda a
influência real quando perde o controle das pastas ministeriais, se não simplifica ao mesmo tempo a
administração do Estado, reduz o corpo de oficiais do exército ao mínimo possível e, finalmente, deixa a
sociedade civil e a opinião pública criarem órgãos próprios, independentes do poder governamental. Mas
é precisamente com a manutenção dessa dispendiosa máquina estatal em suas numerosas ramificações
que os interesses materiais da burguesia francesa estão entrelaçados da maneira mais íntima. Aqui
encontra postos para sua população excedente e compensa sob forma de vencimentos o que não pode
embolsar sob a forma de lucros, juros, rendas honorários. Por outro lado, seus interesses políticos
forçavam-na a aumentar diariamente as medidas de repressão e, portanto, os recursos e o pessoal do
poder estatal, enquanto tinha ao mesmo tempo que empenhar-se em uma guerra ininterrupta contra a
opinião pública e receosamente mutilar e paralisar os órgãos independentes do movimento social, onde
não conseguia amputá-los completamente. A burguesia francesa viu-se assim competida por sua posição
de classe a aniquilar, por um lado, as condições vitais de todo o poder parlamentar e portanto inclusive o
seu próprio, e, por outro lado, a tornar irresistível o Poder Executivo que lhe era hostil.
O novo ministério chamava-se ministério d'Hautpoul. Não no sentido de que o general d'Hautpoul tivesse
recebido o cargo de primeiro-ministro. Simultaneamente com a destituição de Barrot, Bonaparte abolira
essa dignidade que, é bem verdade, condenava o presidente da República à situação de nulidade legal de
um monarca constitucional, p0rém um monarca constitucional sem trono nem coroa, sem cetro nem
espada, sem direito à irresponsabilidade, sem a posse imprescritível da mais alta dignidade do Estado e,
pior que tudo, sem Lista Civil. O ministério d'Hautpoul possuía apenas um homem de projeção
parlamentar, o agiota Fould, um dos elementos mais notórios da alta finança. Coube-lhe a pasta da
Fazenda. Consultando-se as cotações da Bolsa de Paris verifica-se que de 1o. de novembro de 1848 em
diante os fonds(13) do governo francês sobem e descem com a subida ou a queda das ações
bonapartistas. Enquanto Bonaparte encontrara assim seu aliado na Bolsa, chamou a si ao mesmo tempo o
controle da polícia, nomeando Carlier Chefe de Polícia de Paris.
Só no curso dos acontecimentos, porém, poderiam revelar-se as conseqüências da substituição de
ministros. Em primeiro lugar, Bonaparte dera um passo à frente apenas para ser empurrado novamente
para trás de maneira ainda mais conspícua. Sua mensagem brusca foi seguida da mais servil declaração
de fidelidade à Assembléia Nacional. Sempre que os ministros ousavam fazer uma tentativa tímida de
introduzir seus caprichos pessoais como propostas legislativas, eles mesmos pareciam realizar, só a
contragosto e compelidos pelo cargo, dèmarches cômicas de cuja improficiência estavam de antemão
convencidos. Sempre que Bonaparte declarava intempestivamente suas intenções às escondidas dos
ministros e entretinha-se com suas idées napoléoniennes(14) seus próprios ministros desautorizavam-no
da tribuna da Assembléia Nacional. Seus anseios de usurpação pareciam fazer-se ouvir apenas para que
não silenciassem os risos malévolos de seus adversários. Comportava-se como um gênio
incompreendido, a quem o mundo inteiro toma por um idiota. Nunca desfrutou o desprezo de todas as
classes de maneira mais completa do que durante esse período. Nunca a burguesia governou de maneira
mais absoluta, nunca exibiu com maior ostentação as insígnias de seu poder.
Não preciso entrar aqui na história de sua atividade legislativa, que se resume, neste período, em duas
leis: a lei restabelecendo o imposto sobre o vinho e a lei do ensino abolindo a irreligiosidade. Se o
consumo do vinho foi dificultado aos franceses, em compensação era-lhes servido em abundância o licor
da eternidade. Se na lei do imposto do vinho a burguesia declarava inviolável o velho e odioso sistema
tributário francês, procurava através da lei do ensino assegurar entre as massas o velho estado de espírito
conformista. É espantoso ver os orleanistas, os burgueses liberais, esses velhos apóstolos do
voltairianismo e da filosofia eclética, confiarem a seus inimigos tradicionais, os jesuítas, a supervisão do
espírito francês. Por mais que divergissem os orleanistas e legitimistas a respeito dos pretendentes ao
trono, compreendiam que para assegurar seu domínio unificado era necessário unificar os meios de
repressão de duas épocas, que os meios de subjugação da monarquia de julho tinham que ser
complementados e reforçados com os meios de subjugação da Restauração.
Os camponeses, desapontados em todas as suas esperanças, esmagados mais do que nunca, de um lado
pelo baixo nível dos preços do grão e de outro pelo aumento dos impostos e das dívidas hipotecárias,
começaram a agitar-se nos Departamentos. A resposta foi urna investida contra os mestres-escolas, que
foram submetidos ao clero, uma investida contra os maíres(15) , que foram submetidos aos alcaides, e
um sistema de espionagem, ao qual todos estavam sujeitos. Em Paris e nas grandes cidades a própria
reação reflete o caráter da época, e provoca mais do que reprime.
No campo torna-se monótona, vulgar, mesquinha, cansativa e vexatória - em suma, o gendarme.
Compreende-se como três anos de regime de gendarme, consagrado pelo regime da Igreja, tinham
forçosamente que enfraquecer a massa imatura.
Por maior que fosse o entusiasmo e a eloqüência empregada pelo partido da ordem contra a minoria, do
alto da tribuna da Assembléia Nacional, seus discursos permaneciam monossilábicos como os dos
cristãos, cujas palavras devem se limitar a sim; sim, não, não! Tão monossilábicos na tribuna como na
imprensa. Insípidos como uma charada cuja solução já é conhecida. Quer se tratasse do direito de petição
ou do imposto sobre o vinho, da liberdade de imprensa ou da liberdade de comércio, de clubes ou da
carta municipal, da proteção da liberdade individual ou da regulamentação do orçamento do Estado, a
senha se repete constantemente, o tema permanece sempre o mesmo, o veredito está sempre pronto e reza
invariavelmente: socialismo. Até o liberalismo burguês é declarado socialista, o desenvolvimento
cultural da burguesia é socialista, a reforma financeira burguesa é socialista. Era socialismo construir
urna ferrovia onde já existisse um canal, e era socialismo defender-se com um porrete quando se era
atacado com um florete.
Isto não era mera figura de retórica, questão de moda ou tática partidária. A burguesia tinha urna noção
exata do fato de que todas as armas que forjara contra o feudalismo voltavam seu gume Contra ela, que
todos os meios de cultura que criara rebelavam-se contra sua própria civilização, que todos os deuses que
inventara a tinham abandonado. Compreendia que todas as chamadas liberdades burguesas e órgãos e
progresso atacavam e ameaçavam seu domínio de classe, e tinham, portanto, se convertido em
"socialistas". Nessa ameaça e nesse ataque ela discernia com acerto o segredo do socialismo, cujo sentido
e tendência avaliava com maior precisão do que o próprio pretenso socialismo; este não pode
compreender por que a burguesia endurece cruelmente seu coração contra ele, se ele lamenta com
sentimentalismo os sofrimentos da humanidade, ou se profetiza com espírito cristão a era milenar e a
fraternidade universal, ou se em estilo humanista palreia sobre o espírito, a cultura e a liberdade, ou se à
moda doutrinária excogita de um sistema para a conciliação e bem-estar de todas as classes. O que a
burguesia não alcançou, porém, foi a conclusão lógica de que seu próprio regime parlamentar, seu poder
político de maneira geral, estava agora também a enfrentar o veredito condenatório geral de socialismo.
Enquanto o domínio da classe burguesa não se tivesse organizado completamente, enquanto não tivesse
adquirido sua pura expressão política, o antagonismo das outras classes não podia, igualmente,
mostrar-se em sua forma pura, e onde aparecia não podia assumir o aspecto perigoso que converte toda
luta contra o poder do Estado em uma luta contra o capital. Se em cada vibração de vida na sociedade,
ela via a "tranqüilidade" ameaçada, como podia aspirar a manter à frente da sociedade um regime de
desassossego, seu próprio regime, o regime parlamentar, esse regime que, segundo a expressão de um de
seus porta-vozes, vive em luta e pela luta? O regime parlamentar vive do debate; como pode proibir os
debates? Cada interesse, cada instituição social, é transformado aqui em idéias gerais, debatido como
idéias; como pode qualquer interesse, qualquer instituição, afirmar-se acima do pensamento e impor-se
como artigo de fé? A luta dos oradores na tribuna evoca a luta dos escribas na imprensa; o clube de
debates do Parlamento é necessariamente suplementado pelos clubes de debates dos salões e das
tabernas; os representantes, que apelam constantemente para a opinião pública, dão à opinião pública o
direito de expressar sua verdadeira opinião nas petições. O regime parlamentar deixa tudo à decisão das
maiorias; como então as grandes maiorias fora do Parlamento não hão de querer decidir? Quando se toca
música nas altas esferas do Estado, que se pode esperar dos que estão embaixo, senão que dancem?
Assim, denunciando agora como "socialista" tudo o que anteriormente exaltara como "liberal", a
burguesia reconhece que seu próprio interesse lhe ordena subtrair-se aos perigos do self-government;(16)
que, a fim de restaurar a calma no país, é preciso antes de tudo restabelecer a calma no seu Parlamento
burguês; que a fim de preservar intacto o seu poder social, seu poder político deve ser destroçado; que o
burguês particular só pode continuar a explorar as outras classes e a desfrutar pacatamente a propriedade,
a família, a religião e a ordem sob a condição de que sua classe seja condenada, juntamente com as
outras, à mesma nulidade política; que, a fim de salvar sua bolsa, deve abrir mão da coroa, e que a espada
que a deve salvaguardar é fatalmente também uma espada de Dâmocles suspensa sobre sua cabeça.
No campo dos interesses gerais da burguesia a Assembléia Nacional mostrava-se tão improdutiva que,
por exemplo, os debates sobre a estrada de ferro Paris-Avignon, que começaram no inverno de 1850, não
tinham sido concluídos ainda a 2 de dezembro de 1851. Onde não reprimia ou exercia uma atuação
reacionária, estava atacada de incurável esterilidade.
Enquanto o ministério assumia em parte a iniciativa de formular leis dentro do espírito do partido da
ordem, e em parte superava mesmo a violência daquele partido na execução e fiscalização das mesmas, o
próprio Bonaparte, por outro lado, através de propostas tolas e infantis, tentava ganhar popularidade,
ressaltar sua oposição à Assembléia Nacional, e aludir a reservas secretas que estavam apenas
temporariamente impedidas pela situação de porem seus tesouros ocultos à disposição do povo francês.
Para isso, opôs que se decretasse um aumento de quatro sous(17) por dia no soldo dos suboficiais; para
isso, propôs a criação de um banco para conceder créditos de honra aos operários. Dinheiro como dádiva
e dinheiro como empréstimo, era com perspectivas como essas que esperava atrair as massas. Donativos
e empréstimos - resume-se nisso a ciência financeira do lúmpen proletariado, tanto de alto como de baixo
nível. Essas eram as únicas alavancas que Bonaparte sabia movimentar. Nunca um pretendente especulou
mais vulgarmente com a vulgaridade das massas.
A Assembléia Nacional inflamou-se repetidas vezes com essas inegáveis tentativas de ganhar
popularidade à sua custa, com o crescente perigo de que esse aventureiro, esporeado pelas dividas e sem
reputação que o freasse, se lançasse a um golpe desesperado. A divergência entre o partido da ordem e o
presidente assumira um caráter ameaçador quando um acontecimento inesperado atirou o segundo,
contrito, nos braços do primeiro. Referimo-nos às eleições suplementares de 10 de março de 1850. Essa
eleição foi realizada com o propósito de preencher as cadeiras de deputados que haviam ficado vazias
depois de 13 de junho em virtude da prisão ou do exílio de seus ocupantes. Paris elegeu apenas
candidatos social-democratas. Concentrou mesmo a maioria dos votos em um insurreto de junho de
1848, Deflotte. Assim a pequena burguesia de Paris, aliada ao proletariado, vingou-se da derrota sofrida
a 13 de junho de 1849. O proletariado parecia ter-se afastado do campo de batalha na hora do perigo só
para reaparecer em ocasião mais propicia com maior número de combatentes e um grito de guerra mais
audaz. Uma circunstância parecia ressaltar o perigo dessa vitória eleitoral. O exército votou em Paris a
favor do insurreto de junho e contra La Hitte, ministro de Bonaparte, e nos departamentos principalmente
a favor dos montagnards, que também aqui, embora de maneira não tão decisiva como em Paris,
mantinham ascendência sobre seus adversários.
Bonaparte viu-se de repente confrontado outra vez com a revolução. Da mesma forma que a 29 de
janeiro de 1849 e a 13 de junho de 1849, também, a 10 de março de 1850, desapareceu atrás do partido
da ordem. Rendeu-lhe tributo, pediu perdão de maneira pusilânime, prontificou-se a nomear o ministério
que quisessem por indicação da maioria parlamentar, chegou ao ponto de implorar aos dirigentes dos
partidos orleanistas e legitimistas, aos Thiers, Berryers, Brogliés, Molés, em suma aos chamados
burgraves, que assumissem eles próprios a direção do Estado. O partido da ordem mostrou-se incapaz de
se beneficiar com essa oportunidade que não mais se repetiria. Em vez de assumir corajosamente o poder
que lhe era oferecido, nem sequer obrigou Bonaparte a reintegrar o ministério que dissolvera a lo. de
novembro; contentou-se em humilhá-lo com seu perdão e incorporar o Sr. Baroche ao ministério
d'Hautpoul. Na qualidade de promotor público esse Baroche investira e debatera perante o Supremo
Tribunal de Bourges, a primeira a vez contra os revolucionários de 15 de maio, a segunda contra os
democratas de 13 de junho, ambas as vezes a pretexto de atentado contra a Assembléia Nacional. Pois
bem: nenhum dos ministros de Bonaparte contribuiu mais, subseqüentemente, para a degradação da
Assembléia Nacional, e depois de 2 de dezembro de 1851 encontramo-lo novamente bem instalado e
muitíssimo bem pago como vice-presidente do Senado. Cuspira na sopa dos revolucionários para que
Bonaparte pudesse tomá-la.
O partido social-democrata, por seu lado, parecia apenas procurar pretextos para pôr novamente em
dúvida sua vitória e quebrar sua agressividade. Vidal, um dos representante recém-eleitos por Paris, fora
eleito simultaneamente por Estrasburgo. Induziram-no a abrir mão da diplomação por Paris e aceitar a de
Estrasburgo. E assim, em vez de tornar definitiva sua vitória nas urnas e obrigar portanto o partido da
ordem a contestá-la imediatamente no Parlamento, em vez de forçar o adversário a lutar em um momento
de entusiasmo popular e em que o exército se mostrava favorável, o partido democrata esgotou Paris
durante os meses de março e abril com uma nova campanha eleitoral, deixou que a exaltação das paixões
populares se perdesse nesse repetido jogo eleitoral, deixou que a energia revolucionária se saciasse com
os êxitos constitucionais, se dissipasse em intrigas mesquinhas, oratória oca e manobras falsas, deixou
que a burguesia reunisse suas forças e fizesse seus preparativos e, finalmente, permitiu que o significado
das eleições de março encontrasse um comentário sentimentalmente enfraquecedor na eleição
suplementar de abril, em que foi eleito Eugène Sue. Em resumo, transformou o 10 de março em um 1o.
de abril.
A maioria parlamentar percebeu a debilidade de seu adversário. Seus 17 burgraves - pois Bonaparte
deixara-lhes a direção e a responsabilidade do ataque - elaboraram uma nova lei eleitoral cuja
apresentação foi confiada ao Sr. Faucher, que solicitou essa honra para si. A 8 de maio apresentou a lei
segundo a qual seria abolido o sufrágio universal, seria imposta a condição de que os eleitores residissem
pelo menos três anos na circunscrição eleitoral e, finalmente, tornaria a prova de domicilio dependente,
no caso dos operários, de um atestado fornecido pelos patrões.
Da mesma forma por que os democratas tinham, em estilo revolucionário, agitado os espíritos e feito
demonstrações de violência durante a campanha eleitoral constitucional, agora, quando se tornava
necessário provar o caráter sério dessa vitória de armas na mão, em estilo constitucional pregavam a
ordem, "majestosa serenidade", a atuação legal, ou seja, a submissão cega à vontade da contra-revolução,
que se impunha como lei. Durante os debates, a Montanha cobriu de vergonha o partido da ordem,
afirmando, contra a paixão revolucionária do último, a atitude desapaixonada do filisteu que se mantém
dentro da lei, e fulminando aquele partido com a censura terrível de que procedera de maneira
revolucionária. Mesmo os deputados recém-eleitos se esmeravam em provar, com sua atitude correta e
discreta, o absurdo que era atacá-los como anarquistas e atribuir sua eleição a uma vitória da revolução.
A 31 de maio foi aprovada a nova lei eleitoral. A Montanha contentou-se em enfiar sorrateiramente um
protesto no bolso do presidente da assembléia. À lei eleitoral seguiu-se uma nova lei de imprensa, pela
qual a imprensa revolucionária foi totalmente suprimida. Merecera essa sorte. O National e La Presse,
dois órgãos burgueses, ficaram depois desse dilúvio como a guarda mais avançada da revolução.
Vimos como durante os meses de março e abril os dirigentes democráticos haviam feito tudo para
envolver o povo de Paris em uma luta falsa e como, depois de 8 de maio, fizeram tudo para desviá-lo da
luta efetiva. Além disso, não devemos esquecer que o ano de 1850 foi um dos anos mais esplêndidos de
prosperidade industrial e comercial, e o proletariado de Paris atravessa, assim, uma fase de pleno
emprego. A lei eleitoral de 31 de maio de 1850, porém, o excluiu de qualquer participação no poder
político. Isolou-o da própria arena. Atirou novamente os operários à condição de párias que haviam
ocupado antes da Revolução de Fevereiro. Deixando-se dirigir pelos democratas diante de um tal
acontecimento e esquecendo os interesses revolucionários de sua classe por um bem-estar momentâneo,
os operários renunciaram à honra de se tomarem uma força vencedora, submeteram-se a sua sorte,
provaram que a derrota de junho de 1848 os pusera fora de combate por muitos anos e que o processo
histórico teria por enquanto que passar por cima de suas cabeças. No que concerne à pequena burguesia -
que a 13 de junho gritara: "Mas se ousarem investir contra o sufrágio universal, bem, então lhes
mostraremos de que somos capazes!" - contentava-se agora em discutir que o golpe
contra-revolucionário que a atingira não era golpe e que a lei de 31 de maio não era lei. No segundo
domingo de maio de 1852 todos os franceses compareceriam às urnas empunhando em uma das mãos a
cédula eleitoral e na outra a espada. Satisfez-se com essa profecia. Finalmente, o exército foi punido por
seus oficiais superiores em vista das eleições de março e abril de 1850, como o tinha sido a 28 de maio
de 1849. Desta vez, porém, declarou com decisão: "A revolução não nos enganará uma terceira vez."
A lei de 31 de maio de 1850 era o golpe de Estado da burguesia. Todas as vitórias até então conquistadas
sobre a revolução tinham tido apenas um caráter provisório. Viam-se ameaçadas assim que cada
Assembléia Nacional saía de cena. Dependiam dos riscos de uma nova eleição geral, e a história das
eleições a partir de 1848 demonstrava irrefutavelmente que a influência moral da burguesia sobre as
massas populares ia-se perdendo na mesma medida em que se desenvolvia seu poder efetivo. A 10 de
março o sufrágio universal declarou-se diretamente contrário à dominação burguesa; a burguesia
respondeu pondo fora da lei o sufrágio universal. A lei de 31 de maio era, portanto, uma das necessidades
da luta de classes. Por outro lado, a Constituição estabelecia um mínimo de 2 milhões de votos para
tornar válidas a eleição do presidente da República. Se nenhum dos candidatos à presidência recebesse
esse mínimo de sufrágios, a Assembléia Nacional deveria escolher o presidente entre os três candidatos
mais votados. Na época em que a Assembléia Constituinte elaborara essa lei as listas eleitorais
registravam 10 milhões de eleitores. Em sua opinião, portanto, um quinto do eleitorado era suficiente
para tornar válida a eleição presidencial. A lei de 31 de maio cortou das listas eleitorais pelo menos 3
milhões de votantes, reduziu para 7 milhões o número de eleitores e, não obstante, manteve o mínimo
legal de 2 milhões de votos para a eleição presidencial. Elevou por conseguinte o mínimo legal de um
quinto para quase um terço dos eleitores, ou seja, fez tudo para retirar a eleição do presidente das mãos
do povo e entregá-la nas mãos da Assembléia Nacional. Assim, através da lei eleitoral de 31 de maio, o
partido da ordem parecia ter tornado seu domínio duplamente garantido, entregando a eleição da
Assembléia Nacional e do presidente da República ao setor mais estacionário da sociedade.
Capítulo V
Uma vez superada a crise revolucionária e abolido o sufrágio universal, irrompeu novamente a luta entre
a Assembléia Nacional e Bonaparte.
A Constituição fixara em 600 mil francos o estipêndio de Bonaparte. Dentro de pouco mais de seis meses
após sua posse ele conseguiu elevar para o dobro essa importância, pois Odilon Barrot arrancou da
Assembléia Nacional Constituinte uma verba suplementar de 600 mil francos para despesas ditas de
representação. Depois do 13 de junho, Bonaparte provocara solicitações semelhantes, sem, contudo,
despertar o apoio de Barrot. Agora, depois de 31 de maio, valeu-se imediatamente do momento favorável
para fazer com que seus ministros propusessem à Assembléia Nacional uma Lista Civil de 3 milhões.
Uma longa vida de vagabundagem aventureira dotara-o de sensíveis antenas para sondar os momentos de
fraqueza em que poderia extorquir dinheiro de seus burgueses. Praticava uma chantage en règle.(18) A
Assembléia Nacional violara a soberania do povo com sua ajuda e aquiescência. Ele ameaçava denunciar
esse crime ao tribunal do povo a menos que a Assembléia afrouxasse os cordões da bolsa e comprasse
seu silêncio por 3 milhões anuais. A Assembléia despojara 3 milhões de franceses do direito de voto. Ele
exigia para cada francês posto fora da circulação um franco em moeda circulante ou seja, precisamente 3
milhões de francos. Ele, o eleito de 6 milhões, reclamava indenização pelos votos que, segundo
declarava, tinham-lhe sido retrospectivamente roubados. A Comissão da Assembléia Nacional repeliu o
inoportuno. A imprensa bonapartista ameaçou. Podia a Assembléia Nacional romper com o presidente da
República em um momento em que rompera definitivamente, no fundamental, com a massa da nação?
Rejeitou a Lista Civil, é verdade, mas concedeu, por essa única vez, uma verba suplementar de 2 milhões
160 mil francos. Tornou-se assim culpada da dupla fraqueza de conceder verbas e demonstrar ao mesmo
tempo, com sua irritação, que o fazia a contragosto. Veremos mais adiante para que fins Bonaparte
necessitava do dinheiro. Após esses sucessos vexatórios, que seguiram imediatamente a abolição do
sufrágio universal e nos quais Bonaparte substituiu a atitude humilde que adotara durante a crise de
março e abril pela impudência desafiadora do Parlamento usurpador, a Assembléia Nacional suspendeu
suas sessões por três meses, de 11 de agosto a 11 de novembro. Em seu lugar deixou uma Comissão
Permanente de 28 membros, que embora não incluísse nenhum bonapartista incluía alguns republicanos
moderados. A Comissão Permanente de 1849 incluíra apenas homens do partido da ordem e
bonapartistas. Mas naquela época o partido da ordem se declarava firmemente contrário à revolução.
Desta vez a república parlamentar declarou-se firmemente contraria ao presidente. Depois da lei de 31 de
maio, era este o único rival com que se defrontava ainda o partido da ordem.
Quando a Assembléia Nacional reuniu-se novamente em novembro de 1850, parecia que, em vez das
mesquinhas escaramuças que tivera até então com o presidente, uma grande luta implacável, uma luta de
vida ou de morte entre o dois poderes, tornara-se inevitável.
Da mesma forma que em 1849, também durante o recesso parlamentar desse ano, o partido da ordem
fragmentara-se em facções distintas, cada qual ocupada com suas próprias intrigas de Restauração, que
haviam adquirido novas forças com a morte de Luís Filipe. O rei legitimista, Henrique V, chegara a
nomear um ministério formal, que residia em Paris e do qual participavam membros da Comissão
Permanente. Bonaparte, por sua vez, tinha assim o direito de empreender uma excursão pelos
Departamentos da França e, dependendo da recepção que encontrava nas cidades que honrava com sua
presença, divulgar, mais ou menos veladamente ou mais ou menos abertamente, seus próprios planos de
Restauração e cabalar partidários. Nessas excursões, que o grande Moniteur oficial e os pequenos
Moniteurs privados de Bonaparte tinham naturalmente que celebrar como triunfais, o presidente era
constantemente acompanhado por elementos filiados à Sociedade de 10 de Dezembro. Essa sociedade
originou-se em 1849. A pretexto de fundar uma sociedade beneficente o lúmpen-proletariado de Paris
fora organizado em facções secretas, dirigidas por agentes bonapartistas e sob a chefia geral de um
general bonapartista. Lado a lado com roués decadentes, de fortuna duvidosa e de origem duvidosa, lado
a lado com arruinados e aventureiros rebentos da burguesia, havia vagabundos, soldados desligados do
exército, presidiários libertos, forçados foragidos das galés, chantagistas, saltimbancos, lazzarani,
punguistas, trapaceiros, jogadores, maquereaus(19), donos de bordéis, carregadores, líterati, tocadores de
realejo, trapeiros, amoladores de facas, soldadores, mendigos - em suma, toda essa massa indefinida e
desintegrada, atirada de ceca em meca, que os franceses chamam la bohêmne; com esses elementos afins
Bonaparte formou o núcleo da Sociedade de 10 de Dezembro. "Sociedade beneficente" no sentido de que
todos os seus membros, como Bonaparte, sentiam necessidade de se beneficiar às expensas da nação
laboriosa; esse Bonaparte, que se erige em chefe do lúmpen-proletariado, que só aqui reencontra, em
massa, os interesses que ele pessoalmente persegue, que reconhece nessa escória, nesse refugo, nesse
rebotalho de todas as classes a única classe em que pode apoiar-se incondicionalmente, é o verdadeiro
Bonaparte, o Bonaparte sans phrase. Velho e astuto roué, concebe a vida histórica das nações e os
grandes feitos do Estado como comédia em seu sentido mais vulgar, como uma mascarada onde as
fantasias, frases e gestos servem apenas para disfarçar a mais tacanha vilania. Assim foi na sua expedição
a Estrasburgo, em que um corvo suíço amestrado desempenhou o papel da águia napoleônica. Para a sua
irrupção em Boulogne veste alguns lacaios londrinos em uniformes franceses; eles representam o
exército. Na sua Sociedade de 10 de Dezembro reúne dez mil indivíduos desclassificados, que deverão
desempenhar o papel do povo como Nick Bottom representara o papel do leão. Em um momento em que
a própria burguesia representava a mais completa comédia, mas com a maior seriedade do mundo, sem
infringir qualquer das condições pedantes da etiqueta dramática francesa, e estava ela própria meio
iludida e meio convencida da solenidade de sua própria maneira de governar, o aventureiro que
considerava a comédia como simples comédia tinha forçosamente que vencer. Só depois de eliminar seu
solene adversário, só quando ele próprio assume a sério o seu papel imperial, e sob a máscara
napoleônica imagina ser o verdadeiro Napoleão, só aí ele se torna vítima de sua própria concepção do
mundo, o bufão sério que não mais toma a história universal por uma comédia e sim a sua própria
comédia pela história universal. O que os ateliers nacionais eram para os operários socialistas, o que os
Gardes mobiles eram para os republicanos burgueses, a Sociedade de 10 de Dezembro, a força de luta do
partido característico de Bonaparte, era para ele. Em suas viagens, os destacamentos dessa sociedade,
superlotando as estradas de ferro, tinham que improvisar público, encenar entusiasmo popular, urrar vive
l'Empereur, insultar e espancar republicanos; tudo, é claro, sob a proteção da polícia. Nas viagens de
regresso a Paris tinham que formar a guarda avançada, impedir ou dispersar manifestações contrárias. A
Sociedade de 10 de Dezembro pertencia-lhe, era obra sua, idéia inteiramente sua. Tudo mais de que se a
própria é posto em suas mãos pela força das circunstâncias; tudo o mais que faz é obra das circunstâncias
ou simples cópia dos feitos de outros. Mas o Bonaparte que se apresenta em público, perante os cidadãos,
com frases oficiais sobre a ordem, a religião, a família e a propriedade, trazendo atrás de si a sociedade
secreta dos Schufterles e Spiegelberges, a sociedade da desordem, da prostituição e do roubo - esse é o
verdadeiro Bonaparte, o Bonaparte autor original, e a história da Sociedade de 10 de Dezembro é a sua
própria história. Haviam ocorrido casos, porém, de um outro representante do povo pertencente ao
partido da ordem cair sob os porretes dos decembristas. Mais ainda. Yon, o Comissário de Polícia
destacado para a Assembléia Nacional e encarregado de velar por sua segurança, baseando-se no
testemunho de um certo Alais denunciou à Comissão Permanente que uma facção decembrista resolvera
assassinar o general Changarnier e Dupin, presidente da Assembléia Nacional, tendo já designado os
indivíduos que deveriam perpetrar o feito. Compreende-se o pavor do Sr. Dupin. Parecia inevitável um
inquérito parlamentar sobre a Sociedade de 10 de Dezembro, ou seja, a profanação do mundo secreto de
Bonaparte. Pouco antes de se reunir a Assembléia Nacional, porém, este último previdentemente
dissolveu a sua sociedade, mas claro que só no papel pois em um longo memorial apresentado em fins de
1851 o Chefe de Polícia, Carlier, tentava ainda em vão convencê-lo de dissolver realmente os
decembristas.
A Sociedade de 10 de Dezembro deveria continuar como o exército particular de Bonaparte até que ele
conseguisse transformar o exército regular em uma Sociedade de 10 de Dezembro. A primeira tentativa
de Bonaparte nesse sentido ocorreu pouco depois de a Assembléia Nacional entrar em recesso, e foi
financiada precisamente com as verbas que acabara de extorquir dela. Na sua qualidade de fatalista, ele
vivia e vive ainda imbuído da convicção de que existem certas forças superiores às quais o homem, e
especialmente o soldado, não pode resistir. Entre essas forças estão, antes e acima de tudo, os charutos e
o champanha, as fatias de peru e as salsichas feitas com alho. Consequentemente, começou por obsequiar
oficiais e suboficiais, em seus salões no Eliseu, com charutos e champanha, aves frias e salsichas feitas
com alho. A 3 de outubro repetiu essa manobra com a massa das tropas na revista de St. Maur e a 10 de
outubro a mesma manobra, em maior escala, foi executada na parada militar de Satory. O tio relembrou
as campanhas de Alexandre na Ásia, o sobrinho as marchas triunfais de Baco pelas mesmas terras.
Alexandre era, certamente, um semideus, mas Baco era deus inteiro e, além disso, o deus tutelar da
Sociedade de 10 de Dezembro.
Depois da revista de 3 de outubro a Comissão Permanente convocou o ministro da Guerra, d'Hautpoul.
Este prometeu que tais infrações da disciplina não mais se repetiriam. Sabemos como Bonaparte
cumpriu, a 10 de outubro, a palavra empenhada por d'Hautpoul. Na qualidade de comandante-geral do
exército de Paris, Changarnier comandara as duas paradas. Sendo, ao mesmo tempo, membro da
Comissão Permanente, chefe da Guarda Nacional, "salvador" de 29 de janeiro e de 13 de junho, "baluarte
da sociedade", candidato do partido da ordem às honras presidenciais, o suspeito Monk de duas
monarquias, ele nunca admitira até então a sua subordinação ao ministro da Guerra, sempre ridicularizara
abertamente a Constituição republicana e perseguira Bonaparte com uma proteção ambígua e altiva.
Consumia-se agora no zelo pela disciplina, contra o ministro da Guerra, e pela Constituição, Contra
Bonaparte. Enquanto a 10 de outubro uma ala da cavalaria levantava o brado: Vive Napoleón! Vivent les
saucissons!(20) Changarnier providenciou para que pelo menos a infantaria que desfilava sob o comando
de seu amigo Neumayer mantivesse um silêncio glacial. Como Castigo, o ministro da Guerra, por
instigação de Bonaparte, retirou ao general Neumayer o seu comando de Paris, a pretexto de nomeá-lo
general comandante da 14a. e 15a. divisões militares. Neumayer recusou-se a mudar de posto, e teve,
portanto, que demitir-se. Changarnier, por seu turno, publicou a 2 de novembro uma ordem do dia em
que proibia as tropas de participar de tumultos políticos ou de qualquer espécie de manifestações
enquanto estivessem em armas. Os jornais do Eliseu atacaram Changarnier; os jornais do partido da
ordem atacaram Bonaparte; a Comissão Permanente realizou repetidas reuniões secretas, nas quais
propôs repetidas vezes que a pátria fosse declarada em perigo; o exército parecia dividido em dois
campos hostis, com dois estados-maiores hostis, um no Eliseu, onde residia Bonaparte, o outro nas
Tulherias, quartel-general de Changarnier. Parecia faltar apenas que a Assembléia Nacional se reunisse
para que soasse o sinal da luta. O público francês julgou esses atritos entre Bonaparte e Changarnier
como aquele jornalista inglês, que os caracterizou com as seguintes palavras: "As criadas políticas da
França estão varrendo a lava ardente da revolução com vassouras velhas, e discutem entre si enquanto
executam sua tarefa."
Enquanto isso Bonaparte apressava-se em destituir o ministro da Guerra, d'Hautpoul, despachá-lo a toda
a pressa para a Argélia, nomeando o general Schramm para substituí-lo no ministério. A 12 de novembro
enviou à Assembléia Nacional uma mensagem de prolixidade norte-americana, sobrecarregada de
detalhes, redolente de ordem, desejosa de reconciliação, constitucionalmente aquiescente, tratando dos
mais variados assuntos, exceto das questions brûlantes(21) do momento. Como que de passagem,
observava que segundo as disposições expressas da Constituição só o presidente podia dispor do
exército. A mensagem terminava com estas palavras grandiloqüentes:
"Acima de tudo, a França exige tranqüilidade... Preso, porém, por um juramento, manter-me-ei dentro
dos estreitos limites que este juramento estabeleceu para mim... No que me diz respeito, tendo sido eleito
pelo povo e devendo o meu poder exclusivamente a ele, inclinar-me-ei sempre à sua vontade legalmente
manifestada. No caso de decidirdes, nessa sessão, pela revisão da Constituição, uma Assembléia
Constituinte regulamentará a situação do Poder Executivo. Em caso contrário, então o povo pronunciará
solenemente a sua decisão em 1852. Quaisquer que possam ser, porém, as soluções do futuro, cheguemos
a um acordo, para que a paixão, a surpresa ou a violência jamais decidam dos destinos de uma grande
nação... O que me preocupa, acima de tudo, não é quem governará a França em 1852, mas como
empregar o tempo que me resta a fim de que o período interveniente possa decorrer sem agitação ou
perturbação. Abri-vos sinceramente o coração; respondereis a minha franqueza com a vossa confiança,
aos meus bons propósitos com a vossa cooperação, e Deus se encarregará do resto."
A linguagem respeitável, hipocritamente moderada, virtuosamente corriqueira da burguesia, revela seu
significado mais profundo na boca do autocrata da Sociedade de 10 de Dezembro e no herói de
piquenique de St. Maur e Satory.
Os burgraves do partido da ordem não se deixaram iludir nem um só instante com a confiança que
mereciam aqueles derrames do coração. A respeito de juramentos, há muito se haviam tornado
descrentes, pois contavam em seu seio com veteranos e virtuosos do perjúrio político. Não lhes passara,
tampouco, despercebida a passagem sobre o exército. Observaram com desagrado que na sua enfadonha
enumeração de leis recém-promulgadas a mensagem omitia a lei mais importante, a lei eleitoral, com um
silêncio estudado, e, além disso, no caso de não se proceder à reforma da Constituição, deixava ao povo a
eleição do presidente de 1852. A lei eleitoral era a esfera de chumbo acorrentada aos pés do partido da
ordem, que o impedia de andar e, mais ainda, de investir para a frente! Além disso, com a dissolução
oficial da Sociedade de 10 de Dezembro e a exoneração do ministro da Guerra, d'Hautpoul, Bonaparte
sacrificara com suas próprias mãos os bodes expiatórios no altar da pátria. Embotara a agressividade do
choque esperado. Finalmente, o próprio partido da ordem procurava ansiosamente evitar, mitigar, atenuar
qualquer conflito decisivo com o Poder Executivo. Temerosos de perderem as conquistas adquiridas
contra a revolução, permitiram que seus rivais carregassem os frutos das mesmas. "Acima de tudo, a
França exige tranqüilidade." Isto fora o que o partido da ordem gritara à revolução desde fevereiro, isto
era o que a mensagem de Bonaparte gritava ao partido da ordem. "Acima de tudo, a França exige
tranqüilidade." Bonaparte cometia atos que visavam à usurpação, mas o partido da ordem cometia
"desordem" se levantava um alarido contra esses atos e os interpretava com hipocondria. As salsichas de
Satory mantinham-se quietas como ratos se ninguém falava nelas. "Acima de tudo, a França exige
tranqüilidade". Bonaparte exigia, portanto, que o deixassem em paz para agir como lhe aprouvesse, e o
partido parlamentar estava paralisado por um duplo medo, pelo medo de despertar novamente a
intranqüilidade revolucionária e pelo medo de aparecer ele próprio, aos olhos de sua própria classe, aos
olhos da burguesia, como o instigador da intranqüilidade. Consequentemente, uma vez que a França
exigia acima de tudo tranqüilidade, o partido da ordem não ousou responder "guerra" depois que
Bonaparte falou de "paz" em sua mensagem. O público, que esperara cenas de grande escândalo na
reabertura das sessões da Assembléia Nacional viu-se roubado em suas expectativas. Os deputados da
oposição, que exigiam fossem apresentadas as atas da Comissão Permanente sobre os acontecimentos de
outubro, foram derrotados pelos votos da maioria. Eram evitados por princípio todos os debates que
pudessem exaltar os ânimos. Os trabalhos da Assembléia Nacional durante novembro e dezembro de
1850 foram desprovidos de interesse.
Finalmente, por volta de fins de dezembro, começaram as guerrilhas sobre uma série de prerrogativas
parlamentares. O movimento limitava-se às disputas mesquinhas sobre as prerrogativas dos dois poderes,
uma vez que a burguesia liquidara temporariamente a luta de classes, ao abolir o sufrágio universal.
Obtivera-se do tribunal um julgamento por dívidas contra Mauguin, um dos representantes do povo. Em
resposta à solicitação do presidente do Tribunal, o ministro da Justiça, Rouher, declarou que deveria ser
emitido o capias (mandado de prisão) contra o devedor, sem mais delongas. Mauguin foi, assim, atirado à
prisão de devedores. A Assembléia Nacional inflamou-se ao tomar conhecimento do atentado.
Não só ordenou que o preso fosse imediatamente posto em liberdade, como enviou seu greffier(22) para
que o retirasse à força de Clichy naquela mesma noite. Entretanto, a fim de confirmar sua fé na santidade
da propriedade privada e com a intenção oculta de abrir, em caso de necessidade, um abrigo para os
montagnards que se tornassem difíceis, declarou permissível a prisão por dívidas de representantes do
povo desde que fosse previamente obtido o seu consentimento. Esqueceu-se de decretar que também o
presidente poderia ser encarcerado por dívidas. Destruiu a última aparência da imunidade que envolvia
os membros de seu próprio organismo.
Recordemos que, agindo por informação prestada por um certo Mais, o Comissário de Polícia Yon
denunciara que uma ala dos decembristas planejava assassinar Dupin e Changarnier. Com referência a
esse fato, logo na primeira sessão os questores apresentaram uma proposta no sentido de que o
Parlamento deveria constituir uma polícia própria, paga pela verba privada da Assembléia Nacional e
absolutamente independente do Chefe de Polícia. O ministro do Interior, Baroche, protestou contra essa
invasão de seus domínios. Concluiu-se um acordo indigno, segundo o qual, é verdade, o comissário de
polícia da Assembléia seria pago pela verba privada e seria nomeado e exonerado por seus questores,
mas só mediante prévio acordo com o ministro do Interior. Nesse ínterim o governo instaurara processo
criminal contra Mais, sendo fácil apresentar sua informação como falsa e, pela boca do promotor público,
cobrir de ridículo Dupin, Changarnier, Yon e toda a Assembléia Nacional. Em seguida, a 29 de
dezembro, o ministro Baroche escreve uma carta a Dupin, na qual exige a demissão de Yon. A Mesa da
Assembléia Nacional decide manter Yon em seu posto, mas a Assembléia Nacional, alarmada com a
violência com que procedera no caso Mauguin e acostumada, quando se aventurava a assestar um golpe
contra o Poder Executivo, a receber dois golpes de volta, não sanciona essa decisão. Exonera Yon como
recompensa por seu zelo oficial, e despoja-se de uma prerrogativa parlamentar indispensável contra um
homem que não decide de noite para executar de dia, mas que decide de dia e executa à noite.
Vimos como em grandes e importantes ocasiões durante os meses de novembro e dezembro a
Assembléia Nacional evitou ou reprimiu a luta contra o Poder Executivo. Vêmo-la agora compelida a
empreendê-la pelos motivos mais mesquinhos. No caso Mauguin ela confirma o princípio da prisão de
representantes do povo por dívidas, mas reserva-se o direito de aplicá-lo apenas aos representantes que
não lhe sejam gratos, e negocia esse infame privilégio com o ministro da Justiça. Em vez de se valer
desse suposto plano de assassinato para decretar um inquérito na Sociedade de 10 de Dezembro e
desmascarar Bonaparte irremissivelmente diante da França e da Europa, apresentando-o sob seu
verdadeiro aspecto de chefe do lúmpen proletariado de Paris, permite que o conflito desça ao ponto em
que a única questão entre ela e o ministro do Interior é a de determinar quem tem autoridade para nomear
ou demitir um comissário de polícia. Assim, durante todo esse período, vemos o partido da ordem
compelido por sua posição ambígua, a dissipar e desintegrar sua luta com o Poder Executivo em
mesquinhas contendas sobre jurisdição, chicana, minúcias legais e disputas sobre limitação de poderes,
fazendo das mais ridículas questões de forma, a substância de sua atividade. Não ousa enfrentar o
conflito no momento em que este tem uma significação do ponto-de-vista de princípio, quando o Poder
Executivo está realmente comprometido e a causa da Assembléia Nacional seria a causa de toda a nação.
Fazendo-o, daria à nação ordem de marcha, e não há nada que a atemorize mais do que ver a nação
movimentar-se. Rejeita, por conseguinte, as moções da Montanha e passa à ordem do dia. Uma vez
abandonados os aspectos principais do problema em causa, o Poder Executivo espera calmamente a
oportunidade de levantá-lo outra vez por motivos mesquinhos e insignificantes, quando não apresente,
por assim dizer, senão um interesse parlamentar estreito e puramente local. Só aí estoura o ódio contido
do partido da ordem, só aí ele arranca a cortina dos bastidores, acusa o presidente, declara a república em
perigo; mas, então, também o seu furor parece absurdo e o motivo da luta parece um pretexto hipócrita,
.inteiramente desprovido de sentido. A tempestade parlamentar transforma-se em uma tempestade em
copo de água, a luta em intriga, o conflito em escândalo. Enquanto as classes revolucionárias se deleitam
em um prazer malévolo em face da humilhação da Assembléia Nacional, pois se entusiasmam pelas
prerrogativas parlamentares dessa Assembléia tanto quanto esta se entusiasma pelas liberdades públicas,
a burguesia de fora do Parlamento não compreende como a burguesia de dentro do Parlamento pode
perder tanto tempo com disputas tão mesquinhas e comprometer a tranqüilidade pública com rivalidades
tão tolas com o presidente. Confunde-se com uma estratégia que declara a paz no momento em que todo
mundo espera batalhas, e ataca no momento em que todo mundo pensa que a paz foi concluída.
A 20 de dezembro Pascal Duprat interpelou ministro do Interior sobre a Loteria das Barras de Ouro. Essa
loteria era "filha do Eliseu". Bonaparte, com seus fiéis adeptos, trouxera-a ao mundo; e o Chefe de
Polícia, Carlier, colocara-a sob sua proteção oficial, embora a lei francesa proíba todas as loterias, com a
exceção de rifas para beneficência. Sete milhões de bilhetes de loteria, a um franco cada um, cujos lucros
destinavam-se, ostensivamente, a embarcar vagabundos parisienses para a Califórnia. Por um lado,
queria-se que os sonhos dourados substituíssem os sonhos socialistas do proletariado de Paris; e que a
perspectiva sedutora do primeiro prêmio substituísse o direito doutrinário ao trabalho. Os trabalhadores
de Paris, naturalmente, não reconheceram no brilho das barras de ouro da Califórnia os modestos francos
que tinham sido subtraídos de seus bolsos. No fundamental, porém, o assunto não passava de um
legítimo logro. Os vagabundos que queriam encontrar minas de ouro da Califórnia sem se darem ao
trabalho de sair de Paris eram o próprio Bonaparte e os endividados cavaleiros de sua Távola Redonda.
Os 3 milhões votados pela Assembléia Nacional haviam sido gastos estroinamente; os cofres tinham que
ser reabastecidos, fosse como fosse. Em vão Bonaparte abriu uma subscrição nacional para a construção
das chamadas cités ouvrières,(23) figurando à frente da lista com urna soma considerável. Os burgueses
cruéis esperaram desconfiadamente que ele pagasse a sua cota, e como isso, naturalmente, não aconteceu,
a especulação sobre aqueles castelos no ar socialistas caiu imediatamente por terra. As barras de ouro
deram melhor resultado. Bonaparte & Cia. não se contentaram em embolsar uma parte do excedente dos
7 milhões sobre as barras que seriam distribuídas como prêmios; fabricaram bilhetes falsos; emitiram
dez, 15 e mesmo 20 bilhetes com o mesmo número - operação financeira bem de acordo com o espírito
da Sociedade de 10 de Dezembro! A Assembléia Nacional defrontava-se aqui não com o fictício
presidente da República, mas com Bonaparte em carne e osso. Podia apanhá-lo em flagrante, infringindo
não a Constituição, mas o Código Penal. Se a Assembléia passou à ordem do dia, diante da interpelação
de Duprat, isto não aconteceu apenas porque a moção de Girardin no sentido de declarar-se satisfait
recordava ao partido da ordem sua própria corrupção sistemática. O burguês, e principalmente o burguês
arvorado em estadista, complementa sua mesquinhez prática com sua extravagância teórica. Corno
estadista ele se transforma, assim como o poder estatal com que se defronta, em um ser superior que só
pode ser combatido em uma forma superior, consagrada.
Bonaparte, que precisamente por ser um boêmio, um príncipe lúmpen proletário, levava vantagem sobre
o burguês vil porque podia conduzir a luta por meios vis, viu agora, depois que a própria Assembléia o
guiara, por sua própria mão, através do terreno escorregadiço dos banquetes militares, das revistas de
tropas, da Sociedade de 10 de Dezembro e, finalmente, do Código Penal, que chegara o momento em que
poderia passar de uma aparente defensiva à ofensiva. As pequenas derrotas sofridas nesse ínterim pelos
ministros da Justiça, da Guerra, da Marinha e da Fazenda, através das quais a Assembléia Nacional
expressava seus rosnados de desagrado, incomodavam-no muito pouco. Não só impediu que os ministros
renunciassem, e com isso admitissem a supremacia do Parlamento sobre o Poder Executivo, como se
sentiu capaz de consumar agora o que começara durante o período de recesso da Assembléia Nacional: a
separação entre o poder militar e o Parlamento, a destituição de Changarnier.
Um jornal do Eliseu publicou uma ordem do dia pretensamente dirigida, durante o mês de maio, à
Primeira Divisão Militar e, portanto, procedente de Changarnier, na qual se recomendava aos oficiais, em
caso de insurreição, que não poupassem os traidores dentro de suas fileiras, mas que os fuzilassem
imediatamente, e que recusassem tropas à Assembléia Nacional, caso esta as requisitasse. A 3 de janeiro
de 1851, o Gabinete foi interpelado sobre essa ordem do dia. Para investigar o assunto, solicitou um
prazo, primeiro de três meses, depois de uma semana, e finalmente de apenas 24 horas. A Assembléia
insistiu em uma explicação imediata. Changarnier levantou-se e declarou que tal ordem do dia jamais
existiu. Acrescentou que se apressaria sempre em atender às exigências da Assembléia Nacional e que
em caso de conflito esta podia contar com ele. A Assembléia recebeu essa declaração com aplausos
indescritíveis e lhe concedeu um voto de confiança. Abdicou, assim, dos seus poderes, decretando a
própria impotência e a onipotência do exército, ao colocar-se sob a proteção privada de um general; mas
o general se iludia ao colocar à disposição da Assembléia, contra Bonaparte, um poder que só detinha por
delegação do próprio Bonaparte, e quando, por seu turno, esperava ser protegido por esse Parlamento,
pelo seu próprio protegido carente de proteção. Changarnier, porém acreditava no poder misterioso com
que a burguesia o dotara desde 29 de janeiro de 1849. Considerava-se a terceira força, em igualdade de
condições com os outros dois poderes estatais. Compartilhava da sorte dos outros heróis, ou melhor,
santos, dessa época, cuja grandeza consistia precisamente na auréola com que os cercavam
interessadamente os seus próprios partidos, e que se reduzem a figuras comuns assim que as
circunstâncias exigem milagres. A incredulidade é, geralmente, o inimigo mortal desses heróis supostos e
santos verdadeiros. Daí sua majestosa indignação moral diante da falta de entusiasmo demonstrada pelos
espirituosos e trocistas.
Naquela mesma noite os ministros foram chamados ao Eliseu; Bonaparte insiste na destituição de
Changarnier; cinco ministros recusam-se a assiná-la; o Moniteur anuncia uma crise ministerial, e o
partido da ordem ameaça formar um exército parlamentar sob o comando de Changarnier. O partido da
ordem dispunha de poderes constitucionais para adotar essa medida. Tinha apenas que designar
Changarnier, presidente da Assembléia e requisitar todas as tropas que quisesse para sua proteção. Podia
fazê-lo com tanto maior segurança quanto Changarnier detinha ainda o mando efetivo do exército e da
Guarda Nacional de Paris e aguardava apenas ser requisitado juntamente com o exército. A imprensa
bonapartista não se atrevia no momento sequer a pôr em dúvida o direito da Assembléia Nacional de
requisitar tropas diretamente, um escrúpulo legal que, dadas as circunstâncias, não augurava nenhum
êxito. Considerando que Bonaparte teve que esquadrinhar Paris inteira, durante oito dias, para descobrir
finalmente dois generais - Baraguey d'Hilliers e Saint-Jean d'Angely - que se declarassem dispostos a
subscrever a destituição de Changarnier, é bem provável que o exército tivesse obedecido ordens da
Assembléia Nacional. É mais do que duvidoso, porém, que o partido da ordem tivesse encontrado em
suas próprias fileiras e no Parlamento o número de votos necessário para essa resolução se se leva em
conta que oito dias mais tarde 286 votos desligaram-se do partido e que em dezembro de 1851, na última
oportunidade para decisão, a Montanha rejeitou ainda uma proposta semelhante. Não obstante, os
burgraves poderiam talvez ter conseguido ainda arrastar a massa do partido a um heroísmo que consistia
em se sentirem seguros por trás de uma floresta de baionetas e em aceitar os serviços de um exército que
se passara para o seu campo. Em vez disso, na noite de 6 de janeiro, os senhores burgraves rumaram para
o Eliseu a fim de forçar Bonaparte a desistir do propósito de destituir Changarnier mediante frases de
estadistas e prementes razões de Estado. Quando se tenta persuadir alguém é porque se reconhece ser ele
o dono da situação. A 12 de janeiro, Bonaparte, sentindo-se seguro em face daquela atitude, nomeia um
novo ministério, do qual continuam a participar os chefes do antigo, Fould e Baroche. Saint-Jean
d'Angely é feito ministro da Guerra, o Moniteur publica o decreto de destituição de Changarnier, e seu
comando é dividido entre Baraguey d'Hilliers, designado para a Primeira Divisão do Exército, e Perrot
que recebe o comando da Guarda Nacional. O baluarte da sociedade foi despedido, e se nenhuma telha
cai dos telhados por esse motivo, as cotações da Bolsa, por outro lado, começam a subir.
Ao repelir o exército, que se coloca, na pessoa de Changarnier, à sua disposição, e entregando-o,
portanto, irremissivelmente, às mãos do presidente, o partido da ordem deixa evidente que a burguesia
perdeu a capacidade de governar. Já não existia um governo parlamentar. Tendo agora perdido,
efetivamente, o controle sobre o exército e a Guarda Nacional, que forças lhe restavam para manter
simultaneamente a autoridade usurpada do Parlamento sobre o povo e sua autoridade constitucional
contra o presidente? Nenhuma. Só lhe restava agora apelar para os princípios sem força, para princípios
que ele próprio, partido da ordem, sempre interpretara como meras regras gerais, que se prescrevem aos
outros a fim de garantir para si maior liberdade de movimentos. A destituição de Changarnier e a
passagem do poder militar para as mãos de Bonaparte encerra a primeira parte do período que estamos
considerando, o período da luta entre o partido da ordem e o Poder Executivo. A guerra entre os dois
poderes é agora declarada abertamente, travada abertamente, mas só depois de o partido da ordem ter
perdido tanto as armas como os soldados. Sem o ministério, sem o exército, sem o povo, sem a opinião
pública, não mais representando, depois de sua lei eleitoral de 31 de maio, a nação soberana, sem olhos,
sem ouvidos, sem dentes, sem nada, a Assembléia Nacional transformara-se gradativamente em um
Parlamento ancien régime, que tem de ceder a iniciativa ao governo e contentar-se com grunhidos
recriminatórios postfestum.(24)
O partido da ordem recebe o novo ministério com uma tempestade de indignação. O general Bedeau
evoca a complacência da Comissão Permanente, o período de recesso e a consideração excessiva que
demonstrara ao abrir mão da publicação das atas de suas sessões. O ministro do Interior insiste agora, ele
próprio, na publicação dessas atas que, naturalmente, nesta altura já se tornaram tão insossas como água
estagnada, não revelam nenhum fato novo e não produzem o menor efeito sobre o público indiferente.
Em face da proposta de Rémusat, a Assembléia Nacional recolhe-se às suas comissões e nomeia uma
"Comissão para Medidas Extraordinárias". Paris abandona menos ainda o ramerrão de sua vida
quotidiana, tanto mais quanto neste momento o comércio está próspero, as fábricas trabalharam, os
preços do trigo andam baixos, os gêneros alimentícios abundantes e as caixas econômicas recebem
diariamente novos depósitos. As "medidas extraordinárias" que o Parlamento anunciou com tanto alarde
evaporam-se, a 18 de janeiro, em um voto de censura ao ministério, sem que o nome do general
Changarnier seja sequer mencionado. O partido da ordem vira-se forçado a colocar a moção dessa forma
a fim de assegurar os votos dos republicanos, pois de todas as medidas do ministério a demissão de
Changarnier é precisamente a única que os republicanos aprovam, ao passo que o partido da ordem não
estava em situação de censurar os demais atos ministeriais que ele próprio ditara.
O voto de censura de 18 de janeiro foi aprovado por 415 votos contra 286. Só pôde passar, portanto,
mediante uma coligação de legitimistas e orleanistas extremados com os republicanos puros e a
Montanha. Provou assim que o partido da ordem perdera, em seus conflitos com Bonaparte, não só o
ministério, não só o exército, mas também sua maioria parlamentar independente; provou que uma ala de
deputados desertara de seu lado, movida pelo fanatismo da conciliação, pelo medo de lutar, pela lassidão,
por considerações de família sobre salários de parentes, por especulação em torno das pastas ministeriais
que se tornassem vagas (Odilon Barrot), por esse vulgar egoísmo, enfim, que torna o burguês comum
sempre pronto a sacrificar o interesse geral de sua classe por este ou aquele interesse particular. Desde o
início, os representantes bonapartistas só aderiam ao partido da ordem na luta contra a revolução. O
dirigente do partido católico, Montalembert, tendo perdido as esperanças nas perspectivas de vida do
partido parlamentar, já jogara então sua influência a favor dos bonapartistas. Finalmente, os dirigentes
desse partido, Thiers e Berryer, o orleanista e o legitimista, viram-se compelidos a se declararem
abertamente republicanos, a confessar que eram monarquistas de coração masque suas idéias eram
republicanas, que a república parlamentar era a única forma de governo possível para o domínio efetivo
da burguesia. Foram assim compelidos, perante a própria burguesia, a denunciar como uma trama tão
perigosa quanto estúpida os planos de Restauração que continuavam incansavelmente a urdir às
escondidas do Parlamento.
O voto de censura de 18 de janeiro atingiu os ministros, mas não o presidente. E não fora o ministério, e
sim o presidente, que destituíra Changarnier. Deveria o partido da ordem pronunciar-se a favor do
impeachment do próprio Bonaparte, baseando-se em seus anseios de restauração? Mas estes eram meros
complementos de seus próprios desejos. Em vista de sua conspiração, com referência às paradas militares
e à Sociedade de 10 de Dezembro? Eles haviam de há muito enterrado esses temas sob simples ordens do
dia. Devido à destituição do herói de 29 de janeiro e de 13 de junho, do homem que em maio de 1850
ameaçou atear fogo em Paris no caso de ocorrer um levante? Seus aliados da Montanha, assim como
Cavaignac, não lhes permitiram sequer soerguer o ex-baluarte da sociedade através de um atestado
oficial de simpatia. Eles próprios não podiam negar ao presidente o direito constitucional de demitir um
general. Enfureceram-se apenas porque ele utilizou de maneira não parlamentar o seu direito
constitucional. Não tinham eles com freqüência utilizado inconstitucionalmente suas prerrogativas
parlamentares, especialmente com relação à abolição do sufrágio universal? Viram-se assim reduzidos a
agir estritamente dentro dos limites parlamentares. E foi necessário passar por aquela doença peculiar
que desde 1848 vem grassando em todo o continente, o cretinismo parlamentar, que mantém os
elementos contagiados firmemente presos a um mundo imaginário, privando-os de todo senso comum, de
qualquer recordação de toda compreensão do grosseiro mundo exterior - foi necessário passar por esse
cretinismo parlamentar para que aqueles que haviam, com suas próprias mãos, destruído todas as
condições do poder parlamentar, e que tinham necessariamente que destruí-las em sua luta com as outras
classes, considerassem ainda como vitórias as suas vitórias parlamentares e acreditassem ferir o
presidente quando investiam contra seus ministros. Deram-lhe apenas a oportunidade de humilhar
novamente a Assembléia Nacional aos olhos da nação. A 20 de janeiro o Moniteur anunciava que fora
aceita a renúncia coletiva do ministério. Sob o pretexto de que nenhum partido parlamentar dispunha já
de maioria, como tinha sido provado pela votação de 18 de janeiro, fruto da coligação da Montanha com
os monarquistas, e enquanto não se constituía uma nova maioria, Bonaparte nomeou um ministério dito
de transição, no qual não figurava um único membro do Parlamento, sendo inteiramente composto de
indivíduos absolutamente desconhecidos e insignificantes, um ministério de escreventes e copistas. O
partido da ordem podia agora fartar-se de brincar com esses bonecos de engonço; o Poder Executivo não
mais julgava que valesse a pena estar seriamente representado na Assembléia Nacional. Quanto mais
inexpressivo fossem os seus ministros, mais manifestamente Bonaparte concentrava em sua pessoa todo
o Poder Executivo e maior margem tinha para explorá-lo para seus próprios interesses.
Em aliança com a Montanha, o partido da ordem vingou-se rejeitando a proposta, que o chefe da
Sociedade de 10 de Dezembro obrigara seus escreventes ministeriais a apresentar, de conceder ao
presidente uma dotação de 1 milhão e 800 mil francos. Desta vez a questão foi decidida por uma maioria
de apenas 102 votos; mais 27 votos, tinham, assim, desertado desde 18 de janeiro; aumenta a
desintegração do partido da ordem. Ao mesmo tempo, a fim de que nem por um momento pudesse haver
qualquer sombra de dúvida quanto ao verdadeiro sentido de sua aliança com a Montanha, ele se negou
com desprezo a considerar sequer uma proposta assinada por 189 membros da Montanha visando à
concessão de anistia geral a todos os culpados de delitos políticos. Bastou que o ministro do Interior, um
certo Vaïsse, declarasse que a tranqüilidade era apenas aparente, que em surdina reinava uma grande
agitação, que sociedades multiformes estavam sendo organizadas secretamente, que os jornais
democráticos preparavam-se para reaparecer, que os relatórios provenientes dos Departamentos eram
desfavoráveis, que os refugiados de Genebra dirigiam uma conspiração que, através de Lyon,
alastrava-se por todo o sul da França, que a França estava à beira de uma crise industrial e comercial, que
as fábricas de Roubaix haviam reduzido a jornada de trabalho, que os prisioneiros de Belle Isle estavam
amotinados - bastou que um simples Vaïsse conjurasse o fantasma vermelho para que o partido da ordem
rejeitasse sem discussão uma moção que teria certamente dado imensa popularidade à Assembléia
Nacional e forçado Bonaparte a atirar-se novamente em seus braços. Em vez de se deixar intimidar pelo
Poder Executivo com a perspectiva de novos distúrbios, devia ter dado à luta de classes uma pequena
oportunidade, a fim de manter o Poder Executivo na dependência. Não se sentiu, porém, capaz de brincar
com fogo.
Entretanto, o ministério dito de transição continuou a vegetar até meados de abril. Bonaparte cansou e
ludibriou a Assembléia Nacional com constantes reformas ministeriais. Ora, parecia querer formar um
ministério republicano com Lamartine e Billault, ora um ministério parlamentar com o inevitável Odilon
Barrot, cujo nome jamais poderá faltar quando se precisar de uma vítima facilmente enganável, em
seguida um ministério legitimista com Vatimesnil e Benoist d'Azy, em seguida novamente um ministério
orleanista com Maleville. Enquanto mantinha assim a tensão entre as diferentes facções do partido da
ordem, alarmando-as todas com a perspectiva de um ministério republicano e a conseqüente restauração
inevitável do sufrágio universal, instilava ao mesmo tempo na burguesia a convicção de que seus
esforços sinceros para formar um ministério parlamentar estavam sendo frustrados pela incapacidade de
reconciliação existente entre as facções monarquistas. A burguesia, entretanto, clamava ainda mais alto
por um "governo forte"; achava tanto mais imperdoável deixar a França "sem administração "quanto
mais parecia agora iminente uma crise comercial geral, que conquistava recrutas para o socialismo nas
cidades da mesma forma que o preço ruinoso do trigo o fazia no campo. O comércio diminuía dia a dia, o
número de desempregados aumentava visivelmente, havia pelo menos dez mil operários famintos em
Paris, inúmeras fábricas estavam paralisadas em Rouen, Mulhouse, Lyon, Roubaix, Tourcoing, St.
Etienne, Elbeuf etc. Em tais circunstâncias Bonaparte pôde aventurar-se a restaurar, a 11 de abril, o
ministério de 18 de janeiro: os Srs. Rouher, Fould, Baroche etc., reforçados pelo Sr. Léon Faucher, que a
Assembléia Constituinte, em seus últimos dias, denunciara unanimemente, com exceção apenas dos
votos de cinco ministros, endereçando-lhe um voto de censura pelo envio de telegramas falsos. A
Assembléia Nacional obtivera assim uma vitória sobre o ministério a 18 de janeiro, lutara durante três
meses contra Bonaparte, para acabar vendo Fould e Baroche admitirem a 11 de abril o ingresso do
puritano Faucher como tertius em sua aliança ministerial.
Em novembro de 1849 Bonaparte contentara-se com um ministério não-parlamentar, em janeiro de 1851
com um ministério extra parlamentar, e a 11 de abril sentiu-se suficientemente forte para constituir um
ministério natiparlamentar, que combinava harmoniosamente em si os votos de censura das duas
Assembléias, a Constituinte e a Legislativa, a republicana e a realista. Essa gradação de ministérios era o
termômetro com o qual o Parlamento podia medir a queda de seu próprio calor vital. Em fins de abril este
caíra a tal ponto que Persigny, em uma entrevista pessoal, pôde instar Changarnier para que se passasse
ao campo do presidente. Assegurou-lhe de que Bonaparte considerava completamente destruída a
influência da Assembléia Nacional e de que já estava pronta a proclamação que deveria ser publicada
depois do golpe de Estado, firmemente projetado mas que as circunstâncias haviam feito novamente
adiar. Changarnier informou os dirigentes do partido da ordem do aviso fúnebre, mas quem acredita que
as mordidas dos percevejos sejam mortais? E o Parlamento combalido, desintegrado, marcado pela morte
como estava, não podia convencer-se a ver em seu duelo com o chefe grotesco da Sociedade de 10 de
Dezembro alguma coisa a mais do que um duelo com um percevejo. Bonaparte, porém, respondeu ao
partido da ordem como Agesilau respondera ao rei Ágis: "Em tua opiniào assemelho-me a uma formiga,
mas um dia serei leão."
Capítulo VI
A aliança com a Montanha e os republicanos puros, à qual o partido da ordem viu-se condenado no
esforço vão de conservar o poder militar e reconquistar o controle supremo sobre o Poder Executivo,
provou irrefutavelmente que ele perdera sua maioria parlamentar própria. A 28 de maio, o simples poder
do calendário, do ponteiro do relógio, deu o sinal para sua completa desintegração. Com o 28 de Maio
teve início o ultimo ano de vida da Assembléia Nacional. Tinha agora que decidir-se ou a manter
inalterada a Constituição ou a reformá-la. A revisão da Constituição, porém, não implicava apenas no
domínio da burguesia ou da democracia pequeno-burguesa, democracia ou anarquia proletária, república
parlamentar ou Bonaparte: significava também Orléans ou Bourbon! Surgiu assim no Parlamento o pomo
de discórdia que teria forçosamente que inflamar abertamente o conflito de interesses que dividia o
partido da ordem em facções hostis. O partido da ordem era um combinado de substâncias sociais
heterogêneas. A questão da revisão gerou urna temperatura política na qual ele voltou a se decompor em
seus elementos primitivos.
O interesse dos bonapartistas na revisão era simples. Para eles tratava-se, sobretudo, de abolir o artigo 45,
que proibia a reeleição de Bonaparte e a prorrogação de seus poderes. A posição dos republicanos não
parecia menos simples. Rejeitavam incondicionalmente qualquer revisão; viam nela uma conspiração
universal contra a república. Considerando que controlavam mais de um quarto dos votos da Assembléia
Nacional e que de acordo com a Constituição eram necessários três quartos dos votos para tornar
legalmente válida a resolução de reforma e para convocar a Assembléia encarregada de proceder a essa
revisão, tinham apenas que contar seus votos para terem certeza da vitória. E tinham certeza da vitória.
Diante de posições tão definidas o partido da ordem via-se preso em contradições inextricáveis. Se
rejeitasse a reforma estaria pondo em perigo o status quo, uma vez que teria deixado a Bonaparte apenas
uma saída, pela força, e no segundo domingo de maio de 1852, na hora decisiva, estaria entregando a
França à anarquia revolucionária, com um presidente que perdera a autoridade, com um Parlamento que
a muito não a possuía, e com um povo que se mostrava disposto a reconquistá-la. Se votasse a favor da
reforma constitucional, sabia que votava em vão e que teria forçosamente que fracassar
inconstitucionalmente, se declarasse válida a simples maioria de votos, só poderia então esperar dominar
a revolução submetendo-se incondicionalmente a Poder Executivo, o que tornaria Bonaparte dono da
Constituição, da reforma e do próprio partido. Uma reforma apenas parcial, que prorrogasse a autoridade
do presidente, prepararia o caminho para a usurpação imperial. Uma revisão geral que encurtasse a vida
da república lançaria as pretensões dínásticas em inevitável conflito, pois as condições de restauração dos
Bourbons e dos orleanistas eram não só diferentes, como se excluíam mutuamente.
A república parlamentar era mais do que o campo neutro no qual as duas facções da burguesia francesa,
os legitimistas e orleanistas, a grande propriedade territorial e a indústria podiam viver lado a lado com
igualdade de direitos. Era a condição inevitável para seu domínio em comum a única forma de governo
no qual seu interesse geral de classe podia submeter ao mesmo tempo tanto as reivindicações de suas
diferentes facções como as demais classes da sociedade. Na qualidade de monarquistas, eles recaiam em
seu velho antagonismo, na luta pela supremacia do latifúndio ou do capital, e a mais alta expressão desse
antagonismo, sua personificação, eram seus próprios reis, suas dinastias. Daí a resistência do partido da
ordem à volta dos Bourbons.
Creton, orleanista e representante do povo, apresentara periodicamente em 1849, 1850 e 1851 uma
moção propondo a revogação do decreto de exílio das famílias reais. Com a mesma regularidade o
Parlamento fornecia o espetáculo de uma Assembléia de monarquistas que obstinadamente impedia a
passagem através da qual seus reis exilados podiam retornar à pátria. Ricardo III assassinara Henrique VI
observando que ele era bom demais para este mundo e que seu lugar era no céu. Eles declaravam que a
França era demasiado má para receber novamente seus reis. Compelidos pelas circunstâncias, haviam-se
convertido em republicanos e sancionavam repetidas vezes a decisão popular que bania seus reis da
França.
A reforma da Constituição - e as circunstâncias obrigavam a que fosse tomada em consideração - punha
em julgamento, juntamente com a república, o governo comum das duas facções burguesas e reavivava,
com a possibilidade da monarquia, a rivalidade de interesses que esta representara alternadamente como
preponderantes, a luta pela supremacia de uma facção sobre a outra. Os diplomatas do partido da ordem
pensavam que podiam solucionar a contenda através do amálgama das duas dinastias, por meio de uma
suposta fusão dos partidos monarquistas e de suas casas reais. A verdadeira fusão da Restauração e da
monarquia de julho, porém, foi a república parlamentar, na qual se amalgamaram as cores orleanista e
legitimista e desapareceram as várias espécies de burgueses, dando lugar ao burguês propriamente dito, à
espécie burguesa. Agora, entretanto, o orleanista devia tornar-se legitimista e o legitimista orleanista. A
realeza, em que se personificava seu antagonismo, devia encarnar sua união; a expressão de seus
interesses exclusivos de facção deveria tornar-se a expressão de seu interesse de classe comum; a
monarquia deveria fazer o que só a abolição de duas monarquias, a república, podia fazer e de fato fez.
Era a pedra fisolofal que os doutores do partido da ordem quebravam a cabeça para descobrir. Como se a
monarquia legitimista pudesse jamais converter-se na monarquia da burguesia industrial ou a monarquia
burguesa jamais converter-se na monarquia da tradicional aristocracia da terra. Como se o latifúndio e a
indústria pudessem irmanar-se sob uma só coroa, quando a coroa só podia descer sobre uma cabeça, a do
irmão mais velho ou a do mais jovem. Como se a indústria pudesse chegar a algum acordo com o
latifúndio enquanto este não se decidisse a tomar-se industrial. Se Henrique V morresse no dia seguinte,
o conde de Paris não se tornaria por isso o rei dos legitimistas, a menos que deixasse de ser o rei dos
orleanistas. Os filósofos da fusão, entretanto, que se tornavam mais vociferantes à medida que a questão
da reforma passava ao primeiro plano, que haviam feito da Assemblée Nátionale seu diário oficial e que
se acham novamente empenhados em seu trabalho mesmo neste momento (fevereiro de 1852),
consideravam que toda a dificuldade provinha da oposição e rivalidade entre as duas dinastias. As
tentativas de reconciliar a família Orléans com Henrique V, começaram desde a morte de Luís Filipe mas
que, como acontece geralmente com as intrigas dinásticas, só eram encenadas durante os períodos de
recesso da Assembléia Nacional, nos entreatos, por detrás dos bastidores, mais por coqueteria
sentimental com a velha superstição do que com propósitos sérios, converteram-se agora em grandes
representações de Estado, desempenhadas pelo partido da ordem no cenário público, em vez das
representações de amadores que vinham sendo encenadas até então. Os mensageiros correm de Paris a
Veneza, de Veneza a Claremont, de Claremont a Paris. O conde de Chambord lança um manifesto no
qual, "com a ajuda de todos os membros de sua família", anuncia não a sua, mas a Restauração
"nacional". O orleanista Salvandy atira-se aos pés de Henrique V. Os chefes legitimistas, Berryer,
Benoist d'Azy, Saint-Priest, viajam até Claremont a fim de convencer os orleanistas, porém em vão. Os
adeptos da fusão percebem tarde demais que os interesses das duas facções burguesas nem perdem seu
exclusivismo nem adquirem maleabilidade quando acentuados na forma de interesse de família,
interesses de duas casas reais. Se Henrique V viesse a reconhecer o conde de Paris como seu sucessor - o
único êxito que, na melhor das hipóteses, poderia alcançar a fusão - a Casa de Orléans não conquistaria
nenhum direito que já não tivesse assegurado devido à ausência de herdeiros de Henrique V, mas
perderia, por outro lado, todos os direitos que alcançara com a Revolução de Julho. Renunciaria a suas
pretensões primitivas, a todos os títulos que arrancara do ramo mais antigo dos Bourbons em quase cem
anos de luta; trocaria sua prerrogativa histórica, a prerrogativa do reino moderno, pela prerrogativa de
sua árvore genealógica. A fusão, portanto, não representaria senão a abdicação voluntária da Casa de
Orléans, sua renúncia à legitimidade, o recuo arrependido da igreja protestante do Estado à Igreja
Católica. Um recuo que, ademais, não a conduziria sequer ao trono que perdera, mas apenas aos degraus
do trono onde nascera. Os velhos ministros orleanistas, Guizot, Duchâtel etc. que acorriam também a
Claremont a fim de advogar a fusão, representavam na realidade apenas o Katzenjammer(25) da
Revolução de julho, a desilusão em face do reino burguês e da realeza da burguesia, a crença
supersticiosa na legitimidade como o último amuleto contra a anarquia. Embora se afigurassem como
mediadores entre os Orléans e os Bourbons, eles nada mais eram, na realidade, do que orleanistas
renegados, e o príncipe de Joinville recebeu-os como tais. Por outro lado, a ala orleanista que tinha
possibilidades de se desenvolver, seu setor belicoso. Thiers, Baze etc., convenceu com tanto maior
facilidade a família de Luís Filipe de que se qualquer restauração diretamente monarquista pressupunha a
fusão das duas dinastias e uma tal fusão pressupunha a abdicação da Casa de Orléans - estava, pelo
contrário, perfeitamente de acordo com a tradição de seus antepassados reconhecer no momento a
república e esperar até que os acontecimentos permitissem converter em trono a cadeira presidencial.
Circularam rumores sobre a candidatura de Joinville, aguçou-se a curiosidade do público e, alguns meses
mais tarde, em setembro, após a rejeição da reforma constitucional, sua candidatura foi publicamente
proclamada.
A tentativa de realizar uma fusão de orleanistas e legitimistas, portanto, não só fracassara como destruíra
sua fusão parlamentar, sua forma comum republicana, e fragmentara o partido da ordem em seus
elementos componentes; mas quanto mais crescia a divergência entre Claremont e Veneza, quanto mais
falhavam as possibilidades de acordo e a agitação de Joinville ganhava terreno; tanto mais vivas e
intensas se tornavam as negociações entre o ministro bonapartista Faucher e os legitimistas.
A desintegração do partido da ordem não se deteve ao reduzir-se a seus elementos primitivos. Cada uma
das duas alas principais, por sua vez, experimentou novo processo de decomposição. Era como se todos
os velhos matizes que anteriormente lutavam e se debatiam um contra o outro dentro de cada um dos dois
campos, tanto do legitimista como do orleanista, como infusórios secos ao contato da água, tivessem
novamente adquirido suficiente energia vital para constituir grupos próprios e antagonismos
independentes. os legitimistas imaginavam estar novamente em meio às controvérsias existentes entre as
Tulherias e o Pavilhão Marsan, entre Villèle e Polignac. Os orleanistas reviviam os tempos áureos dos
torneios entre Guizot, Molé, Broglie, Thiers e Odilon Barrot.
A ala do partido da ordem que ansiava pela reforma mas que estava novamente cindida sobre a questão
dos limites dessa reforma, uma ala composta por legitimistas chefiados de um lado por Berryer e Failoux
e de outro lado La Rochejaquelin, bem como pelos orleanistas cansados de lutar chefiados por Molé,
Broglie, Montalembert e Odilon Barrot, entrou em acordo com os representantes bonapartistas sobre a
seguinte moção, indefinida e ampla: "Os representantes abaixo assinados, tendo em vista restaurar a
nação no pleno exercício de sua soberania, propõem que seja procedida a reforma da Constituição." Não
obstante, ao mesmo tempo declaravam unanimemente, através de seu porta-voz, Tocqueville, que a
Assembléia Nacional não tinha o direito de propor a abolição da república, que esse direito cabia
exclusivamente à câmara encarregada da reforma. Quanto ao mais, a Constituição só poderia ser
reformada de maneira "legal' ou seja, se, conforme o preceito constitucional, três quartos dos votos se
manifestassem a favor da reforma. A 19 de julho, depois de seis dias de tempestuosos debate, a reforma
foi rejeitada, como era de se esperar. Houve 446 votos a favor, mas 278 contrários. Os orleanistas
extremados, Thiers, Changarnier etc., votaram com os republicanos e a Montanha.
A maioria do Parlamento declarou-se, assim, contra a constituição, mas essa mesma Constituição
declarava-se a favor da minoria e estabelecia como decisivo o pronunciamento desta. Não tinha o partido
da ordem, entretanto, a 31 de maio de 1850 e a 13 de junho de 1849, subordinado a Constituição à
maioria parlamentar? Não fora toda a sua política baseada até agora na subordinação dos parágrafos da
Constituição às decisões da maioria parlamentar? Não deixara aos democratas a superstição bíblica na
letra da lei, e castigado por isso esses mesmos democratas? No momento, porém, a reforma da
Constituição não significava senão a manutenção do poder presidencial, da mesma forma que a
manutenção da Constituição significava apenas a deposição de Bonaparte. O Parlamento manifestava-se
favorável a ele, mas a Constituição declarava-se contra o Parlamento. Ele, portanto, agiu de acordo com
o Parlamento quando rasgou a Constituição, e de acordo com a Constituição quando dissolveu o
Parlamento.
O Parlamento declarara a Constituição, e com ela seu próprio poder, "acima da maioria"; mediante seus
votos abrogara a Constituição e prorrogara o poder presidencial, declarando ao mesmo tempo que nem
aquela podia morrer nem este viver enquanto ele próprio continuasse a existir. Os que deveriam
enterrá-lo já esperavam junto à porta. Enquanto o Parlamento discutia a reforma, Bonaparte destituiu o
general Baraguey d'Hilliers, que se mostrara irresoluto no comando da Primeira Divisão do Exército,
nomeando para substituí-lo o general Magnan, o vencedor de Lyon, o herói das jornadas de dezembro,
uma de suas criaturas, que sob Luís Filipe, por ocasião da expedição a Boulogne, já se comprometera
mais ou menos a favor de Bonaparte.
Com sua decisão sobre a reforma o partido da ordem demonstrou que não sabia nem governar nem
servir; nem morrer; nem suportar a república nem derrubá-la; nem defender a Constituição nem
revogá-la; nem cooperar com o presidente nem romper com ele. De onde esperava então a solução de
todas as contradições? Do calendário, da marcha dos acontecimentos. Deixou de se arvorar em árbitro
dos acontecimentos. Desafiou, portanto, os acontecimentos a assumirem o controle sobre ele, desafiando
dessa maneira o poder ao qual, no decurso da luta contra o povo, cedera uma prerrogativa atrás da outra,
até permanecer impotente diante desse poder. A fim de que o chefe do Poder Executivo pudesse com
maior tranqüilidade traçar contra ele seu plano de campanha, reforçar seus meios de ataque, escolher suas
armas e fortificar suas posições, precisamente nesse momento crítico o Parlamento resolveu retirar-se de
cena e suspender suas sessões durante três meses, de 10 de agosto a 4 de novembro.
O partido parlamentar não só se desdobrara em suas duas grandes facções, cada uma dessas não só se
subdividiram por sua vez, mas o partido da ordem de dentro do Parlamento. Os arautos e escribas da
burguesia, sua plataforma e sua imprensa, em suma, os ideólogos da burguesia, e a própria burguesia,
representantes e os representados, enfrentavam-se com hostilidade e não mais se compreendiam.
Os legitimistas das províncias, com seu horizonte limitado e seu entusiasmo ilimitado, acusavam seus
dirigentes parlamentares, Berryer e Falloux, de haverem desertado para o campo bonapartista, de terem
abandonado Henrique V. Seus cérebros liriais acreditavam no pecado original, mas não na diplomacia.
Muito mais fatal e decisiva foi a ruptura da burguesia comercial com seus políticos. Censuravam-nos,
não como os legitimistas censuravam os seus, por terem abandonado seus princípios que já se haviam
tornado inúteis.
Já indiquei acima como, desde a entrada de Fould para o ministério, a ala da burguesia comercial que
detivera a parte do leão no governo de Luís Filipe, ou seja, a aristocracia financeira, tornara-se
bonapartista. Fould não representava apenas os interesses de Bonaparte na Bolsa, representava também
os interesses da Bolsa junto a Bonaparte. A posição da aristocracia financeira está pintada de forma
magistral em uma passagem de seu órgão europeu, The Economist de Londres. Em seu número de lo. de
fevereiro de 1851 escreve o correspondente de Paris: "Tivemos oportunidade de .comprovar em
numerosas fontes que a França deseja, acima de tudo, a tranqüilidade. O presidente o declara em sua
mensagem à Assembléia Legislativa; e o mesmo é repetido da tribuna; afirmado nos jornais; anunciado
do púlpito; e é demonstrado pela sensibilidade dos títulos públicos à menor perspectiva de perturbação, e
por sua estabilidade quando se torna evidente que o Poder Executivo sai vitorioso."
Em seu número de 29 de novembro de 1851 o The Economist declara em seu próprio nome: "O
Presidente é o guardião da ordem, e é agora reconhecido, como tal em todas as Bolsas de Valores da
Europa. "A aristocracia financeira condenava, portanto, a luta parlamentar do partido da ordem contra o
Poder Executivo como uma perturbação da ordem, e comemorava cada vitória do presidente sobre os
supostos representantes dela como vitórias da ordem. Por aristocracia financeira não se deve entender
aqui apenas os grandes promotores de empréstimos e especuladores de títulos públicos, a respeito dos
quais torna-se imediatamente óbvio que seus interesses coincidem com os interesses do poder público.
Todo o moderno círculo financeiro, todo o setor de atividades bancárias está entrelaçado na forma mais
íntima com o crédito público. Parte de seu capital ativo é necessariamente invertida e posta a juros em
títulos públicos de fácil resgate. Os depósitos de que dispõem, o capital colocado a sua disposição e por
eles distribuído entre comerciantes e industriais, provêm em parte dos dividendos de possuidores de
títulos do governo. Se em todas as épocas a estabilidade do poder público significava tudo para todo o
mercado financeiro e para os oficiantes desse mercado financeiro, por que não o seria hoje, e com muito
mais razão, quando cada dilúvio ameaça destruir os velhos Estados e, com eles, as velhas dívidas do
Estado?
Também a burguesia industrial, em seu fanatismo pela ordem, irritava-se com as disputas em que o
partido da ordem se empenhava no Parlamento com o Poder Executivo. Depois de seu voto a 18 de
janeiro, por ocasião da destituição de Changarnier, Thiers, Anglas, Saine-Beuve etc., receberam
precisamente de seus constituintes dos distritos industriais censuras públicas, nas quais sua coligação
com a Montanha era particularmente condenada como alta traição contra a ordem. Se, como vimos, as
críticas jactanciosas, as mesquinhas intrigas que assinalaram a luta do partido da ordem contra o
presidente, não mereceram melhor recepção, então por outro lado, esse partido burguês, que exigia que
seus representantes permitissem, sem oferecer resistência, que o poder militar passasse das mãos de seu
próprio Parlamento para as de um pretendente aventureiro - não era sequer digno das intrigas
desperdiçadas em sua intenção. Demonstrou que a luta para manter seus interesses públicos, seus
próprios interesses de classe, seu poder político, só lhe trazia embaraço e desgostos, pois constituía uma
perturbação dos seus negócios privados.
Quase que sem exceções os dignitários burgueses das cidades da província, as autoridades municipais, os
juizes dos tribunais comerciais etc., recebiam Bonaparte em todas as localidades que visitava em suas
excursões, da maneira mais abjeta, mesmo quando, como aconteceu em Dijon, ele desferiu um ataque
sem reservas contra a Assembléia Nacional e, especialmente, contra o partido da ordem.
Quando o comércio era próspero, como ainda era em princípios de 1851, a burguesia comerciante
enfurecia-se contra qualquer luta parlamentar, temendo que o comércio viesse a ressentir-se disso.
Quando o comércio andava mal, como acontecia constantemente a partir do fim de fevereiro de 1851, a
burguesia comerciante acusava as lutas parlamentares como responsáveis pela paralisação e clamava para
que cessassem, a fim de que o comércio pudesse desenvolver-se novamente. Os debates sobre a reforma
coincidiram justamente com esse período difícil. Tratando-se aqui da questão do ser ou não ser da forma
de governo vigente, a burguesia sentia-se tanto mais autorizada a exigir que seus representantes
pusessem fim a essa torturante situação provisória e mantivessem ao mesmo tempo o status quo. Não
havia nisso nenhuma contradição. Por fim da situação provisória ela compreendia precisamente a sua
perpetuação, o adiamento para um futuro distante do momento em que uma decisão tivesse que ser
tomada. O status quo só poderia ser mantido de duas maneiras: pela prorrogação do poder de Bonaparte,
ou mediante sua renúncia constitucional e a eleição de Cavaignac. Um setor da burguesia desejava esta
última solução e não soube dar a seus representantes outro conselho senão o de que se conservassem em
silêncio e não tocassem na questão candente. Estavam convencidos de que se seus representantes não
falassem, Bonaparte não agiria. Queriam um Parlamento-avestruz, que escondesse a cabeça para
permanecer oculto. Outro setor da burguesia desejava, tendo em vista que Bonaparte já se encontrava na
presidência, que continuasse no posto, a fim de que tudo pudesse prosseguir na mesma rotina de sempre.
Irritavam-se por não ter o Parlamento violado abertamente a Constituição e abdicado sem maiores
formalidades.
Os Conselhos Gerais dos Departamentos, aqueles organismos provinciais que representavam a alta
burguesia e que se reuniam a partir de 25 de agosto, durante o período de recesso da Assembléia
Nacional, manifestaram-se quase que por unanimidade pela reforma, e, por conseguinte, contra o
Parlamento e a favor de Bonaparte.
De maneira ainda mais inequívoca do que o seu afastamento de seus próprios representantes
parlamentares, a burguesia demonstrou sua cólera contra seus representantes literários, sua própria
imprensa. As sentenças, condenando ruinosas multas e a descabidos períodos de encerramento ditadas
pelos júris burgueses por qualquer ataque de jorna listas burgueses contra os desejos usurpatórios de
Bonaparte, qualquer tentativa da imprensa de defender os direitos políticos da burguesia contra o Poder
Executivo, assombravam não só a França, como toda a Europa.
Se o partido parlamentar da ordem, com seu clamo pela tranqüilidade, como demonstrei, comprometia-se
manter-se tranqüilo, se declarava o domínio político da burguesia incompatível com a segurança e a
existência da burguesia, destruindo com suas próprias mãos, na luta contra as demais classes da
sociedade, todas as condições necessárias ao seu próprio regime, o regime parlamentar, por outro lado a
massa extraparlamentar da burguesia, com seu servilismo para com o presidente, com seus insultos ao
Parlamento, com maus-tratos a sua própria imprensa, convidava Bonaparte a suprimir e aniquilar o setor
do partido que falava e escrevia, seus políticos e literatos, sua tribuna e sua imprensa, a fim de poder
entregar-se então a seus negócios particulares com plena confiança, sob a proteção de um governo forte e
absoluto. Declarava inequivocamente que ansiava se livrar de seu próprio domínio político a fim de s
livrar das tribulações e perigos desse domínio.
E essa massa, que já se rebelara contra a luta puramente parlamentar e literária pelo domínio de sua
própria classe traíra os dirigentes dessa luta, ousa agora, depois do caso passado, acusar o proletariado
por não se ter levantado em uma luta sangrenta uma luta de vida ou de morte, em sua defesa! Essa massa,
que sacrificava a cada momento seus interesses gerais de classe, isto é, seus interesses políticos aos mais
mesquinhos e mais sórdidos interesses particulares, e exigia de seus representantes idêntico sacrifício,
queixa-se agora de que o proletariado não se tenha sacrificado aos seus interesses materiais, os interesses
políticos ideais dela! Apresenta-se como uma alma pura a quem o proletariado, desencaminhado pelos
socialistas, não teria sabido compreender e abandonara no momento decisivo. E encontra um eco geral
no mundo burguês. Não me refiro aqui, naturalmente, aos politiqueiros alemães e ao refugo ideológico da
mesma origem. Refiro-me, por exemplo, ao já citado Economist, que já a 29 de novembro de 1851, ou
seja, quatro dias antes do golpe de Estado, apresentara Bonaparte como o "guardião da ordem" e Thiers e
Berryer como "anarquistas", e a 27 de dezembro de 1851, depois que Bonaparte aquietara esses
anarquistas, já vocifera sobre a traição perpetrada pelas "massas proletárias, ignorantes, incultas e
estúpidas contra a habilidade, conhecimento, disciplina, influência mental, recursos intelectuais e peso
moral das camadas médias e superiores". Massa estúpida, ignorante e grosseira era a própria massa
burguesa. É bem verdade que em 1851 a França atravessara uma pequena crise comercial. Em fins de
fevereiro registrou-se um declínio das exportações em comparação a 1850: em março o comércio
experimentou um revés e as fábricas deixaram de trabalhar; em abril a situação dos departamentos
industriais parecia tão desesperadora como depois das jornadas de fevereiro; em maio os negócios não
tinham ainda tomado pé; em 28 de junho o ativo do Banco de França demonstrava, pelo enorme aumento
dos depósitos e o decréscimo igualmente grande em adiantamentos contra letras de câmbio, que a
produção estava paralisada, e só em meados de outubro começou a produzir-se uma melhora progressiva
nos negócios. A burguesia francesa atribuía essa paralisação do comércio a causas puramente políticas, à
luta entre o Parlamento e o Poder Executivo, à precariedade de uma forma provisória de governo, à
aterradora perspectiva do segundo domingo de maio de 1852. Não negarei que todas essas circunstâncias
exerciam um efeito deprimente em alguns ramos da indústria de Paris e dos Departamentos. Essa
influência das condições políticas, contudo, era apenas local e sem importância. Será necessária outra
prova disso além do fato de que a melhora do comércio produziu-se em meados de outubro, no momento
preciso em que a situação política agravou-se, o horizonte político escureceu, e esperava-se a qualquer
momento que caísse uni raio do Eliseu? Quanto ao mais, o burguês francês, cuja "habilidade,
conhecimento, intuição espiritual e recursos intelectuais" não ia além do próprio apêndice nasal, podia ter
encontrado a causa de sua miséria comercial, durante todo o período da Exposição Industrial de Londres,
diretamente diante do nariz. Enquanto na França as fábricas fechavam, na Inglaterra ocorriam falências
comerciais. Enquanto em abril e maio o pânico industrial alcançou seu clímax na França, em abril e maio
o pânico comercial atingiu seu clímax na Inglaterra. Os lanifícios ingleses atravessavam as mesmas
dificuldades dos franceses, o mesmo acontecendo com a indústria da seda dos dois países. É bem verdade
que os cotonifícios ingleses continuavam trabalhando, mas já não realizavam os lucros obtidos em 1849 e
1850. A única diferença era que na França a crise era industrial, ao passo que na Inglaterra era comercial;
que enquanto na França as fábricas estavam paralisadas, na Inglaterra ampliavam sua capacidade,
embora sob condições menos favoráveis do que nos anos precedentes; que na França eram as
exportações, enquanto na Inglaterra eram as importações que haviam sido mais seriamente atingidas pela
crise. A causa comum que, naturalmente, não deve ser procurada dentro dos limites do horizonte político
francês, era evidente. Os anos de 1849 e 1850 foram os anos de maior prosperidade material e de uma
superprodução que só se manifestou como tal em 1851. Esta superprodução em princípios desse ano
recebeu novo e especial impulso com a perspectiva da Exposição Industrial. Registraram-se, ademais, as
seguintes circunstâncias peculiares: primeiro a perda parcial da safra de algodão em 1850 e 1851, em
seguida a certeza da obtenção de uma safra de algodão maior do que se esperava; primeiro a subida, em
seguida a queda brusca, em suma, flutuações do preço do algodão. A safra de seda bruta, pelo menos na
França tinha sido inferior à produção média. Finalmente, os lanifícios tinham-se expandido a tal ponto
desde 1848 que a produção de lã não podia manter as normas de abastecimento, e o preço da lã em bruto
subiu em completa desproporção ao preço dos artigos de lã. Já temos portanto aqui, na matéria-prima
para três indústrias do mercado mundial, três motivos para uma paralisação do comércio.
Independentemente dessas circunstâncias especiais, a crise aparente de 1851 não era nada mais do que a
parada que a superprodução e a superespeculação invariavelmente provocam no ciclo industrial, antes de
reunirem todas as suas forças a fim de se precipitarem febrilmente através da última fase desse ciclo e
alcançarem mais uma vez o ponto de partida, a crise geral do comércio. Durante tais intervalos na
história do comércio irrompem na Inglaterra as falências comerciais, ao passo que na França é a própria
indústria que tem de se paralisar, em parte porque forçada a retroceder dada a concorrência dos ingleses
que precisamente então começava a fazer-se intolerável em todos os mercados, e em parte por ser uma
indústria de luxo, que deve preferentemente sofrer as conseqüências de toda crise comercial. Portanto,
além das crises gerais, a França experimenta crises comerciais internas, que são, não obstante,
determinadas e condicionadas muito mais pelas condições gerais do mercado mundial do que por
influências locais francesas. Não seria desinteressante estabelecer um confronto entre o discernimento do
burguês inglês e o preconceito do burguês francês. Em seu relatório anual de 1851, uma das maiores
firmas comerciais de Liverpool declara: "Poucos anos têm desmentido de maneira tão cabal os
prognósticos feitos em seu início como o ano que acaba de findar; em vez da grande prosperidade que era
quase unanimemente esperada, este ano revelou-se um dos mais decepcionantes do último quarto de
século - referimo-nos, naturalmente, às classes mercantis, e não às classes manufatureiras. Não obstante,
no começo do ano havia certamente motivos para esperar-se o contrário - os estoques de produtos eram
moderados, o capital era abundante, os gêneros alimentícios baratos, bem assegurada uma colheita
generosa, reinava completa paz no continente, e o nosso país não experimentava quaisquer perturbações
políticas ou fiscais; nunca, efetivamente, estiveram mais livres as asas do comércio... A que atribuir,
então, esse resultado desastroso? Julgamos que ao excesso tanto das importações com das exportações. A
menos que os nossos comerciantes estabeleçam maiores restrições a sua liberdade de ação, só um pânico
trienal poderá deter-nos."
Imaginai agora o burguês francês, o seu cérebro comercialmente enfermo, torturado na agonia desse
pânico comercial, girando estonteado pelos boatos de golpes de Estado e de restauração do sufrágio
universal, pela luta entre o Parlamento e o Poder Executivo, pela guerra da Fronda entre orleanistas e
pelas conspirações comunistas no sul da França, pelas supostas Jacqueries nos Departamentos de Nièvre
e Cher, pela propaganda de diversos candidatos à presidência, pelas palavras de ordem dos jornais que
lembravam os pregões de vendedores ambulantes, pelas ameaças dos republicanos de defender a
Constituição e o sufrágio universal de armas na mão, pela pregação dos emigrados heróis in partibus, que
anunciavam que o mundo se acabaria no segundo domingo de maio de 1852 - pensai em tudo isso e
compreendereis a razão pela qual em meio a essa incrível e estrepitosa confusão de revisão, fusão,
prorrogação, Constituição, conspiração, coligação, usurpação e revolução, o burguês berra furiosamente
para a sua república parlamentar: "Antes um fim com terror, do que um terror sem fim".
Bonaparte compreendeu esse grito. Seu poder de compreensão se aguçara com a crescente turbulência de
credores que viam em cada crepúsculo que tornava mais próximo o dia do vencimento, o segundo
domingo de maio de 1852, um movimento dos astros protestando suas terrenas letras de câmbio.
Tinham-se convertido em verdadeiros astrólogos. A Assembléia Nacional frustrara as esperanças de
Bonaparte em uma prorrogação constitucional de seus poderes; a candidatura do príncipe de Joinville
impedia maiores vacilações.
Se jamais houve um acontecimento que, muito antes de ocorrer, tivesse projetado diante de si a sua
sombra, foi o golpe de Estado de Bonaparte. Já a 29 de janeiro de 1849, pouco mais de um mês depois de
sua eleição, fizera a Changarnier uma proposta nesse sentido. No verão de 1849, seu próprio
primeiro-ministro, Odilon Barrot, denunciara veladamente a política de golpes de Estado; no inverno de
1850, Thiers fizera-o abertamente. Em maio de 1851, Persigny tentara novamente ganhar Changarnier
para o golpe; o Messager de l'Assemblée publicara uma notícia sobre essas negociações. Os jornais
bonapartistas ameaçavam com um golpe de Estado cada vez que ocorria uma tempestade parlamentar, e
tornavam-se mais agressivos à medida que a crise se aproximava. Nas orgias que Bonaparte celebrava
todas as noites com a "escória" de ambos os sexos, quando se aproximava a meia-noite e as copiosas
libações desatavam as línguas e aguçavam a imaginação, o golpe de Estado era marcado para a manhã
seguinte. Desembainhavam-se as espadas, tilintavam as taças, representantes eram atirados pelas janelas,
o manto imperial caía sobre os ombros de Bonaparte, até que o romper da aurora afugentava novamente
o fantasma e Paris, estupefata, tornava a inteirar-se, pelas vestais pouco dadas a reticências e pelos
paladinos indiscretos, do perigo de que tinha novamente escapado. Durante os meses de setembro e
outubro os boatos de golpe de Estado sucediam-se rapidamente. Ao mesmo tempo a sombra ganhava
cores, como um daguerreótipo iluminado. Consultai os números de setembro e outubro dos Órgãos da
imprensa diária européia e encontrareis, palavra por palavra, intimidações como esta: "Paris está cheia de
boatos sobre um golpe de Estado. Diz-se que a capital será tomada pelas tropas durante a noite, e que na
manhã seguinte aparecerão os decretos de dissolução da Assembléia Nacional, declarando o
Departamento do Sena sob estado de sítio, restaurando o sufrágio universal e apelando para o povo.
Diz-se que Bonaparte anda em busca de ministros para porem em execução esses decretos ilegais." As
correspondências que trazem essas notícias terminam sempre com a palavra fatal: "adiado". O golpe de
Estado fora sempre a idéia fixa de Bonaparte. Com esta idéia em mente voltara a pisar o solo francês.
Estava tão obcecado por ela que constantemente deixava-a transparecer. Estava tão fraco que, também
constantemente, desistia dela. A sombra do golpe de Estado tornara-se tão familiar aos parisienses sob a
forma de fantasma, que quando finalmente apareceu em carne e osso não queriam acreditar no que viam.
O que permitiu, portanto, o êxito do golpe de Estado não foi nem a reserva reticente do chefe da
Sociedade de 10 de Dezembro nem o fato de a Assembléia Nacional ter sido colhida de surpresa. Se teve
êxito, foi apesar da indiscrição daquele e com o conhecimento antecipado desta - resultado necessário e
inevitável de acontecimentos anteriores.
A 10 de outubro, Bonaparte comunicou a seus ministros sua decisão de restaurar o sufrágio universal; a
16, estes apresentaram sua renúncias; a 26, Paris teve conhecimento da formação do ministério Thorigny.
O Chefe de Polícia, Carlier, foi simultaneamente substituído por Maupas; o chefe da Primeira Divisão
Militar, Magnan concentrou na capital os regimentos mais leais. A 4 de novembro, a Assembléia
Nacional reiniciou suas sessões. Não tinha nada melhor a fazer do que recapitular, em forma breve e
sucinta, o curso pelo qual tinha passado, e provar que tinha sido enterrada apenas depois de sua morte.
O primeiro posto que perdera em sua luta contra o Poder Executivo fora o ministério. Teve que
reconhecer solenemente essa derrota aceitando a autoridade do ministério Thorigny, um mero simulacro
de gabinete. A Comissão Permanente recebera o Sr. Giraud debaixo de risos, quando ele se apresentara
como representante dos novos ministros. Um ministério tão fraco para medidas fortes como a restauração
do sufrágio universal! O objetivo exato, porém, era não fazer passar nada no Parlamento, mas tudo contra
o Parlamento.
No mesmo dia de sua reabertura a Assembléia Nacional! recebeu a mensagem de Bonaparte na qual ele
exigia a restauração do sufrágio universal e a revogação da lei de 31 de maio de 1850. No mesmo dia
seus ministros apresentaram um decreto nesse sentido. A Assembléia Nacional rejeitou imediatamente o
pedido de urgência do ministério, e a 13 de novembro, rejeitou o projeto de lei por 355 votos contra 348.
Rasgou, assim, seu mandato uma vez mais; uma vez mais confirmou o fato de que se transformara, de
corpo de representantes livremente eleitos pelo povo, em Parlamento usurpador de uma classe; que
cortara, ela mesma, os músculos que ligavam a cabeça parlamentar ao corpo da nação.
Se, com sua moção de restaurar o sufrágio universal, o Poder Executivo apelava da Assembléia Nacional
para o povo, com sua Lei dos Questores, o Poder Legislativo apelou do povo para o exército. Essa Lei
dos Questores devia estabelecer seu direito de requisitar tropas diretamente, de formar um exército
parlamentar. Colocando assim o exército como árbitro entre ela e o povo, entre ela e Bonaparte,
reconhecendo no exército o poder estatal decisivo, tinha que confirmar, por outro lado, o fato de que há
muito tempo desistira de sua pretensão de dominar esse poder. Ao debater seu direito a requisitar tropas,
em vez de requisitá-las imediatamente, deixava transparecer suas dúvidas quanto a seus próprios poderes.
Ao rejeitar a Lei dos Questores confessou publicamente a sua impotência. Esse projeto foi derrotado,
faltando a seus proponentes apenas 108 votos para obterem maioria. A Montanha, portanto, decidiu a
questão. Viu-se na situação do asno de Buridan, não porém, entre dois feixes de feno, com o problema de
decidir qual dos dois era mais atraente, mas entre duas saraivadas de golpes com o problema de decidir
qual era a mais violenta. De um lado havia o medo de Changarnier, do outro, o medo de Bonaparte.
Tem-se que reconhecer que a situação nada tinha de heróica.
A 18 de novembro foi apresentada uma emenda à lei sobre as eleições municipais proposta pelo partido
da ordem, no sentido de que em vez de três anos bastaria que os eleitores municipais tivessem um ano de
domicilio. Essa emenda foi derrotada em discussão única, mas essa discussão única demonstrou logo ter
sido um erro. Fragmentando-se em facções hostis o partido da ordem perdera há muito sua maioria
parlamentar independente. Mostrou agora que já não havia maioria alguma no Parlamento. A Assembléia
Nacional tornara-se incapaz de adotar acordos. Os átomos que a constituíram não mais se mantinham
unidos por qualquer força de coesão; exalara seu último suspiro; estava morta.
Finalmente, poucos dias antes de catástrofe, a massa extraparlamentar da burguesia devia confirmar
solenemente, uma vez mais, sua ruptura com a burguesia do Parlamento. Thiers que, como herói
parlamentar estava mais contagiado do que os demais do mal incurável do cretinismo parlamentar,
arquitetara juntamente com o Conselho de Estado, depois da morte do Parlamento, uma nova intriga
parlamentar, unia Lei de Responsabilidades, com a qual se pretendia manter o presidente firmemente
dentro dos limites da Constituição. Assim como a 15 de setembro, ao lançar a pedra fundamental do
novo mercado de Paris, Bonaparte, como um segundo Masaniello, encantara as dames des bales, as
mulheres do mercado - é verdade que uma delas representava, em poder efetivo, mais do que 17
burgraves; assim como depois da introdução da Lei dos Questores ele cativara os tenentes que regalava
no Eliseu, assim, agora, a 25 de novembro, arrebatou a burguesia industrial, que se reunira no circo para
receber de suas mãos medalhas de honra pela Exposição Industrial de Londres. Transcreverei aqui a parte
significativa de seu discurso, segundo o Journal des Débats:
"Diante de êxitos tão inesperados, creio que tenho razão de reiterar quão grande seria a República
Francesa se lhe permitissem defender seus verdadeiros interesses e reformar suas instituições, ao invés de
estar sendo constantemente perturbada, de um lado por demagogos, e de outro por alucinações
monarquistas. (Fortes, estrondosos e repetidos aplausos de todos os lados do anfiteatro.) As alucinações
monarquistas retardam todo o progresso e todos os ramos importantes da indústria. Em vez de progresso
vê-se apenas luta. Vêem-se homens que eram antes os mais zelosos sustentáculos do poder e das
prerrogativas reais tornarem-se partidários de uma Convenção com o propósito único de debilitar o poder
que emanou do sufrágio universal. (Fortes e repetidos aplausos) Vemos os homens que mais sofreram
com a Revolução, e que mais a deploraram, provocar uma nova revolução, e apenas para amordaçar a
vontade da nação... Prometo-vos tranqüilidade para o futuro" etc. etc. (Bravo, bravo, uma tempestade de
bravos.)
A burguesia industrial aclama assim, com aplausos abjetos, o golpe de Estado de 2 de dezembro, a
aniquilação do Parlamento a queda de seu próprio domínio, a ditadura de Bonaparte. A trovoada de
aplausos de 25 de novembro teve sua resposta no troar dos canhões a 4 de dezembro, e foi na casa Sr.
Sallandrouze, um dos que mais aplaudira, que foi cair o maior número de bombas.
Cromwell, quando dissolveu o Parlamento Amplo, entrou sozinho na sala de sessões, puxou o relógio a
fim de que tudo acabasse no minuto exato que havia fixado e expulsou os membros do Parlamento um
por um com insultos hilariantes e humorísticos. Napoleão, de estatura menor que seu modelo,
apresentou-se pelo menos perante o Poder Legislativo no 18 Brumário e embora com voz embargada, leu
para a Assembléia sua sentença de morte. O segundo Bonaparte, que, ademais, dispunha de um Poder
Executivo muito diferente do de Cromwell ou do de Napoleão, buscou seu modelo não nos anais da
história do mundo, mas nos anais da Sociedade de 10 de Dezembro, nos anais dos tribunais criminais.
Rouba 25 milhões de francos ao Banco de França, compra o general Magna com 1 milhão, os soldados
por 15 francos cada um e um pouco de aguardente, reúne-se secretamente com seus cúmplices, como um
ladrão, na calada da noite, ordena que sejam assaltadas as residências dos dirigentes parlamentares mais
perigosos e que Cavaignac, Lamoricière, Leflô, Changarnier, Charras, Thiers, Baze etc. sejam arrancados
de seus leitos, que as principais praças de Paris e o edifício do Parlamento sejam ocupados pelas tropas e
que cartazes escandalosos sejam colocados ao romper do dia nos muros de Paris proclamando a
dissolução da Assembléia Nacional e do Conselho de Estado, a restauração do sufrágio universal e
colocando o Departamento do Sena sob estado sítio. Da mesma maneira manda inserir pouco depois no
Moniteur um documento falso afirmando que parlamentares influentes se haviam agrupado em torno dele
em um Conselho de Estado.
O Parlamento acéfalo, reunido no edifício da maine do décimo distrito e consistindo principalmente de
legitimistas e orleanistas, vota a deposição de Bonaparte entre repetidos gritos de "Viva a República",
arenga em vão a multidão curiosa congregada diante do edifício e é finalmente conduzido, sob a custódia
de atiradores de precisão africanos, primeiro para o quartel d'Orsay e em seguida, amontoado em carros
celulares, é transportado para as penitenciárias de Mazas, Ham e Vincennes. Assim terminaram o partido
da ordem, a Assembléia Legislativa e a Revolução de Fevereiro. Antes de passar rapidamente às
conclusões, façamos um breve resumo de sua história:
I - Primeiro Período: De 24 de fevereiro a 4 de maio de 1848. Período de Fevereiro. Prólogo. Comédia da
confraternização geral.
II - Segundo Período: Período de constituição da república e da Assembléia Nacional Constituinte.
1. De 4 de maio a 25 de junho de 1848. Luta de todas as classes contra o proletariado. Derrota do
proletariado nas jornadas de junho.
2. De 25 de junho a 10 de dezembro de 1848. Ditadura dos republicanos burgueses puros. Elaboração do
projeto da Constituição. Proclamação do estado de sítio em Paris. A ditadura burguesa é posta à margem
a 10 de dezembro com a eleição de Bonaparte para presidente.
3. De 20 de dezembro de 1848 a 28 de maio de 1849. Luta da Assembléia Constituinte contra Bonaparte
e contra o partido da ordem, aliado a Bonaparte. Fim da Assembléia Constituinte. Queda da burguesia
republicana.
III- Terceiro Período: Período da república constitucional da Assembléia Legislativa Nacional.
1. De 28 de maio de 1849 a 13 de junho de 1849. Luta da pequena burguesia contra a burguesia e contra
Bonaparte. Derrota da democracia pequeno-burguesa.
2. De 13 de junho de 1849 a 31 de maio de 1850. Ditadura parlamentar do partido da ordem. Completa
seu domínio com a abolição do sufrágio universal, mas perde o ministério parlamentar.
3. De 31 de maio de 1850 a 2 de dezembro de 1851. Luta entre a burguesia parlamentar e Bonaparte.
a) De 31 de maio de 1850 a 12 de janeiro de 1851. O Parlamento perde o controle supremo do exército.
b) De 12 de janeiro a 11 de abril de 1851. Leva a pior em suas tentativas de recuperar o poder
administrativo. O partido da ordem perde sua maioria parlamentar independente. Sua aliança com os
republicanos e a Montanha.
c) De 11 de abril de 1851 a 9 de outubro de 1851. Tentativas de revisão, fusão, prorrogação. O partido da
ordem se decompõe em suas partes integrantes. Torna-se definitiva a ruptura do Parlamento burguês e da
imprensa burguesa com a massa da burguesia.
d) De 9 de outubro a 2 de dezembro de 1851. Franca ruptura do Parlamento com o Poder Executivo. O
Parlamento consuma seu derradeiro ato e sucumbe, abandonado por sua própria classe, pelo exército e
por todas as demais classes. Fim do regime parlamentar e do domínio burguês. Vitória de Bonaparte.
Paródia de restauração do império.
Capítulo VII
No umbral da Revolução de Fevereiro, a república social apareceu como uma frase, como uma profecia.
Nas jornadas de junho de 1848 foi afogada no sangue do proletariado de Paris, mas ronda os
subseqüentes atos da peça como um fantasma. A república democrática anuncia o seu advento. A 13 de
junho de 1849 é dispersada juntamente com sua pequena burguesia, que se pôs em fuga, mas que na
corrida se vangloria com redobrada arrogância. A república parlamentar, juntamente com a burguesia,
apossa-se de todo o cenário; goza a vida em toda a sua plenitude, mas o 2 de dezembro de 1851 a enterra
sob o acompanhamento do grito de agonia dos monarquistas coligados: "Viva a República!"
A burguesia francesa rebelou-se contra o domínio do proletariado trabalhador; levou ao poder o lúmpen
proletariado tendo à frente o chefe da Sociedade de 10 de Dezembro. A burguesia conservava a França
resfolegando de pavor ante os futuros terrores da anarquia vermelha; Bonaparte descontou para ela esse
futuro quando, a 4 de dezembro, fez com que o exército da ordem, inspirado pela aguardente, fuzilasse
em suas janelas os eminentes burgueses do Bulevar Montmartre e do Bulevar des Italiens. A burguesia
fez a apoteose da espada; a espada a domina. Destruiu a imprensa revolucionária; sua própria imprensa
foi destruída. Colocou as reuniões populares sob a vigilância da polícia; seus salões estão sob a Guarda
Nacional democrática; sua própria Guarda Nacional foi dissolvida. Impôs o estado de sítio; o estado de
sítio foi-lhe imposto. Substituiu os júris por comissões militares; seus júris são substituídos por
comissões militares. Submeteu a educação pública ao domínio dos padres; os padres submetem-na à
educação deles. Desterrou pessoas sem julgamento; está sendo desterrada sem julgamento. Reprimiu
todos os movimentos da sociedade através do poder do Estado; todos os movimentos de sua sociedade
são reprimidos pelo poder do Estado. Levada pelo amor à própria bolsa, rebelou-se contra seus políticos
e homens de letras; seus políticos e homens de letras foram postos de lado, mas sua bolsa está sendo
assaltada agora que sua boca foi amordaçada e sua pena quebrada. A burguesia não se cansava de gritar à
revolução o que Santo Arsênio gritou aos cristãos: Fuge, tace, quíesce! (Foge, cala, sossega!) Agora é
Bonaparte que grita à burguesia: Fuge, tace, quiesce!
A burguesia francesa há muito encontrara a solução para o dilema de Napoleão: Dans cinquante ans
l'Europe sera republicaine ou cosaque!(26) Encontrara a solução na république cosaque. Nenhuma
Circe, por meio de encantamentos, transformara a obra de arte que era a república burguesa, em um
monstro. A república não perdeu senão a aparência de respeitabilidade. A França de hoje já estava
contida, em sua forma completa, na república parlamentar. Faltava apenas um golpe de baioneta para que
a bolha arrebentasse e o monstro saltasse diante dos nossos olhos.
Por que o proletariado de Paris não se revoltou depois de 2 de dezembro?
A queda da burguesia mal fora decretada; o decreto ainda não tinha sido executado. Qualquer insurreição
séria do proletariado teria imediatamente instilado vida nova à burguesia, a teria reconciliado com o
exército e assegurado aos operários uma segunda derrota de junho.
A 4 de dezembro, o proletariado foi incitado à luta por burgueses e vendeiros. Naquela noite, várias
legiões da Guarda Nacional prometeram aparecer, armadas e uniformizadas na cena da luta. Burgueses e
vendeiros tinham tido notícia de que, em um de seus decretos de 2 de dezembro, Bonaparte abolira o
voto secreto e ordenava que marcassem "sim" ou "não", adiante de seus nomes, nos registros oficiais. A
resistência de 4 de dezembro intimidou Bonaparte. Durante a noite mandou que fossem colocados
cartazes em todas as esquinas de Paris, anunciando a restauração do voto secreto. O burguês e o vendeiro
imaginaram que haviam alcançado seu objetivo. Os que deixaram de comparecer na manhã seguinte
foram o burguês e o vendeiro.
Por meio de um coup de main durante a noite de 1o. para 2 de dezembro Bonaparte despojara o
proletariado de Paris de seus dirigentes, os comandantes das barricadas. Um exército sem oficiais, avesso
a lutar sob a bandeira dos montagnards devido às recordações de junho de 1848 e 1849 e maio de 1850,
deixou à sua vanguarda, as sociedades secretas, a tarefa de salvar a honra insurrecional de Paris. Esta
Paris, a burguesia a abandonara tão passivamente à soldadesca, que Bonaparte pôde mais tarde apresentar
zombeteiramente como pretexto para desarmar a Guarda Nacional o medo de que suas armas fossem
voltadas contra ela própria pelos anarquistas!
Cest le triomphe complet et définitif du Socialisme!(27) Assim caracterizou Guizot o 2 de dezembro. Mas
se a derrocada da república parlamentar encerra em si o germe da vitória da revolução proletária, seu
resultado imediato e palpável foi a vitória de Bonaparte sobre o Parlamento, do Poder Executivo sobre o
Poder Legislativo, da força sem frases sobre a força das frases. No Parlamento a nação tornou a lei a sua
vontade geral, isto é, tornou sua vontade geral a lei da classe dominante. Renuncia, agora, ante o Poder
Executivo, a toda vontade própria e submete-se aos ditames superiores de uma vontade estranha,
curva-se diante da autoridade. O Poder Executivo, em contraste com o Poder Legislativo, expressa a
heteronomia de uma nação, em contraste com sua autonomia. A França, portanto, parece ter escapado ao
despotismo de uma classe apenas para cair sob o despotismo de um indivíduo, e, o que é ainda pior, sob a
autoridade de um indivíduo sem autoridade. A luta parece resolver-se de tal maneira que todas as classes,
igualmente impotentes e igualmente mudas, caem de joelhos diante da culatra do fuzil.
Mas a revolução é profunda. Ainda está passando pelo purgatório. Executa metodicamente a sua tarefa.
A 2 dezembro concluíra a metade de seu trabalho preparatório; conclui agora a outra metade. Primeiro
aperfeiçoou o poder do Parlamento, a fim de poder derrubá-lo. Uma vez conseguido isso, aperfeiçoa o
Poder Executivo, o reduz a sua expressão mais pura, isola-o, lança-o contra si próprio como o único alvo,
a fim de concentrar todas as suas forças de destruição contra ele. E quando tiver concluído essa segunda
metade de seu trabalho preliminar, a Europa se levantará de um salto e exclamará exultante: Belo
trabalho, minha boa toupeira!
Esse Poder Executivo, com sua imensa organização burocrática e militar, com sua engenhosa máquina do
Estado, abrangendo amplas camadas com um exército de funcionários totalizando meio milhão, além de
mais meio milhão de tropas regulares, esse tremendo corpo de parasitas que envolve como uma teia o
corpo da sociedade francesa e sufoca todos os seus poros, surgiu ao tempo da monarquia absoluta, com o
declínio do sistema feudal, que contribuiu para apressar. Os privilégios senhoriais dos senhores de terras
e das cidades transformaram-se em outros tantos atributos do poder do Estado, os dignitários feudais em
funcionários pagos e o variegado mapa dos poderes absolutos medievais em conflito entre si, no plano
regular de um poder estatal cuja tarefa está dividida e centralizada como em uma fábrica. A primeira
Revolução Francesa, em sua tarefa de quebrar todos os poderes independentes - locais, territoriais,
urbanos e provinciais - a fim de estabelecer a unificação civil da nação, tinha forçosamente que
desenvolver o que a monarquia absoluta começara: a centralização, mas ao mesmo tempo o âmbito, os
atributos e os agentes do poder governamental. Napoleão aperfeiçoara essa máquina estatal. A monarquia
legitimista e a monarquia de julho nada mais fizeram do que acrescentar maior divisão do trabalho, que
crescia na mesma proporção em que a divisão do trabalho dentro da sociedade burguesa criava novos
grupos de interesses e, por conseguinte, novo material para a administração do Estado. Todo interesse
comum (gemeinsame) era imediatamente cortado da sociedade, contraposto a ela como um interesse
superior, geral (allgemeins), retirado da atividade dos próprios membros da sociedade e transformado em
objeto da atividade do governo, desde a ponte, o edifício da escola e a propriedade comunal de uma
aldeia, até as estradas de ferro, a riqueza nacional e as universidades da França. Finalmente, em sua luta
contra a revolução, a república parlamentar viu-se forçada a consolidar, juntamente com as medidas
repressivas, os recursos e a centralização do poder governamental. Todas as revoluções aperfeiçoaram
essa máquina, ao invés de destroçá-la. Os partidos que disputavam o poder encaravam a posse dessa
imensa estrutura do Estado como o principal espólio do vencedor.
Mas sob a monarquia absoluta, durante a primeira Revolução, sob Napoleão, a burocracia era apenas o
meio de preparar o domínio de classe da burguesia. Sob a Restauração, sob Luís Filipe, sob a república
parlamentar, era o instrumento da classe dominante, por muito que lutasse por estabelecer seu próprio
domínio.
Unicamente sob o segundo Bonaparte o Estado parece tornar-se completamente autônomo. A máquina
do Estado consolidou a tal ponto a sua posição em face da sociedade civil que lhe basta ter à frente o
chefe da Sociedade de 10 de Dezembro, um aventureiro surgido de fora, glorificado por uma soldadesca
embriagada, comprada com aguardente e salsichas e que deve ser constantemente recheada de salsichas.
Daí o pusilânime desalento, o sentimento de terrível humilhação e degradação que oprime a França e lhe
corta a respiração. A França se sente desonrada.
E, não obstante, o poder estatal não está suspenso no ar. Bonaparte representa uma classe, e justamente a
classe mais numerosa da sociedade francesa, os pequenos (Parzellen) camponeses.
Assim como os Bourbons representavam a grande propriedade territorial e os Orléans a dinastia do
dinheiro, os Bonapartes são a dinastia dos camponeses, ou seja, da massa do povo francês. O eleito do
campesinato não é o Bonaparte que se curvou ao Parlamento burguês, mas o Bonaparte que o dissolveu.
Durante três anos as cidades haviam conseguido falsificar o significado da eleição de 10 de dezembro e
roubar aos camponeses a restauração do Império. A eleição de 10 de dezembro de 1848 só se consumou
com o golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851.
Os pequenos camponeses constituem uma imensa massa, cujos membros vivem em condições
semelhantes mas sem estabelecerem relações multiformes entre si. Seu modo de produção os isola uns
dos outros, em vez de criar entre eles um intercâmbio mútuo. Esse isolamento é agravado pelo mau
sistema de comunicações existente na França e pela pobreza dos camponeses. Seu campo de produção, a
pequena propriedade, não permite qualquer divisão do trabalho para o cultivo, nenhuma aplicação de
métodos científicos e, portanto, nenhuma diversidade de desenvolvimento, nenhuma variedade de
talento, nenhuma riqueza de relações sociais. Cada família camponesa é quase auto-suficiente; ela
própria produz inteiramente a maior parte do que consome, adquirindo assim os meios de subsistência
mais através de trocas com a natureza do que do intercâmbio com a sociedade. Uma pequena
propriedade, um camponês e sua família; ao lado deles outra pequena propriedade, outro camponês e
outra família. Alguma dezenas delas constituem uma aldeia, e algumas dezenas de aldeias constituem um
Departamento. A grande massa da nação francesa é, assim, formada pela simples adição de grandezas
homólogas, da mesma maneira que batatas em um saco constituem um saco de batatas. Na medida em
que milhões de famílias camponesas vivem em condições econômicas que as separam umas das outras, e
opõem o seu modo de vida, os seus interesses e sua cultura aos das outras classes da sociedade, estes
milhões constituem uma classe. Mas na medida em que existe entre os pequenos camponeses apenas uma
ligação local e em que a similitude de seus interesses não cria entre eles comunidade alguma, ligação
nacional alguma, nem organização política, nessa exata medida não constituem uma classe. São,
consequentemente, incapazes de fazer valer seu interesse de classe em seu próprio nome, quer através de
um Parlamento, quer através de uma Convenção. Não podem representar-se, têm que ser representados.
Seu representante tem, ao mesmo tempo, que aparecer como seu senhor, como autoridade sobre eles,
como um poder governamental ilimitado que os protege das demais classes e que do alto lhes manda o
sol ou a chuva. A influência política dos pequenos camponeses, portanto, encontra sua expressão final no
fato de que o Poder Executivo submete ao seu domínio a sociedade.
A tradição histórica originou nos camponeses franceses a crença no milagre de que um homem chamado
Napoleão restituiria a eles toda a glória passada. E surgiu um indivíduo que se faz passar por esse homem
porque carrega o nome de Napoleão, em virtude do Code Napoléon,(28) que estabelece: La recherche de
la paternité est interdite.(29) Depois de 20 anos de vagabundagem e depois de uma série de aventuras
grotescas, a lenda se consuma e o homem se torna imperador dos franceses. A idéia fixa do sobrinho
realizou-se porque coincidia com a idéia fixa da classe mais numerosa do povo francês.
Mas, pode-se objetar: e os levantes camponeses na metade da França, as investidas do exército contra os
camponeses, as prisões e deportações em massa de camponeses?
A França não experimentara, desde Luís XIV, uma semelhante perseguição de camponeses "por motivos
demagógicos".
É preciso que fique bem claro. A dinastia de Bonaparte representa não o camponês revolucionário, mas o
conservador; não o camponês que luta para escapar às condições de sua existência social, a pequena
propriedade, mas antes o camponês que quer consolidar sua propriedade; não a população rural que,
ligada à das cidades, quer derrubar a velha ordem de coisas por meio de seus próprios esforços, mas, pelo
contrário, aqueles que, presos por essa velha ordem em um isolamento embrutecedor, querem ver-se a si
próprios e suas propriedades salvos e beneficiados pelo fantasma do Império. Bonaparte representa não o
esclarecimento, mas a superstição do camponês; não o seu bom-senso, mas o seu preconceito; não o seu
futuro, mas o seu passado; não a sua moderna Cevènnes, mas a sua moderna Vendée.
Os três anos de rigoroso domínio da república parlamentar haviam libertado uma parte dos camponeses
franceses da ilusão napoleônica, revolucionando-os ainda que apenas superficialmente; mas os burgueses
reprimiam-nos violentamente, cada vez que se punham em movimento. Sob a república parlamentar a
consciência moderna e a consciência tradicional do camponês francês disputaram a supremacia. Esse
progresso tomou a forma de uma luta incessante entre os mestres-escola e os padres. A burguesia
derrotou os mestres-escola. Pela primeira vez os camponeses fizeram esforços para se comportarem
independentemente em face da atuação do governo. Isto se manifestava no conflito contínuo entre os
maires e os prefeitos. A burguesia depôs os maires. Finalmente, durante o período da república
parlamentar, os camponeses de diversas localidades levantaram-se contra sua própria obra, o exército. A
burguesia castigou-os com estados de sítio e expedições punitivas. E essa mesma burguesia clama agora
contra a estupidez das massas, contra a ville multitude(30) que a traiu em favor de Bonaparte. Ela própria
forçou a consolidação das simpatias do campesinato pelo Império e manteve as condições que originam
essa religião camponesa. A burguesia, é bem verdade, deve forçosamente temer a estupidez das massas
enquanto essas se mantém conservadoras, assim como a sua clarividência, tão logo se tornam
revolucionárias.
Nos levantes ocorridos depois do golpe de Estado parte dos camponeses franceses protestou de armas na
mão contra o resultado de seu próprio voto a 10 de dezembro de 1848. A experiência adquirida desde
aquela data abrira-lhes os olhos. Mas tinham entregado a alma às forças infernais da história; a história
obrigou-os a manter a palavra empenhada, e a maioria estava ainda tão cheia de preconceitos que
justamente nos Departamentos mais vermelhos a população camponesa votou abertamente em favor de
Bonaparte. Em sua opinião a Assembléia Nacional impedira a marcha de Bonaparte. Este limitara-se
agora a romper as cadeias que as cidades haviam imposto à vontade do campo. Em algumas localidades
os camponeses chegaram a abrigar a idéia ridícula de uma Convenção lado a lado com Napoleão.
Depois que a primeira Revolução transformara os camponeses de semi-servidão em proprietários livres,
Napoleão confirmou e regulamentou as condições sob as quais podiam dedicar-se à exploração do solo
francês que acabava de lhes ser distribuído e saciar sua ânsia juvenil de propriedade. Mas o que, agora,
provoca a ruína do camponês francês é precisamente a própria pequena propriedade, a divisão da terra, a
forma de propriedade que Napoleão consolidou na França; justamente as condições materiais que
transformaram o camponês feudal em camponês proprietário, e Napoleão em imperador. Duas gerações
bastaram para produzir o resultado inevitável: o arruinamento progressivo da agricultura, o
endividamento progressivo do agricultor. A forma "napoleônica" de propriedade, que no princípio do
século XIX constituía a condição para libertação e enriquecimento do camponês francês, desenvolveu-se
no decorrer desse século na lei da sua escravização e pauperização. E esta, precisamente, é a primeira das
idées napoléoniennes que o segundo Bonaparte tem que defender. Se ele ainda compartilha com os
camponeses a ilusão de que a causa da ruína deve ser procurada, não na pequena propriedade em si, mas
fora dela, na influência de circunstâncias secundárias, suas experiências arrebentarão como bolhas de
sabão quando entrarem em contato com as relações de produção.
O desenvolvimento econômico da pequena propriedade modificou radicalmente a relação dos
camponeses para com as demais classes da sociedade. Sob Napoleão a fragmentação da terra rio interior
suplementava a livre concorrência e o começo da grande indústria nas cidades. O campesinato era o
protesto ubíquo contra a aristocracia dos senhores de terra que acabara de ser derrubada. As raízes que a
pequena propriedade estabeleceu no solo francês privaram o feudalismo de qualquer meio de
subsistência. Seus marcos formavam as fortificações naturais da burguesia contra qualquer ataque de
surpresa por parte de seus antigos senhores. Mas no decorrer do século XIX, os senhores feudais foram
substituídos pelos usurários urbanos; o imposto feudal referente à terra foi substituído pela hipoteca; a
aristocrática propriedade territorial foi substituída pelo capital burguês. A pequena propriedade do
camponês é agora o único pretexto que permite ao capitalista retirar lucros, juros e renda do solo, ao
mesmo tempo que deixa ao próprio lavrador o cuidado de obter o próprio salário como puder. A dívida
hipotecária que pesa sobre o solo francês impõe ao campesinato o pagamento de uma soma de juros
equivalentes aos juros anuais do total da dívida nacional britânica. A pequena propriedade, nessa
escravização ao capital a que seu desenvolvimento inevitavelmente conduz, transformou a massa da
nação francesa em trogloditas. Dezesseis milhões de camponeses (inclusive mulheres e crianças) vivem
em antros, a maioria dos quais só dispõe de uma abertura, outros apenas duas e os mais favorecidos
apenas três. E as janelas são para uma casa o que os cinco sentidos são para a cabeça. A ordem burguesa,
que no princípio do século pôs o Estado para montar guarda sobre a recém-criada pequena propriedade e
premiou-a com lauréis, tornou-se um vampiro que suga seu sangue e sua medula, atirando-o no caldeirão
alquimista do capital. O Code Napoléon já não é mais do que um código de arrestos, vendas forçadas e
leilões obrigatórios. Aos 4 milhões (inclusive crianças etc.), oficialmente reconhecidos, de mendigos,
vagabundos, criminosos e prostitutas da França devem ser somados 5 milhões que pairam à margem da
vida e que ou têm seu pouso no próprio campo ou, com seus molambos e seus filhos, constantemente
abandonam o campo pelas cidades e as cidades pelo campo. Os interesses dos camponeses, portanto, já
não estão mais, como ao tempo de Napoleão, em consonância, mas sim em oposição com os interesses da
burguesia, do capital. Por isso os camponeses encontram seu aliado e dirigente natural no proletariado
urbano, cuja tarefa é derrubar o regime burguês. Mas o governo forte e absoluto - e esta é a segunda idée
napoléonienne que o segundo Napoleão tem que executar - é chamado a defender pela força essa ordem
"material". Essa ordre matériel serve também de mote em todas as proclamações de Bonaparte contra os
camponeses rebeldes.
Além da hipoteca que lhe é imposta pelo capital, a pequena propriedade está ainda sobrecarregada de
impostos. Os impostos são a fonte de vida da burocracia, do exército, dos padres e da corte, em suma, de
toda a máquina do Poder Executivo. Governo forte e impostos fortes são coisas idênticas. Por sua própria
natureza a pequena propriedade forma uma base adequada a uma burguesia todo-poderosa e inumerável.
Cria um nível uniforme de relações e de pessoas sobre toda a superfície do país. Dai permitir também a
influência de uma pressão uniforme, exercida de um centro supremo, sobre todos os pontos dessa massa
uniforme. Aniquila as gradações intermediárias da aristocracia entre a massa do povo e o poder do
Estado. Provoca, portanto, de todos os lados, a ingerência direta desse poder do Estado e a interposição
de seus órgãos imediatos. Finalmente, produz um excesso de desempregados para os quais não há lugar
nem no campo nem nas cidades, e que tentam, portanto, obter postos governamentais como uma espécie
de esmola respeitável, provocando a criação de postos do governo. Com os novos mercados que abriu a
ponta de baioneta, com a pilhagem do continente, Napoleão devolveu com juros os impostos
compulsórios. Esses impostos serviam de incentivo à laboriosidade dos camponeses, ao passo que agora
despojam seu trabalho de seus últimos recursos e completam sua incapacidade de resistir ao pauperismo.
E uma vasta burguesia, bem engalanada e bem alimentada, é a idée napoleoniénne mais do agrado do
segundo Bonaparte. Como poderia ser de outra maneira, visto que ao lado das classes existentes na
sociedade ele é forçado a criar uma casta artificial, para a qual a manutenção do seu regime se transforma
em uma questão de subsistência? Uma das suas primeiras operações financeiras, portanto, foi elevar os
salários dos funcionários ao nível anterior e criar novas sinecuras.
Outra ídée napoléonienne é o domínio dos padres como instrumento de governo. Mas em sua harmonia
com a sociedade, em sua dependência das forças naturais e em sua submissão à autoridade que a protegia
de cima, a pequena propriedade recém-criada era naturalmente religiosa, a pequena propriedade
arruinada pelas dívidas em franca divergência com a sociedade e com a autoridade e impelida para além
de suas limitações torna-se naturalmente irreligiosa. O céu era um acréscimo bastante agradável à estreita
faixa de terra recém-adquirida, tanto mais quanto dele dependiam as condições meteorológicas; mas se
converte em insulto assim que se tenta impingi-lo como substituto da pequena propriedade. O padre
aparece então como mero mastim ungido da polícia terrena - outra idèe napoléonienne. Da próxima vez a
expedição contra Roma terá lugar na própria França, mas em sentido oposto ao do Sr. de Montalembert.
Finalmente, o ponto culminante das idées napoléoniennes é a preponderância do exército. O exército era
o point d'honneur(31) dos pequenos camponeses, eram eles próprios transformados em heróis,
defendendo suas novas propriedades contra o mundo exterior, glorificando sua nacionalidade
recém-adquirida, pilhando e revolucionando o mundo. A farda era seu manto de poder; a guerra a sua
poesia; a pequena propriedade, ampliada e a alargada na imaginacão, a sua pátria, e o patriotismo a forma
ideal do sentimento da propriedade. Mas os inimigos contra os quais o camponês francês tem agora que
defender sua propriedade não são os cossacos; são os huissers(32) e os agentes do fisco. A pequena
propriedade não mais está abrangida no que se chama pátria, e sim no registro das hipotecas. O próprio
exército já não é a flor da juventude camponesa; é a flor do pântano do lúmpen proletariado camponês.
Consiste em grande parte em remplaçants,(33) em substitutos, do mesmo modo por que o próprio
Bonaparte é apenas um remplaçant, um substituto de Napoleão. Seus feitos heróicos consistem agora em
caçar camponeses em massa, com antílopes, em servir de gendarme, e se as contradições internas de seu
sistema expulsarem o chefe da Sociedade de 10 de Dezembro para fora das fronteiras da França, seu
exército, depois de alguns atos de banditismo, colherá não louros, mas açoites.
Como vemos: todas as idées napoléoniennes são idéias da pequena propriedade, incipiente, no frescor da
juventude, para a pequena propriedade na fase da velhice constituem um absurdo. Não passam de
alucinações de sua agonia, palavras que são transformadas em frases, espíritos transformados em
fantasmas. Mas a paródia do império era necessária para libertar a massa da nação francesa do peso da
tradição e para desenvolver em forma pura a oposição entre o poder do Estado e a sociedade Com a mina
progressiva da pequena propriedade, desmorona-se a estrutura do Estado erigida sobre ela A
centralização do Estado, de que necessita a sociedade moderna, só surge das minas da maquina
governamental burocrático-militar forjada em oposição ao feudalismo.
A situação dos camponeses franceses nos fornece a resposta ao enigma das eleições de 20 e 21 de
dezembro, que levaram o segundo Bonaparte ao topo do Monte Sinai, não para receber leis mas para
ditá-las.
Evidentemente a burguesia não tinha agora outro jeito senão eleger Bonaparte Quando os puritanos, no
Concilio de Constança, queixavam-se da vida dissoluta a que se entregavam os papas e se afligiam sobre
a necessidade de uma reforma moral, o cardeal Pierre d'Ailly bradou-lhes com veemência 'Quando só o
próprio demônio pode ainda salvar a Igreja Católica, vos apelais para os anjos De maneira semelhante,
depois do golpe ele Estado, a burguesia francesa gritava: Só o chefe da Sociedade de 10 de Dezembro
pode salvar a sociedade burguesa! Só d roubo pode salvar a propriedade; o perjúrio, a religião; a
bastardia, a família; a desordem, a ordem!
Como autoridade executiva que se tornou um poder independente, Bonaparte considera sua missão
salvaguardar "a ordem burguesa". Mas a força dessa ordem burguesa está na classe média. Ele se afirma,
portanto, como representante da classe média, e promulga decretos nesse sentido. Não obstante, ele só é
alguém devido ao fato de ter quebrado o poder político dessa classe média e de quebrá-lo novamente
todos os dias. Consequentemente, afirma-se como o adversário do poder político e literário da classe
média. Mas ao proteger seu poder material, gera novamente o seu poder político. A causa deve, portanto,
ser mantida viva; o efeito, porém, onde se manifesta, tem que ser liquidado. Mas isso não pode se dar
sem ligeiras confusões de causa e efeito, pois em sua mútua influência ambos perdem suas características
distintivas. Daí, novos decretos que apagam a linha divisória. Diante da burguesia Bonaparte se
considera ao mesmo tempo representante dos camponeses e do povo em geral, que deseja tornar as
classes mais baixas do povo felizes dentro da estrutura da sociedade burguesa. Daí novos decretos que
roubam de antemão aos "verdadeiros socialistas" sua arte de governar. Mas acima de tudo, Bonaparte
considera-se o chefe da Sociedade de 10 de Dezembro, representante do lúmpen proletariado a que
pertencem ele próprio, seu entourage,(34) seu governo e seu exército, e cujo interesse primordial é colher
benefícios e retirar prêmios da loteria da Califórnia do tesouro do Estado. E sustenta sua posição de chefe
da Sociedade de 10 de Dezembro com decretos, sem decretos e apesar dos decretos.
Essa tarefa contraditória do homem explica as contradições do seu governo, esse confuso tatear que ora
procura conquistar, ora humilhar, primeiro uma classe depois outra e alinha todas elas uniformemente
contra ele, essa insegurança prática constitui um contraste altamente cômico com o estilo imperioso e
categórico de seus decretos governamentais, estilo copiado fielmente do tio.
A indústria e o comércio, e, portanto, os negócios da classe média, deverão prosperar em estilo de estufa
sob o governo forte. São feitas inúmeras concessões ferroviárias. Mas o lúmpen proletariado bonapartista
tem que enriquecer.
Os iniciados fazem tripotage(35) na Bolsa com as concessões ferroviárias. Obriga-se ao Banco a
conceder adiantamentos contra ações ferroviárias. Mas o Banco tem ao mesmo tempo que ser explorado
para fins pessoais, e tem portanto que ser bajulado. Dispensa-se o Banco da obrigação de publicar
relatórios semanais. Acordo leonino do Banco com o governo. É preciso dar trabalho ao povo. Obras
públicas são iniciadas. Mas as obras públicas aumentam os encargos do povo no que diz respeito a
impostos. Reduzem-se, portanto, as taxas mediante um massacre sobre os rentiers,(36) mediante a
conversão de títulos de 5% em títulos de 4,5%. Mas a classe média tem mais uma vez que receber um
douceur(37) Duplica-se, portanto, o imposto do vinho para o povo, que o adquire en détail, e reduz-se à
metade o imposto do vinho para a classe média, que a bebe en gros(38) As uniões operárias existentes
são dissolvidas, mas prometem-se milagres de união para o futuro. Os camponeses têm que ser
auxiliados. Bancos hipotecários que facilitam o seu endividamento e aceleram a concentração da
propriedade. Mas esses bancos devem ser utilizados para tirar dinheiro das propriedades confiscadas à
Casa de Orléans. Nenhum capitalista que concordar com essa condição, que não consta do decreto, e o
Banco hipotecário fica reduzido a um mero decreto etc. etc.
Bonaparte gostaria de aparecer como o benfeitor patriarcal de todas as classes. Mas não pode dar a uma
classe sem tirar de outra. Assim como no tempo da Fronda dizia-se do duque de Guise que ele era o
homem mais oblígeani4 da França porque convertera todas as suas propriedades em compromissos de
seus partidários para com ele, Bonaparte queria passar como o homem mais obligeant(39) da França e
transformar toda a propriedade, todo o trabalho da França em obrigação pessoal para com ele. Gostaria
de roubar a França inteira a fim poder entregá-la de presente à França, ou melhor, a fim de poder
comprar novamente a França com dinheiro francês, pois como chefe da Sociedade de 10 de Dezembro,
tem que comprar o que devia pertencer-lhe. E todas as instituições do Estado, o Senado, o Conselho de
Estado, o Legislativo, a Legião de Honra, as medalhas dos soldados, os banheiros públicos, os serviços
de utilidade pública, as estradas de ferro, o état major(40) da Guarda Nacional com a exceção das praças,
e as propriedades confiscadas à Casa de Orléans tudo se torna parte da instituição do suborno. Todo
posto do exército ou na máquina do Estado converte-se em meio de suborno. Mas a característica mais
importante desse processo, pelo qual a França é tomada para que lhe possa ser entregue novamente, são
as porcentagens que vão ter aos bolsos do chefe e dos membros da Sociedade de 10 de Dezembro durante
a transação. O epigrama com o qual a condessa L., amante do Sr. de Morny, caracterizou o confisco das
propriedades da Casa de Orléans (Cest le premier vol(41), de l'aígle)(42) pode ser aplicado a todos os
vôos desta águia, que mais se assemelha a um abutre. Tanto ele como seus adeptos gritam diariamente
uns para os outros, como aquele cartuxo italiano que admoestava o avarento que, com ostentação,
contava os bens que ainda poderiam sustentá-lo por muitos anos: Tu fai conto sopra i beni, bisogna
prima far il conto sopra gli anni.(43) Temendo se enganarem no cômputo dos anos, contam os minutos.
Um bando de patifes abre caminho para si na corte, nos ministérios, nos altos postos do governo e do
exército, uma malta cujos melhores elementos, é preciso que se diga, ninguém sabe de onde vieram, uma
bohème barulhenta, desmoralizada e rapace, que se enfia nas túnicas guarnecidas de alamares com a
mesma dignidade grotesca dos altos dignitários de Soulouque. Pode-se fazer uma idéia perfeita dessa alta
camada da Sociedade de 10 de Dezembro quando se reflete que Véron-Crevel é o seu moralista e Granier
de Cassagnac o seu pensador. Quando Guizot, durante o seu ministério, utilizou-se desse Granier em um
jornaleco dirigido contra a oposição dinástica, costumava exaltá-lo com esta tirada: C'est le roi des
drôles, "é o rei dos palhaços". Seria injusto recordar a Regência ou Luís XV com referência à corte de
Luís Bonaparte ou a sua camarilha. Pois "a França já tem passado com freqüência por um governo de
favoritas; más nunca antes por um governo de hommes entretenus".
Impelido pelas exigências contraditórias de sua situação e estando ao mesmo tempo, como um
prestidigitador, ante a necessidade de manter os olhares do público fixados sobre ele, como substituto de
Napoleão, por meio de surpresas constantes, isto é, ante a necessidade de executar diariamente um golpe
de Estado em miniatura, Bonaparte lança a confusão em toda a economia burguesa, viola tudo que
parecia inviolável à Revolução de 1848, torna alguns tolerantes em face da revolução, outros desejosos
de revolução, e produz uma verdadeira anarquia em nome da ordem, ao mesmo tempo que despoja de
seu halo toda a máquina do Estado, profana-a e torna-a ao mesmo tempo desprezível e ridícula. O culto
do Manto Sagrado de Treves ele o repete em Paris sob a forma do culto o manto imperial de Napoleão.
Mas quando o manto imperial cair finalmente sobre os ombros de Luís Bonaparte, a estátua de bronze de
Napoleão ruirá do topo da Coluna Vendôme.
K. MARX
Escrito entre dezembro de 1851 a março de 1852.
Notas
1. Republicano de luvas amarelas.
2. Golpe de mão: ataque inesperado.
3. Coup de tête: ato impensado.
4. Va-banque: apostar tudo.
5. Irmão, tens que morrer!
6. Patres Conscripti - senadores de Roma
7. Laisser Aller - deixar passar
8. Mauvaise queue - apêndice doente.
9. Veremos!
10.Deputados do partido da Montanha.
11.Não passais de fanfarrões.
12.Homme de paille - fantoche.
13.Fonds: títulos públicos.
14.Idéias napoleônicas.
15.Maires: Prefeitos.
16.Self-Government: autogoverno.
17.Sous: Moeda francesa.
18.Chantage en règle: chantagem em regra.
19.Maquereaus: Alcoviteiros.
20.Viva Napoleão! Viva as salsichas.
21.Questions brûlantes: questões candentes.
22.Greffier: oficial de justiça.
23.Cités ouvríères: Cidades de trabalhadores
24.Postfestum: (depois da festa) tarde.
25.Katzenjammer; ressaca.
26.Dentro de cinqüenta anos a Europa será ou republicana ou cossaca.
27.É o triunfo completo e definitivo do Socialismo.
28.Código Napoleônico.
29.É vedada a investigação da paternidade.
30.Ville multitude: multidão vil.
31.Point d'honneur: Ponto de honra.
32.Huissers: Oficiais de justiça.
33.Remplaçants: substitutos.
34.Entourage: adeptos que cercam um líder.
35.Tribotage: trapaça.
36.Rentiers: os que vivem de rendas.
37.Douceur: propina.
38.En détail: a varejo; en gros: por atacado.
39.Oblígeante: obsequioso.
40. État major: estado-maior.
41.Vol significa ao mesmo tempo vôo e furto.
42.É o primeiro vôo (furto) da águia.
43.Contas teus bens, deverias antes contar teus anos.