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MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS-MACHADO DE ASSIS
Memórias Póstumas de Brás Cubas
Machado de Assis
AO LEITOR
QUE STENDHAL confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é
que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro
livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez.
Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se
adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas
rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta
da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente
grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não
achará nele o seu romance usual, ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos
frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um
prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos cousas, ou o que as diz
de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário
que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria
curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em
si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com
um piparote, e adeus.
Brás Cubas
CAPÍTULO PRIMEIRO /ÓBITO DO AUTOR
ALGUM TEMPO hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se
poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja
começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a
primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto mas um defunto autor, para quem
a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo.
Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença
radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na
minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era
solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos.
Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia --
peneirava uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um
daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que proferi. à
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beira de minha cova: "Vós, que o conhecestes, meus senhores vós podeis dizer comigo que a
natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm
honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que
cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as
mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado."
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim que
cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country
de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego como
quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez
pessoas, entre elas três senhoras, ; minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, a filha, um lírio
do vale,--e. . . Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora.
Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as
parentas. É verdade padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar
pelo chão, convulsa. Nem o meu óbito era cousa altamente dramática... Um solteirão que
expira aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos de uma
tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à
cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia
crer na minha extinção.
"Morto! morto!" dizia consigo.
E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o vôo desde o
Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, -- a imaginação dessa
senhora também voou por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil...
Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando e me restituir aos primeiros anos. Agora,
quero morrer tranqüilamente metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas
dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de
uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que
essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em
diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga
marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo
fazia-se-me planta, e pedra e lodo, e cousa nenhuma.
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma idéia
grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é
verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.
CAPÍTULO II / O EMPLASTO
COM EFEITO, um dia de manhã, estando a passear na chácara? pendurou-se-me uma idéia
no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, e das cabriolas de contemplá-la.
Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X:
decifra-me ou devoro-te.
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Essa idéia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplastro
anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de
privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado,
verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens: pecuniárias que
deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora,
porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu
principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas e
enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que
negá-lo? Eu tinha a paixão do ruído, do cartaz do foguete de lágrimas. Talvez os modestos
me argúam esse defeito fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim
a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para
mim. De um lado, filantropia e lucro, de outro lado, sede de nomeada. Digamos: --amor da
glória.
Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era
a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio,
oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a cousa mais
verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína
feição.
Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto.
CAPÍTULO III / GENEALOGIA
MAS, JÁ QUE FALEI nos meus dous tios, deixem-me fazer aqui um curto esboço
genealógico.
O fundador da minha família foi um certo Damião Cubas, que floresceu na primeira metade
do século XVIII. Era tanoeiro de oficio, natural do Rio de Janeiro, onde teria morrido na
penúria e na obscuridade, se somente exercesse a tanoaria. Mas não; fez-se lavrador,
plantou, colheu, permutou o seu produto por boas e honradas patacas, até que morreu,
deixando grosso cabedal a um filho licenciado Luís Cubas. Neste rapaz é que
verdadeiramente começa a série de meus avós--dos avós que a minha família sempre
confessou,-- porque o Damião Cubas era afinal de contas um tanoeiro e talvez mau tanoeiro,
ao passo que o Luís Cubas estudou em Coimbra, primou no Estado, e foi um dos amigos
particulares do vice-rei Conde da Cunha.
Como este apelido de Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria, alegava meu pai,
bisneto de Damião, que o dito apelido fora dado a um cavaleiro, herói nas jornadas da
África, em prêmio da façanha que praticou, arrebatando trezentas cubas aos mouros. Meu
pai era homem de imaginação; escapou à tanoaria nas asas de um ca1embour. Era um bom
caráter, meu pai, varão digno e leal como poucos. Tinha, é verdade, uns fumos de pacholice;
mas quem não é um pouco pachola nesse mundo? Releva notar que ele não recorreu à
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inventiva senão depois de experimentar a falsificação; primeiramente, entroncou-se na
família daquele meu famoso homônimo, o Capitão-mor, Brás Cubas, que fundou a vila de S.
Vicenten onde morreu em 1592, e por esse motivo e que me deu o nome de Brás.
Opôs-se-lhe, porém, a família do capitão-mor, e foi então que ele imaginou as trezentas
cubas mouriscas.
Vivem ainda alguns membros de minha família, minha sobrinha Venância, por exemplo, o
lírio do vale, que é a flor das damas do seu tempo; vive o pai, o Cotrim, um sujeito que...
Mas não antecipemos os sucessos; acabemos de uma vez com o nosso emplasto.
CAPÍTULO IV / A IDÉIA FIXA
A MINHA IDÉIA, depois de tantas cabriolas, constituíra-se idéia fixa. Deus te livre, leitor,
de uma idéia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho. Vê o Cavour; foi a idéia fixa
da unidade italiana que o matou. Verdade é que Bismarck não morreu; mas cumpre advertir
que a natureza é uma grande caprichosa e a história uma eterna loureira. Por exemplo,
Suetônio deu-nos um Cláudio, que era um simplório, ou "uma abóbora" como lhe chamou
Sêneca, e um Tito, que mereceu ser as delícias de Roma. Veio modernamente um professor
e achou meio de demonstrar que dos dois césares, o delicioso, o verdadeiro delicioso, foi o
"abóboras' de Sêneca. E tu, madama Lucrécia, flor dos Bórgias, se um poeta te pintou como
a Messalina católica, apareceu um Gregorovius incrédulo que te apagou muito essa
qualidade, e, se não vieste a lírio, também não ficaste pântano. Eu deixo-me estar entre o
poeta e o sábio.
Viva pois a história, a volúvel história que dá para tudo; e, tornando à idéia fixa, direi que é
ela a que faz os varões fortes e os doudos; a idéia móbil, vaga ou furta-cor é a que faz os
Cláudios,-- fórmula Suetônio.
Era fixa a minha idéia, fixa como... Não me ocorre nada que seja assaz fixo nesse mundo:
talvez a Lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez a finada dieta germânica. Veja o leitor a
comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque
ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a
anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois
lá iremos. Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de
um homem já desafrontado da brevidade do século obra supinamente filosófica, de uma
filosofia desigual, agora austera logo brincalhona, cousa que não edifica nem destrói, não
inflama nem regala, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado.
Vamos lá; retifique o seu nariz, e tornemos ao emplasto. Deixemos a história com os seus
caprichos de dama elegante. Nenhum de nós pelejou a batalha de Salamina, nenhum
escreveu a confissão de Augsburgo; pela minha parte; se alguma vez me lembro de
Cromwell, é só pela idéia de que Sua Alteza, com a mesma mão que trancara o parlamento,
teria imposto aos ingleses o emplasto Brás Cubas. Não se riam dessa vitória comum da
farmácia e do puritanismo. Quem não sabe que ao pé de cada bandeira grande, pública,
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ostensiva, há muitas vezes várias outras bandeiras modestamente particulares, que se
hasteiam e flutuam à sombra daquela, e não poucas vezes lhe sobrevivem? Mal comparando,
é como a arraia-miúda, que se acolhia à sombra do castelo feudal; caiu este e a arraia ficou.
Verdade é que se fez graúda e castelã... Não, a comparação não presta.
CAPÍTULO V / EM QUE APARECE A ORELHA DE UMA SENHORA
SENÃO QUANDO, estando eu ocupado em preparar e apurar a minha invenção, recebi em
cheio um golpe de ar; adoeci logo, e não me tratei. Tinha o emplasto no cérebro; trazia
comigo a idéia fixa dos doudos e dos fortes. Via-me, ao longe, ascender do chão das turbas,
e remontar ao céu, como uma águia imortal, e não é diante de tão excelso espetáculo que um
homem pode sentir a dor que o punge. No outro dia estava pior; tratei-me enfim, mas
incompletamente sem método, nem cuidado, nem persistência; tal foi a origem do mal que
me trouxe à eternidade. Sabem já que morri numa sexta-feira, dia aziago, e creio haver
provado que foi a minha invenção que me matou. Há demonstrações menos lúcidas e não
menos triunfantes.
Não era impossível, entretanto, que eu chegasse a galgar o cimo de um século, e a figurar
nas folhas públicas, entre macróbios. Tinha saúde e robustez. Suponha-se que, em vez de
estar lançando os alicerces de uma invenção farmacêutica, tratava de coligir os elementos de
uma instituição política, ou de uma reforma religiosa. Vinha a corrente de ar, que vence em
eficácia o cálculo humano, e lá se ia tudo. Assim corre a sorte dos homens.
Com esta reflexão me despedi eu da mulher, não direi mais discreta, mas com certeza mais
formosa entre as contemporâneas suas, a anônima do primeiro capítulo, a tal, cuja
imaginação à semelhança das cegonhas do Ilisso. . . Tinha então 54 anos, era uma ruína,
uma imponente ruína. Imagine o leitor que nos amamos, ela e eu, muitos anos antes, e que
um dia. já enfermo, vejo-a assomar à porta da alcova . . .
CAPÍTULO VI / CHIMÈNE, QUI L'EÜT DIT? RODRIGUE, QUI L'EÜT CRU?
VEJO-A ASSOMAR à porta da alcova, pálida, comovida, trajada de preto, e ali ficar
durante um minuto, sem animo de entrar, ou detida pela presença de um homem que estava
comigo. Da cama, onde jazia, contemplei-a durante esse tempo, esquecido de lhe dizer nada
ou de fazer nenhum gesto. Havia já dous anos que nos não víamos e eu via-a agora não qual
era, mas qual fora, quais fôramos ambos porque um Ezequias misterioso fizera recuar o sol
até os dias juvenis. Recuou o sol, sacudi todas as misérias, e este punhado de pó, que a
morte ia espalhar na eternidade do nada, pôde mais do que o tempo, que é o ministro da
morte. Nenhuma água de Juventa igualaria ali a simples saudade.
Creiam-me, o menos mau é recordar; ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma
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gota da baba de Caim. Corrido o tempo e cessado o espasmo, então sim, então talvez se
pode gozar deveras. porque entre uma e outra dessas duas ilusões, melhor é a que se gosta
sem doer.
Não durou muito a evocação; a realidade dominou logo; o presente expeliu o passado.
Talvez eu exponha ao leitor, em algum canto deste livro, a mina teoria das edições humanas.
O que por agora importa saber é que Virgília -- entrou na alcova, firme, com a gravidade
que lhe davam as roupas e os anos, e veio até o meu leito. O estranho levantou-se e saiu. Era
um sujeito, que me visitava todos os dias para falar do câmbio, da colonização e da
necessidade de desenvolver a viação férrea; nada mais interessante para um moribundo.
Saiu; Virgília deixou-se estar de pé; durante algum tempo ficamos a olhar um para o outro,
sem articular palavra. Quem diria? De dous grandes namorados, de duas paixões sem freio,
nada mais havia ali, vinte anos depois; havia apenas dous corações murchos, devastados
pela vida e saciados dela, não sei se em igual dose, mas enfim saciados. Virgília tinha agora
a beleza da velhice, um ar austero e maternal; estava menos magra do que quando a vi, pela
última vez, numa festa de S. João, na Tijuca; e porque era das que resistem muito, só agora
começavam os cabelos escuros a intercalar-se com alguns fios de prata.
-- Anda visitando os defuntos? Disse-lhe eu. -- Ora, defuntos! Respondeu Virgília com um
muxoxo. E depois de me apertar as mãos:
-- Ando a ver se ponho os vadios para a rua.
Não tinha a carícia lacrimosa de outro tempo; mas a voz era amiga e doce. Sentou-se. Eu
estava só, em casa, com um simples enfermeiro; podíamos falar um ao outro, sem perigo.
Virgília deu-me longas notícias de fora, narrando-as com graça, com um certo travo de má
língua, que era o sal da palestra; eu, prestes a deixar o mundo, sentia um prazer satânico em
mofar dele, em persuadir-me que não deixava nada.
-- Olhe que não volto mais. Morrer! Todos nós havemos de morrer; basta estarmos vivos.
E vendo o relógio:
-- Jesus! São três horas. Vou-me embora.
--Já?
--Já; virei amanhã ou depois.
--Não sei se faz bem, retorqui; o doente é um solteirão e a casa não tem senhoras...
-- Sua mana?
-- Há de vir cá passar uns dias, mas não pode ser antes de sábado.
Virgília refletiu um instante, levantou os ombros e disse com gravidade:
--Estou velha! Ninguém mais repara em mim. Mas, para cortar dúvidas, virei com o
Nhonhô.
Nhonhô era um bacharel, único filho de seu casamento, que, na idade de cinco anos, fora
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cúmplice inconsciente de nossos amores. Vieram juntos, dous dias depois, e confesso que,
ao vê-los ali, na minha alcova, fui tomado de um acanhamento que nem me permitiu
corresponder logo às palavras afáveis do rapaz. Virgília adivinhou-me e disse ao filho:
-- Nhonhô, não repares nesse grande manhoso que aí está; não quer falar para fazer crer que
está à morte.
Sorriu o filho, eu creio que também sorri, e tudo acabou em pura galhofa. Virgília estava
serena e risonha, tinha o aspecto das vidas imaculadas. Nenhum olhar suspeito, nenhum
gesto que pudesse denunciar nada; uma igualdade de palavra e de espírito, uma dominação
sobre si mesma, que pareciam e talvez fossem raras. Como tocássemos, castalmente, nuns
amores ilegítimos, meio secretos, meio divulgados, vi-a falar com desdém e um pouco de
indignação da mulher de que se tratava, aliás sua amiga. O filho sentia-se satisfeito, ouvindo
aquela palavra digna e forte, e eu perguntava a mim mesmo o que diriam de nós os gaviões,
se Buffon tivesse nascido gavião...
Era o meu delírio que começava.
CAPÍTULO VII / O DELÍRIO
QUE ME CONSTE, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo
agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais pode saltar o
capítulo; vá direito à narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é
interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte a trinta minutos.
Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro, escanhoando um
mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões e confeitos: caprichos de mandarim.
Logo depois, senti-me transformado na Suma Teológica de S. Tomás, impressa num
volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; idéia esta que me
deu ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas
mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguém as descruzava (Virgília
decerto), porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto.
Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou.
Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de
tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que
a viagem me parecia sem destino.
-- Engana-se, replicou o animal, nós vamos à origem dos séculos. Insinuei que deveria ser
muitíssimo longe; mas o hipopótamo não me entendeu ou não me ouviu, se é que não fingiu
uma dessas cousas; e, perguntando-lhe, visto que ele falava, se era descendente do cavalo de
Aquiles ou da asna de Balaão, retorquiu-me com um gesto peculiar a estes dous
quadrúpedes: abanou as orelhas. Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir à ventura.
Já agora não se me dá de confessar que sentia umas tais ou quais cócegas de curiosidade,
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por saber onde ficava a origem dos séculos, se era tão misteriosa como a origem do Nilo, e
sobretudo se valia alguma cousa mais ou menos do que a consumação dos mesmos séculos:
reflexões de cérebro enfermo. Como ia de olhos fechados, não via o caminho lembra-me só
que a sensação de frio aumentava com a jornada, e que chegou uma ocasião em que me
pareceu entrar na região dos gelos eternos. Com efeito, abri os olhos e vi que o meu animal
galopava numa planícia branca de neve, e vários animais grandes e de neve. Tudo neve;
chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei falar, mas apenas pude grunhir esta pergunta:
--Onde estamos?
--Já passamos o Éden.
-- Bem; paremos na tenda de Abraão.
--Mas se nós caminhamos para trás! Redargüiu motejando a minha cavalgadura.
Fiquei vexado e aturdido. A jornada entrou e parecer-me enfadonha e extravagante, o frio
incômodo, a condução violenta, e o resultado impalpável. E depois -- cogitações do enfermo
-- que chegássemos ao fim indicado, não era possível que os séculos, irritados com lhes
devassem a origem, me esmagassem entre as unhas, que deviam ser tão seculares como eles.
Enquanto assim pensava, íamos devorando caminho, e a planície voava debaixo dos nossos
pés, até que o animal estacou, e pude olhar mais tranqüilamente em torno de mim. Olhar
somente; nada vi, além da imensa brancura da neve, que desta vez invadira o próprio céu,
até ali azul. Talvez, a espaços, me parecia uma ou outra planta, enorme, brutesca, meneando
ao vento as suas largas folhas. O silêncio daquela região era igual ao do sepulcro: dissera-se
que a vida das cousas ficara estúpida diante do homem.
Caiu do ar? Destacou-se da terra? não sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher
me apareceu então, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a
vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os
contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano.
Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo de algum
tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de delírio.
--Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.
Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma
gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito de um tufão; as plantas torceram-se e um
longo gemido quebrou a mudez das cousas externas.
--Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma.
Vives; não quero outro flagelo.
--Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para certificar-me da existência.
--Sim, verme, tu vives. Não receies perder andrajo que é teu orgulho; provarás ainda, por
algumas horas, o pão da dor e o vinho da miséria. Vives: agora mesmo que ensandeceste,
vives; e se a tua consciência reouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres viver.
Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e levantou-me ao ar, como
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se fora uma pluma. Só então pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais
quieto; nenhuma contorção violenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a feição
única, geral, completa, era a da impassibilidade egoísta, a da eterna surdez, a da vontade
imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto
de expressão glacial, havia um ar de juventude, mescla de força e viço, diante do qual me
sentia eu o mais débil e decrépito dos seres.
Entendeste-me ? disse ela, no fim de algum tempo de mútua contemplação.
--Não, respondi; nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma fábula. Estou sonhando,
decerto, ou, se é verdade, que enlouqueci, tu não passas de uma concepção de alienado, isto
é, uma cousa vã, que a razão ausente não pode reger nem palpar. Natureza tu? a Natureza
que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um flagelo, nem, como tu, traz esse
rosto indiferente, como o sepulcro. E por que Pandora?
--Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança,
consolação dos homens. Tremes?
-- Sim; o teu olhar fascina-me.
-- Creio; eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o
que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.
Quando esta palavra ecoou, como um trovão, naquele imenso vale, afigurou-se-me que era o
último som que chegava a meus ouvidos; pareceu-me sentir a decomposição súbita de mim
mesmo. Então, encarei-a com olhos súplices, e pedi mais alguns anos.
--Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida? Para devorar e
seres devorado depois? Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o
que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia. a melancolia da tarde, a
quietação da noite, os aspectos da Terra, o sono, enfim, o maior benefício das minhas mãos.
Que mais queres tu, sublime idiota?
--Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, senão
tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando-me?
-- Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que
vem. O minuto que vem é forte, jucundo supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e
perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho
outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que
ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.
Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes,
e contemplei, durante um tempo largo, ao longe através de um nevoeiro, uma cousa única.
Imagina tu leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas
as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca
dos seres e das cousas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do
homem e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação
nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que
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eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o
relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio
são outros, eu via tudo o que passava diante de mim,--flagelos e delícias, desde essa cousa
que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a
miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que
inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a
vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho,
até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera,
ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor
da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia a indiferença, que era um sono sem
sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria
diante da fatalidade das cousas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um
retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto
precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, -- nada menos que a quimera da
felicidade, -- ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem e
cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.
Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia, que Natureza ou
Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu
que me pus a rir, -- de um riso descompassado e idiota.
--Tens razão, disse eu, a cousa é divertida e vale a pena, -- talvez monótona mas vale a pena.
Quando Jó amaldiçoava o dia em que fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá
de cima O espetáculo. Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a cousa é divertida?
mas digere-me.
A resposta foi compelir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os séculos que
continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações que se superpunham às gerações,
umas tristes, como os Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de Cômodo, e
todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma força misteriosa me retinha os pés;
então disse comigo: "Bem, os séculos vão passando, chegará o meu, e passará também, até o
último, que me dará a decifração da eternidade." E fixei os olhos, e continuei a ver as idades
que vinham chegando e passando, já então tranqüilo e resoluto, não sei até se alegre. Talvez
alegre. Cada século trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de
verdade e de erro e o seu cortejo de sistemas, de idéias novas, de novas ilusões; cada um
deles rebentavam as verduras de uma primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais
tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a história e a
civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e o
palácio, a rude aldeia e Tebas de cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que
enleva, fazia orador, mecânico, filósofo, corria a face do globo, descia ao ventre da Terra,
subia à esfera das nuvens, colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a
necessidade da vida e a melancolia do desamparo. Meu olhar, enfarado e distraído, viu
enfim chegar o século presente, e atrás deles os futuros. Aquele vinha ágil, destro, vibrante!
cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miserável como os primeiros,
e assim passou e assim passaram os outros com a mesma rapidez e igual monotonia.
Redobrei de atenção; fitei a vistas ia enfim ver o último, -- último!; mas então já a rapidez
da marcha era tal, que escapava a toda a compreensão; ao pé dela o relâmpago seria um
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século. Talvez por isso entraram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros
minguaram, outros perderam-se no ambiente, um nevoeiro cobriu tudo,-- menos o
hipopótamo que ali me trouxera, e que aliás começou a diminuir, a diminuir a diminuir, até
ficar do tamanho de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato
Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel...
CAPÍTULO VIII / RAZÃO CONTRA SANDICE
JÁ O LEITOR compreendeu que era a Razão que voltava à casa, e convidava a Sandice a
sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de Tartufo:
La maison est à moi, c'est à vous d'en sortir.
Mas é sestro antigo da Sandice criar amor às casas alheias, de modo que, apenas senhora de
uma, dificilmente lha farão despejar. É sestro; não se tira daí; há muito que lhe calejou a
vergonha. Agora, se advertimos no imenso número de casas que ocupa, umas de vez. Outras
durante as suas estações calmosas, concluiremos que esta amável peregrina é o terror dos
proprietários. No nosso caso, houve quase um distúrbio à porta do meu cérebro, porque a
adventícia não queria entregar a casa, e a dona não cedia da intenção de tomar o que era seu.
Afinal, já a Sandice se contentava com um cantinho no sótão.
-- Não, senhora replicou a Razão, estou cansada de lhe ceder sótãos, cansada e
experimentada, o que você quer é passar mansamente do sótão à sala de jantar, daí à de
visitas e ao lesto.
--Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um mistério...
Que mistério?
-- De dous, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só uns dez minutos.
A razão pôs-se a rir.
-- Hás de ser sempre a mesma cousa... sempre a mesma cousa... sempre a mesma cousa...
E dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fora; depois entrou e fechou-se. A
Sandice ainda gemeu algumas súplicas, grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se
depressa, deitou a língua de fora, em ar de surriada, e foi andando...
CAPÍTULO IX / TRANSIÇÃO
E VEJAM AGORA com que destreza; com que arte faço eu a maior transição deste livro.
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Vejam: o meu delírio começou em presença de Virgília; Virgília foi o meu grão pecado da
juventude; não há juventude sem meninice; meninice supõe nascimento; e eis aqui como
chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 de outubro de 18 05, em que nasci. Viram? Nenhuma
juntura aparente, nada que divirta a atenção pausada do leitor: nada. De modo que o livro
fica assim com todas as vantagens do método, sem a rigidez do método. Na verdade, era
tempo. Que isto de método, sendo, como é, uma cousa indispensável, todavia é melhor tê-lo
sem gravata nem suspensórios, mas um pouco à fresca e à solta, como quem não se lhe dá
da vizinha fronteira, nem do inspetor de quarteirão. É como a eloquência, que há uma
genuína e vibrante, de uma arte natural e feiticeira, e outra tesa, engomada e choca. Vamos
ao dia 20 de outubro.
CAPÍTULO X / NAQUELE DIA
NAQUELE DIA , a árvore dos Cubas brotou uma graciosa flor. Nasci; recebeu-me nos
braços a Pascoela, insigne parteira minhota, que se gabava de ter aberto a porta do mundo a
uma geração inteira de fidalgos. Não é impossível que meu pai lhe ouvisse tal declaração;
creio, todavia, que o sentimento paterno é que o induziu a gratificá-la com duas meias
dobras. Lavado e enfaixado, fui desde logo o herói da nossa casa. Cada qual prognosticava a
meu respeito o que mais lhe quadrava ao sabor. Meu tio João, o antigo oficial de infantaria?
achava-me um certo olhar de Bonaparte, cousa que meu pai não pode ouvir sem náuseas;
meu tio Ildefonso, então simples padre, farejava-me cônego.
--Cônego é o que ele há de ser, e não digo mais por não parecer orgulho; mas não me
admiraria nada se Deus o destinasse a um bispado... é verdade, um bispado; não é cousa
impossível. Que diz você mano Bento?
Meu pai respondia a todos que eu seria o que Deus quisesse; e alçava-me ao ar, como se
intentasse mostrar-me à cidade e ao mundo; perguntava a todos se eu me parecia com ele, se
era inteligente, bonito. . .
Digo essas cousas por alto, segundo as ouvi narrar anos depois; ignoro a mor parte dos
pormenores daquele famoso dia. Sei que a vizinhança veio ou mandou cumprimentar o
recém-nascido, e que durante as primeiras semanas muitas foram as visitas em nossa casa.
Não houve cadeirinha que não trabalhasse; aventou-se muita casaca e muito calção. Se não
conto os mimos, os beijos, as admiração as bênçãos, é porque, se os contasse, não acabaria
mais o capítulo e preciso acabá-lo.
Item, não posso dizer nada do meu batizado, porque nada me referiram a tal respeito, a não
ser que foi uma das mais galhardas festas do ano seguinte, 1806; batizei-me na igreja de S.
Domingos, uma terça-feira de março, dia claro, luminoso e puro, sendo padrinhos o Coronel
Rodrigues de Matos e sua senhora. Um e outro descendiam de velhas famílias do Norte e
honravam deveras o sangue que lhes corria nas veias, outrora derramado na guerra contra
Holanda. Cuido que os nomes de ambos foram das primeiras cousas que aprendi; e
certamente os dizia com muita graça, ou revelava algum talento precoce, porque não havia
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pessoa estranha diante de quem me não obrigassem a recitá-los.
--Nhonhô, diga a estes senhores como é que se chama seu padrinho.
-- Meu padrinho? é o Excelentíssimo Senhor Coronel Paulo Vaz Lobo César de Andrade e
Sousa Rodrigues de Matos; minha madrinha é a Excelentíssima Senhora D. Maria Luísa de
Macedo Resende e Sousa Rodrigues de Matos.
-- É muito esperto o seu menino! exclamavam os ouvintes.
--Muito esperto, concordava meu pai, e os olhos babavam-se-lhe de orgulho, e ele
espalmava a mão sobre a minha cabeça, fitava-me longo tempo, namorado, cheio de si.
Item, comecei a andar, não sei bem quando, mas antes do tempo. Talvez por apressar a
natureza, obrigavam-me cedo a agarrar às cadeiras, pegavam-me da fralda, davam-me
carrinhos de pau.--Só só, nhonhô, só só, dizia-me a mucama. E eu, atraído pelo chocalho de
lata, que minha mãe agitava diante de mim, lá ia para a frente, cai aqui, cai acolá; e andava,
provavelmente mal, mas andava, e fiquei andando.
CAPÍTULO XI / O MENINO É PAI DO HOMEM
CRESCI; e nisso é que a família não interveio; cresci naturalmente como crescem as
magnólias e os gatos. Talvez os gatos são menos matreiros, e com certeza, as magnólias são
menos inquietas de que eu era na minha infância. Um poeta dizia que o menino é pai do
homem. Se isto é verdade, vejamos alguns lineamentos do menino.
Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de "menino diabo"; e verdadeiramente não era
outra cousa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e
voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma
colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um
punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a
escrava é que estragara o doce "por pirraça"; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um
moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um
cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão,
fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, -- algumas vezes gemendo, --
mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um --"ai, nhonhô!" -- ao que eu
retorquia: --"Cala a boca, besta!" --Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a
pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e
outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que
eram também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande
admiração; e se às vezes me repreendia à vista de gente, fazia-o por simples formalidade:
em particular dava-me beijos.
Não se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida a quebrar a cabeça dos
outros nem a esconder-lhes os chapéus; mas opiniático, egoísta e algo contemptor dos
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homens, isso fui; se não passei o tempo a esconder-lhes os chapéus, alguma vez lhes puxei
pelo rabicho das cabeleiras.
Outrossim, afeiçoei-me à contemplação da injustiça humana, inclinei-me a atenuá-la, a
explicá-la a classifiquei-a por partes, a entendê-la não segundo um padrão rígido, mas ao
sabor das circunstâncias e lugares. Minha mãe doutrinava-me a seu modo fazia-me decorar
alguns preceitos e orações; mas eu sentia que, mais do que as orações, me governavam os
nervos e o sangue, e a boa regra perdia o espírito, que a faz viver, para se tornar uma vã
fórmula. De manhã, antes do mingau, e de noite, antes da cama, pedia a Deus que me
perdoasse, assim como eu perdoava aos meus devedores; mas entre a manhã e a noite fazia
uma grande maldade, e meu pais passado o alvoroço, dava-me pancadinhas na cara, e
exclamava a rir: Ah! brejeiro! ah! brejeiro!
Sim, meu pai adorava-me. Alinha mãe era uma senhora fraca, de pouco cérebro e muito
coração, assaz crédula, sinceramente piedosa, --caseira, apesar de bonita, e modesta, apesar
de abastada; temente às trovoadas e ao marido. O marido era na Terra o seu deus. Da
colaboração dessas duas criaturas nasceu a minha educação, que, se tinha alguma cousa boa,
era no geral viciosa, incompleta, e, em partes, negativa. Meu tio cônego fazia às vezes
alguns reparos ao irmão dizia-lhe que ele me dava mais liberdade do que ensino, e mais
afeição do que emenda; mas meu pai respondia que aplicava na minha educação um sistema
inteiramente superior ao sistema usado; e por este modo, sem confundir o irmão, iludia-se a
si próprio.
De envolta com a transmissão e a educação, houve ainda o exemplo estranho, o meio
doméstico. Vimos os pais; vejamos os tios. Um deles, o João, era um homem de língua
solta, vida galante, conversa picaresca. Desde os onze anos entrou a admitir-me às anedotas
reais ou não, eivadas todas de obscenidade ou imundície. Não me respeitava a adolescência,
como não respeitava a batina do irmão; com a diferença que este fugia logo que ele
enveredava por assunto escabroso. Eu não; deixava-me estar, sem entender nada, a
princípio, depois entendendo, e enfim achando-lhe graça. No fim de certo tempo, quem o
procurava era eu; e ele gostava muito de mim? Dava-me doces, levava-me a passeio. Em
casa, quando lá ia passar alguns dias, não poucas vezes me aconteceu achá-lo, no fundo da
chácara, no lavadouro, a palestrar com as escravas que batiam roupa; aí é que era um desfiar
de anedotas, de ditos, de perguntas, e um estalar de risadas, que ninguém podia ouvir,
porque o lavadouro ficava muito longe de casa. As pretas, com uma tanga no ventre, a
arregaçar-lhes um palmo dos vestidos, umas dentro do tanque, outras fora, inclinadas sobre
as peças de roupa, a batê-las a ensaboá-las, a torcê-las, iam ouvindo e redargüindo às
pilhérias do tio João, e a comentá-las de quando em quando com esta palavra:
--Cruz, diabo!... Este sinhô João é o diabo!
Bem diferente era o tio cônego. Esse tinha muita austeridade e pureza; tais dotes, contudo,
não realçavam um espírito superior, apenas compensavam um espírito medíocre. Não era
homem que visse a parte substancial da Igreja; via o lado externo, a hierarquia, as
preeminências, as sobrepelizes, as circunflexões. Vinha antes da sacristia que do altar. Uma
lacuna no ritual excitava-o mais do que uma infração dos mandamentos. Agora, a tantos
anos de distancia, não estou certo se ele poderia atinar facilmente com um trecho de
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Tertuliano, ou expor, sem titubear, a história do símbolo de Nicéia; mas ninguém, nas festas
cantadas, sabia melhor o número e casos das cortesias que se deviam ao oficiante. Cônego
foi a única ambição de sua vida; e dizia de coração que era a maior dignidade a que podia
aspirar. Piedoso, severo nos costumes, minucioso na observância das regras, frouxo,
acanhado, subalterno, possuía algumas virtudes, em que era exemplar,- mas carecia
absolutamente da força de as incutir, de as impor aos outros;
Não digo nada de minha tia materna, D. Emerenciana, e aliás era a pessoa que mais
autoridade tinha sobre mim; essa diferençava-se grandemente dos outros; mas viveu pouco
tempo em nossa companha, uns dous anos. Outros parentes e alguns- íntimos não merecem
a pena de ser citados; não tivemos uma vida comum, mas intermitente, com grandes claros
de separação. O que importa é a expressão geral do meio doméstico, e essa aí fica
indicada,--vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão
da vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta
flor.
CAPÍTULO XII / UM EPISÓD10 DE 1814
MAS EU NÃO QUERO passar adiante, sem contar sumariamente um galante episódio de
1814; tinha nove anos.
Napoleão, quando eu nasci, estava já em todo o esplendor da glória e do poder; era
imperador e granjeara inteiramente a admiração dos homens. Meu pai, que a força de
persuadir os outros da nossa nobreza, acabara persuadindo-se a si próprio, nutria contra ele
um ódio puramente mental. Era isso motivo de renhidas contendas em nossa casa, porque
meu tio João, não sei se por espírito de classe e simpatia de ofício, perdoava no déspota o
que admirava no general, meu tio padre era inflexível contra o corso, e outros parentes
dividiam-se: daí as controvérsias e as rusgas.
Chegando ao Rio de Janeiro a notícia da primeira queda de Napoleão, houve naturalmente
grande abalo em nossa casa, mas nenhum chasco ou remoque. Os vencidos, testemunhas do
regozijo público, julgaram mais decoroso o silêncio; alguns foram além e bateram palmas. A
população, cordialmente alegre, não regateou demonstrações de afeto à real família; houve
iluminações salvas, Te Deum, cortejo e aclamações. Figurei nesses dias com um espadim
novo, que meu padrinho me dera no dia de Santo Antônio; e, francamente, interessava-me
mais o espadim do que a queda de Bonaparte. Nunca me esqueceu esse fenômeno. Nunca
mais deixei de pensar comigo que o nosso espadim é sempre maior do que a espada de
Napoleão. E notem que eu ouvi muito discurso, quando era vivo, li muita página rumorosa
de grandes idéias e maiores palavras, mas não sei por que, no fundo dos aplausos que me
arrancavam da boca, lá escoava alguma vez este conceito de experimentado:
--Vai-te embora, tu só cuidas do espadim.
Não se contentou a minha família em ter um quinhão anônimo no regozijo público;
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entendeu oportuno e indispensável celebrar a destituição do imperador com um jantar, e tal
jantar que o ruído das aclamações chegasse aos ouvidos de Sua Alteza, ou quando menos de
seus ministros. Dito e feito. Veio abaixo toda a velha prataria, herdada do meu avô Luís
Cubas; vieram as toalhas de Flandres, as grandes jarras da Índia; matou-se um capado;
encomendaram-se às madres da Ajuda as compotas e as marmeladas; lavaram-se,
arearam-se poliram-se as salas, escadas, castiçais, arandelas, as vastas mangas de vidro,
todos os aparelhos do luso clássico.
Dada a hora, achou-se reunida uma sociedade seleta, o juiz-de-fora, três ou quatro oficiais
militares, alguns comerciantes e letrados, vários funcionários da administração, uns com
suas mulheres e filhas, outros sem elas, mas todos comungando no desejo de atolar a
memória de Bonaparte no papo de um peru. Não era um jantar mas um Te Deum; foi o que
pouco mais ou menos disse um dos letrados presentes, o Dr. Vilaça, glosador insigne, que
acrescentou aos pratos de casa o acepipe das musas. Lembra-me, como se fosse ontem
lembra-me de o ver erguer-se, com a sua longa cabeleira de rabicho, casaca de seda, uma
esmeralda no dedo, pedir a meu tio padre que lhe repetisse o mote, e, repetido o mote, cravar
os olhos na testa de uma senhora. depois tossir, alçar a mão direita, toda fechada, menos o
dedo índice, que apontava para o tecto e, assim posto e composto, devolver o mote glosado.
Não fez uma glosa, mas três; depois jurou aos seus deuses não acabar mais. Pedia um mote,
davam-lho, ele glosava-o prontamente, e logo pedia outro e mais outro; a tal ponto que uma
das senhoras presentes não pôde calar a sua grande admiração.
--A senhora diz isso, retorquia modestamente o Vilaça, porque nunca ouviu o Bocage, como
eu ouvi, no fim do século, em Lisboa. Aquilo sim! que facilidade! e que versos! Tivemos
lutas de uma e duas horas, no botequim do Nicola, a glosarmos, no meio de palmas e bravos.
Imenso talento o do Bocage! Era o que me dizia, há dias, a senhora Duquesa de Cadaval...
E estas três palavras últimas, expressas com muita ênfase, produziram em toda a assembléia
um frêmito de admiração e pasmo. Pois esse homem tão dado, tão simples, além de pleitear
com poetas, discreteava com duquesas! Um Bocage e uma Cadaval! Ao contacto de tal
homem, as damas sentiam-se superfinas; os varões olhavam-no com respeito, alguns com
inveja, não raros com incredulidade. Ele, entretanto, ia caminho, a acumular adjetivo sobre
adjetivo, advérbio sobre advérbio, a desfiar todas as rimas de tirano e de usurpador. Era à
sobremesa; ninguém já pensava em comer. No intervalo das glosas, corria um burburinho
alegre, um palavrear de estômagos satisfeitos; os olhos moles e úmidos, ou vivos e cálidos,
espreguiçavam-se ou saltitavam de uma ponta à outra da mesa, atulhada de doces e frutas,
aqui o ananás em fatias, ali o melão em talhadas, as compoteiras de cristal deixando ver o
doce de coco, finamente ralado, amarelo como uma gema, -- ou então o melado escuro e
grosso, não longe do queijo e do cará. De quando em quando um riso jovial, amplo,
desabotoado, um riso de família, vinha quebrar a gravidade política do banquete. No meio
do interesse grande e comum, agitavam-se também os pequenos e particulares. As moças
falavam das modinhas que haviam de cantar ao cravo, e do minuete e do solo inglês; nem
faltava matrona que prometesse bailar um oitavado de compasso, só para mostrar como
folgara nos seus bons tempos de criança. Um sujeito, ao pé de mim, dava a outro notícia
recente dos negros novos que estavam a vir, segundo cartas que recebera de Luanda, uma
carta em que o sobrinho lhe dizia ter já negociado cerca de quarenta cabeças, e outra carta
em que... Trazia-as justamente na algibeira mas não as podia ler naquela ocasião. O que
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afiançava é que podíamos contar, só nessa viagem, uns cento e vinte negros, pelo menos
-- Trás. . . trás. . . trás.. . fazia o Vilaça batendo com as mãos uma na outra. O rumor cessava
de súbito, como um estacado de orquestra, e todos os olhos se voltavam para o glosador.
Quem ficava longe aconcheava a mão atrás da orelha para não perder palavra, a mor parte,
antes mesmo da glosa, tinha já um meio riso de aplauso, trivial e cândido.
Quanto a mim, lá estava, solitário e deslembrado, a namorar certa ! compota da minha
paixão. No fim de cada glosa ficava muito contente, esperando que fosse a última, mas não
era, e a sobremesa continuava intacta. Ninguém se lembrava de dar a primeira voz. Meu pai,
à cabeceira, saboreava a goles extensos a alegria dos convivas; mirava-se todo nos carões
alegres, nos pratos, nas flores, deliciava-se com a familiaridade travada entre os mais
distantes espíritos, influxo de um bom jantar. Eu via isso, porque arrastava os olhos da
compota para ele e dele para a compota, como a pedir-lhe que ma servisse mas fazia-o em
vão. Ele não via nada; via-se a si mesmo. E as glosas sucediam-se, como bátegas d'água,
obrigando-me a recolher o desejo e o pedido. Pacientei quanto pude; e não pude muito. Pedi
em voz baixa o doce; enfim, bradei, berrei, bati com os pés. Meu pai, que seria capaz de
para me servir capaz de me dar o sol, se eu lho exigisse, chamou um escravo para me servir
o doce; mas era tarde. A tia Emerenciana arrancara-me da cadeira e entregara-me a uma
escrava, não obstante os meus gritos e repelões.
Não foi outro o delito do glosador: retardara a compota e dera causa à minha exclusão.
Tanto bastou para que eu cogitasse uma vingança, qualquer que fosse, mas grande e
exemplar, cousa que de alguma maneira o tornasse ridículo. Que ele era um homem grave o
Dr. Vilaça, medido e lento, quarenta e sete anos, casado e pai. Não me contentava o rabo de
papel nem o rabicho da cabeleira; havia de ser cousa pior. Entrei a espreitá-lo, durante o
resto da tarde, a segui-lo, na chácara, aonde todos desceram a passear. Vi-o conversar com
D. Eusébia, irmã do sargento-mor Domingues, uma robusta donzelona, que se não era
bonita, também não era feia.
-- Estou muito zangada com o senhor, dizia ela.
--Por que?
--Porque.. . não sei por que. .. porque é a minha sina... creio às vezes que é melhor morrer.
Tinham penetrado numa pequena moita; era lusco-fusco; eu segui-os. O Vilaça levava nos
olhos umas chispas de vinho e de volúpia.
--Deixe-me! disse ela.
--Ninguém nos vê. Morrer, meu anjo? Que idéias são essas! Você sabe que eu morrerei
também... que digo?... morro todos os dias de paixão, de saudades. . .
D. Eusébia levou o lenço aos olhos. O glosador vasculhava na memória algum pedaço
literário e achou este, que mais tarde verifiquei ser de uma das óperas do Judeu.
-- Não chores, meu bem; não queiras que o dia amanheça com duas auroras.
Disse isto; puxou-a para si; ela resistiu um pouco, mas deixou-se ir; uniram os rostos, e eu
ouvi estalar, muito ao de leve, um beijo, o mais medroso dos beijos.
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--O Dr. Vilaça deu um beijo em D. Eusébia! bradei eu correndo pela chácara.
Foi um estouro esta minha palavra; a estupefação imobilizou a todos; os olhos
espraiavam-se a uma e outra banda; trocavam-se sorrisos, segredos, à socapa, as mães
arrastavam as filhas, pretextando o sereno. Meu pai puxou-me as orelhas, disfarçadamente,
irritado deveras com a indiscrição; mas no dia. seguinte, ao almoço, lembrando o caso,
sacudiu-me o nariz a rir: Ah! brejeiro! ah! brejeiro!
CAPÍTULO XIII / UM SALTO
UNAMOS AGORA os pés e demos um salto por cima da escola, a enfadonha escola, onde
aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas, apanhá-las, e ir fazer diabruras, ora nos
morros, ora nas praias onde quer que fosse propício a ociosos.
Tinha amarguras esse tempo; tinha os ralhos, os castigos, as lições árduas e longas, e pouco
mais, mui pouco e mui leve. Só era pesada, a palmatória, e ainda assim. . . Ó palmatória,
terror dos meus dias pueris, tu que foste o compelle intrare com que um velho mestre,
ossudo e calvo, me incutiu no cérebro o alfabeto, a prosódia, a sintaxe, e o mais que ele
sabia, benta palmatória, tão praguejada dos modernos, quem me dera ter ficado sob o teu
jugo, com a minha alma imberbe, as minhas ignorâncias, e o meu espadim, aquele espadim
de 1814, tão superior à espada de Napoleão! Que querias tu, afinal, meu velho mestre de
primeiras letras? Lição de cor e com postura na aula; nada mais, nada menos do que quer a
vida, que e das últimas letras; com a diferença que tu, se me metias medo, nunca me meteste
zanga. Vejo-te ainda agora entrar na sala, com as tuas chinelas de couro branco, capote,
lenço na mão, calva à mostras barba rapada; vejo-te sentar, bufar, grunhir, absorver uma
pitada inicial, e chamar-nos depois à lição. E fizeste isto durante vinte e três anos, calado,
obscuro, pontual, metido numa casinha da Rua do Piolho, sem enfadar o mundo com a tua
mediocridade, até que um dia deste o grande mergulho nas trevas, e ninguém te chorou,
salvo um preto velho, ninguém, nem eu, que te devo os rudimentos da escrita.
Chamava-se Ludgero o mestre; quero escrever-lhe o nome todo nesta página: Ludgero
Barata,--um nome funesto, que servia aos meninos de eterno mote a chufas. Um de nós, o
Quincas Borba, esse então era cruel com o pobre homem. Duas, três vezes por semana,
havia de lhe deixar na algibeira das calças, umas largas calças de enfiar --, ou na gaveta da
mesa, ou ao pé do tinteiro, uma barata morta. Se ele a encontrava ainda nas horas da aula,
dava um pio, circulava os olhos chamejantes, dizia-nos os últimos nomes: éramos
sevandijas, capadócios, malcriados, moleques.--Uns tremiam, outros rosnavam; o Quincas
Borba, porém, deixava-se estar quieto, com os olhos espetados no ar.
Uma flor, o Quincas Borba. Nunca em minha infância, nunca em toda a minha vida, achei
um menino mais gracioso, inventivo e travesso. Era a flor, e não já da escola, senão de toda
a cidade. A mãe, viúva, com alguma cousa de seu, adorava o filho e trazia-o amimado,
asseado, enfeitado, com um vistoso pajem atrás, um pajem que nos deixava gazear a escola,
ir caçar ninhos de pássaros, ou perseguir lagartixas nos morros do Livramento e da
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Conceição, ou simplesmente arruar, à toa, como dous peraltas sem emprego. E de
imperador! Era um gosto ver o Quincas Borba fazer de imperador nas festas do Espírito
Santo. De resto, nos nossos jogos pueris, ele escolhia sempre um papel de rei, ministro,
general, uma supremacia, qualquer que fosse. Tinha garbo o traquinas, e gravidade, certa
magnificência nas atitudes, nos meneios. Quem diria que... Suspendamos a pena; não
adiantemos os sucessos. Vamos de um salto a 1822, data da nossa independência política, e
do meu primeiro cativeiro pessoal.
CAPÍTULO XIV / O PRIMEIRO BEIJO
TINHA DEZESSETE anos; pungia-me um buçozinho que eu forcejava por trazer a bigode.
Os olhos, vivos e resolutos, eram a minha feição verdadeiramente máscula. Como ostentasse
certa arrogância, não se distinguia bem se era uma criança, com fumos de homem, se um
homem com ares de menino. Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na
vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, o corcel das antigas baladas, que
o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com ele nas ruas do nosso século. O
pior é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à margem, onde o realismo o veio
achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaixão, o transportou para os seus livros.
Sim, eu era esse garção bonito, airoso, abastado; e facilmente se imagina que mais de uma
dama inclinou diante de mim a fronte pensativa, ou levantou para mim os olhos cobiçosos.
De todas porém a que me cativou logo foi uma... uma... não sei se diga; este livro é casto, ao
menos na intenção na intenção é castíssimo. Mas vá lá; ou se há de dizer tudo ou nada. A
que me cativou foi uma dama espanhola, Marcela, a "linda Marcela", como lhe chamavam
os rapazes do tempo. E tinham razão os rapazes. Era filha de um hortelão das Astúrias;
disse-mo ela mesma, num dia de sinceridade, porque a opinião aceita é que nascera de um
letrado de Madri, vítima da invasão francesa, ferido, encarcerado, espingardeado, quando
ela tinha apenas doze anos.
Cosas de Espanã. Quem quer que fosse, porém, o pai, letrado ou hortelão, a verdade é que
Marcela não possuía a inocência rústica, e mal chegava a entender a moral do código. Era
boa moça, lépida, sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que lhe não
permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga
de dinheiro e de rapazes. Naquele ano, morria de amores por um certo Xavier, sujeito
abastado e tísico, uma pérola.
Vi-a pela primeira vez, no Rocio Grande, na noite das luminárias, logo que constou a
declaração da independência, uma festa de primavera, um amanhecer da alma pública.
Éramos dous rapazes, o povo e eu; vínhamos da infância, com todos os arrebatamentos da
juventude. Vi-a sair de uma cadeirinha, airosa e vistosa, um corpo esbelto, ondulante, um
desgarre, alguma cousa que nunca achara nas mulheres puras.--Segue-me, disse ela ao
pajem. E eu segui-a, tão pajem como o outro, como se a ordem me fosse dada, deixei-me ir
namorado, vibrante, cheio das primeiras auroras. A meio caminho, chamaram-lhe "linda
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Marcela", lembrou-me que ouvira tal nome a meu tio João, e fiquei, confesso que fiquei
tonto.
Três dias depois perguntou-me meu tio, em segredo, se queria ir a uma ceia de moças, nos
Cajueiros. Fomos; era em casa de Marcela. O Xavier, com todos os seus tubérculos, presidia
ao banquete noturno que eu pouco ou nada comi, porque só tinha olhos para a dona da casa.
Que gentil que estava a espanhola! Havia mais uma meia dúzia de mulheres, todas de
partido, e bonitas, cheias de graça, mas a espanhola... O entusiasmo, alguns goles de vinho,
o gênio imperioso, estouvado, tudo isso me levou a fazer uma coisa única; à saída, à porta
da rua, disse a meu tio que esperasse um instante, e tornei a subir as escadas.
-- Esqueceu alguma cousa? perguntou Marcela de pé, no patamar.
--O lenço.
Ela ia abrir-me caminho para tornar à sala; eu segurei-lhe nas mãos, puxei-a para mim, e
dei-lhe um beijo. Não sei se ela disse alguma cousa, se gritou, se chamou alguém; não sei
nada; sei que desci outra vez as escadas, veloz como um tufão, e incerto como um ébrio.
CAPÍTULO XV / MARCELA
GASTEI TRINTA DIAS para ir do Rocio Grande ao coração de Marcela, não já cavalgando
o corcel do cego desejo, mas o asno da paciência, a um tempo manhoso e teimoso. Que, em
verdade, ha dous meios de granjear a vontade das mulheres: o violento, como o touro de
Europa, e o insinuativo, como o cisne de Leda e a chuva de ouro de Dânae, três inventos do
padre Zeus; que, por estarem fora da moda, aí ficam trocados no cavalo e no asno. Não direi
as traças que urdi, nem as peitas, nem as alternativas de confiança e temor, nem as esperas
baldadas, nem nenhuma outra dessas cousas preliminares. Afirmo-lhes que o asno foi digno
do corcel, -- um asno de Sancho, deveras filósofo, que me levou à casa dela, no fim do
citado período; apeei-me, bati-lhe na anca e mandei-o pastar.
Primeira comoção da minha juventude, que doce que me foste! Tal devia ser. na criação
bíblica, o efeito do primeiro sol. Imagina tu esse efeito do primeiro sol, a bater de chapa na
face de um mundo em flor. Pois foi a mesma cousa, leitor amigo, e se alguma vez contaste
dezoito anos, deves lembrar-te que foi assim mesmo.
Teve duas fases a nossa paixão, ou ligação, ou qualquer outro nome, que eu de nomes não
curo; teve a fase consular e a fase imperial. Na primeira, que foi curta, regemos o Xavier e
eu, sem que ele jamais acreditasse dividir comigo o governo de Roma; mas, quando a
credulidade não pôde resistir à evidência, o Xavier depôs as insígnias, e eu concentrei todos
os poderes na minha mão; foi a fase cesariana. Era meu o universo mas, ai triste! não o era
de graça. Foi-me preciso coligir dinheiro, multiplicá-lo, inventá-lo. Primeiro explorei as
larguezas de meu pai; ele dava-me tudo o que eu lhe pedia sem repreensão sem demora, sem
frieza; dizia a todos que e era rapaz e que ele o fora também. Mas a tal extremo chegou o
abuso, que ele restringiu um pouco as franquezas, depois mais, depois mais. Então recorri a
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minha mãe, e induzi-a a desviar alguma cousa, que me dava às escondidas. Era pouco;
lancei mão de um recurso último: entrei a sacar sobre a herança de meu pai, a assinar
obrigações, que devia resgatar um dia com usura.
--Em verdade, dizia-me Marcela, quando eu lhe levava alguma seda, alguma jóia: em
verdade, você quer brigar comigo. . . Pois isto é cousa que se faça... um presente tão caro...
E, se era jóia, dizia isto a contemplá-la entre os dedos, a procurar melhor luz, a ensaiá-la em
si, e a rir, e a beijar-me com uma reincidência impetuosa e sincera; mas, protestando,
derramava-se-lhe a felicidade dos olhos, e eu sentia-me feliz com vê-la assim. Gostava
muito das nossas antigas dobras de ouro, e eu levava-lhe quantas podia obter; Marcela
juntava-as todas dentro de uma caixinha de ferro, cuja chave ninguém nunca jamais soube
onde ficava; escondia-a por medo dos escravos. A casa em que morava, nos Cajueiros, era
própria. Eram sólidos e bons os móveis, de jacarandá lavrado, e todas as demais alfaias,
espelhos, jarras, baixela, -- uma linda baixela da Índia, que lhe doara um desembargador.
Baixela do diabo, deste-me grandes repelões aos nervos. Disse-o muita vez à própria dona;
não lhe dissimulava o tédio que me faziam esses e outros despojos dos seus amores de
antanho. Ela ouvia-me e ria, com uma expressão cândida,--cândida e outra cousa, que eu
nesse tempo não entendia bem; mas agora, relembrando o caso, penso que era um riso
misto, como devia ter a criatura que nascesse, por exemplo, de uma bruxa de Shakespeare
com um serafim de Klopstock. Não sei se me explico. E porque tinha notícia dos meus zelos
tardios, parece que gostava de os açular mais. Assim foi que um dia como eu lhe não
pudesse dar certo colar, que ela vira num joalheiro, retorquiu-me que era um simples
gracejo, que o nosso amor não precisava de tão vulgar estímulo.
--Não lhe perdôo, se você fizer de mim essa triste idéia, concluiu ameaçando-me com o
dedo.
E logo, súbita como um passarinho, espalmou as mãos, cingiu-me com elas o rosto,
puxou-me a si e fez um trejeito gracioso, um momo de criança. Depois, reclinada na
marquesa, continuou a falar daquilo, com simplicidade e franqueza. Jamais consentiria que
lhe comprassem os afetos. Vendera muita vez as aparências, mas a realidade, guardava-a
para poucos. Duarte, por exemplo, o alferes Duarte que ela amara deveras, dous anos antes,
só a custo conseguia dar-lhe alguma cousa de valor, como me acontecia a mim ela só lhe
aceitava sem relutância os mimos de escasso preço, como a cruz de ouro, que lhe deu, uma
vez, de festas.
--Esta cruz...
Dizia isto, metendo a mão no seio e tirando uma cruz fina, de ouro, presa a uma fita azul e
pendurada ao colo.
--Mas essa cruz, observei eu, não me disseste que era teu pai que...
Marcela abanou a cabeça com um ar de lástima:
--Não percebeste que era mentira, que eu dizia isso para te não molestar? Vem cá, chiquito,
não sejas assim desconfiado comigo.. . Amei a outro; que importa, se acabou? Um dia,
quando- nos separarmos. . .
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--Não digas isso! bradei eu.
--Tudo cessa! Um dia. . .
Não pode acabar; um soluço estrangulou-lhe a voz; estendeu as mãos, tomou das minhas,
conchegou-me ao seio, e sussurrou-me baixo ao ouvido: Nunca, nunca, meu amor! Eu
agradeci-lho com os olhos úmidos. No dia seguinte levei-lhe o colar que havia recusado.
--Para te lembrares de mim, quando nos separarmos, disse eu.
Marcela teve primeiro um silêncio indignado; depois fez um gesto magnífico: tentou atirar o
colar à rua. Eu retive-lhe o braço; pedi-lhe muito que não me fizesse tal desfeita, que ficasse
com a jóia. Sorriu e ficou.
Entretanto, pagava-me à farta os sacrifícios; espreitava os meus mais recônditos
pensamentos; não havia desejo a que não acudisse com alma, sem esforço, por uma espécie
de lei da consciência e necessidade do coração. Nunca o desejo era razoável, mas um
capricho puro, uma criancice, vê-la trajar de certo modo, com tais e tais enfeites, este
vestido e não aquele, ir a passeio ou outra cousa assim, e ela cedia a tudo, risonha e palreira.
--Você é das Arábias -- dizia-me.
E ia a pôr o vestido, a renda, os brincos, com uma obediência de encantar.
CAPITULO XVI / UMA REFLEXÃO IMORAL
OCORRE ME uma reflexão imoral, que é ao mesmo tempo uma correção de estilo. Cuido
haver dito, no capítulo XIV, que Marcela morria de amores pelo Xavier. Não morria, vivia.
Viver não é a mesma cousa que morrer; assim o afirmam todos os joalheiros deste mundo,
gente muito vista na gramática. Bons joalheiros, que seria do amor se não fossem os vossos
dixes e fiados? Um terço ou um quinto do universal comércio dos corações. Esta é a
reflexão imoral que eu pretendia fazer, a qual é ainda mais obscura do que imoral, porque
não se entende bem o que eu quero dizer. O que eu quero dizer é que a mais bela testa do
mundo não fica menos bela, se a cingir um diadema de pedras finas; nem menos bela, nem
menos amada. Marcela, por exemplo, que era bem bonita, Marcela amou-me ..
CAPÍTULO XVII / DO TRAPÉZIO E OUTRAS COUSAS
. . .MARCELA amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos. Meu pai,
logo que teve aragem dos onze contos, sobressaltou-se deveras; achou que o caso excedia as
raias de um capricho juvenil.
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-- Desta vez, disse ele, vais para a Europa; vais cursar uma Universidade, provavelmente
Coimbra; quero-te para homem sério e não para arruador e gatuno. E como eu fizesse um
gesto de espanto:-- Gatuno, sim senhor; não é outra cousa um filho que me faz isto...
Sacou da algibeira os meus títulos de dívida, já resgatados por ele, e sacudiu-mos na
cara.--Vês, peralta? é assim que um moço deve zelar o nome dos seus? Pensas que eu e
meus avós ganhamos o dinheiro em casas de jogo ou a vadiar pelas ruas? Pelintra! Desta vez
ou tomas juízo, ou ficas sem cousa nenhuma.
Estava furioso, mas de um furor temperado e curto. Eu ouvi-o calado, e nada! opus à ordem
da viagem, como de outras vezes fizera; ruminava a idéia de levar Marcela comigo. Fui ter
com ela; expus-lhe a crise e fiz-lhe a proposta. Marcela ouviu-me com os olhos no ar, sem
responder logo; como insistisse, disse-me que ficava, que não podia ir para a Europa.
--Porque não?
--Não posso, disse ela com ar dolonte; não posso ir respirar aqueles ares, enquanto me
lembrar de meu pobre pai, morto por Napoleão . . .
--Qual deles: o hortelão ou o advogado?
Marcela franziu a testa, cantarolou uma seguidilha, entre dentes; depois queixou-se do calor,
e mandou vir um copo de aluá. Trouxe-lho a mucama, numa salva de prata, que fazia parte
dos meus onze contos. Marcela ofereceu-me polidamente o refresco; minha resposta foi dar
com a mão no copo e na salva; entornou-se-lhe o líquido no regaço, a preta deu um grito, eu
bradei-lhe que se fosse embora. Ficando a sós, derramei todo o desespero de meu coração;
disse-lhe que ela era um monstro, que jamais me tivera amor, que me deixara descer a tudo,
sem ter ao menos a desculpa da sinceridade; chamei-lhe muitos nomes feios, fazendo muitos
gestos descompostos. Marcela deixara-se estar sentada, a estalar as unhas nos dentes, fria
como um pedaço de mármore. Tive ímpetos de a estrangular, de a humilhar ao menos,
subjugando-a a meus pés. Ia talvez fazê-lo; mas a ação trocou-se noutra; fui eu que me atirei
aos pés dela, contrito e súplice; beijei-lhos recordei aqueles meses da nossa felicidade
solitária, repeti-lhe os nomes queridos de outro tempo, sentado no chão, com a cabeça entre
os joelhos dela, apertando-lhe muito as mãos; ofegante, desvairado, pedi-lhe com lágrimas
que me não desamparasse... Marcela esteve alguns instantes a olhar para mim, calados,
ambos, até que brandamente me desviou e, com um ar enfastiado:
--Não me aborreça, disse.
Levantou-se, sacudiu o vestido, ainda molhado, e caminhou para a alcova.--Não! bradei eu;
não hás de entrar... não quero. . . Ia a lançar-lhe as mãos: era tarde; ela entrara e fechara-se.
Saí desatinado; gastei duas mortais horas em vaguear pelos bairros mais excêntricos e
desertos, onde fosse difícil dar comigo. Ia mastigando o meu desespero, com uma espécie de
gula mórbida; evocava os dias, as horas, os instantes de delírio, e ora me comprazia em crer
que eles eram eternos, que tudo aquilo era um pesadelo, ora, enganando-me a mim mesmo?
tentava rejeitá-los de mim, como um fardo inútil. Então resolvia embarcar imediatamente
para cortar a minha vida em duas metades, e deleitava-me com a idéia de que Marcela,
sabendo da partida, ficaria ralada de saudades e remorsos. Que ela amara-me a tonta, devia
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de sentir alguma cousa, uma lembrança qualquer, como do alferes Duarte... Nisto, o dente
do ciúme enterrava-se-me no coração; toda a natureza bradava que era preciso levar Marcela
comigo.
--Por força. . . por força. . . dizia eu ferindo o ar com uma punhada.
Enfim, tive uma idéia salvadora... Ah! trapézio dos meus pecados, trapézio das concepções
abstrusas! A idéia salvadora trabalhou neles como a do emplasto (capítulo II). Era nada
menos que fasciná-la, fasciná-la muito, deslumbrá-la, arrastá-la; lembrou-me pedir-lhe por
um meio mais concreto do que a súplica. Não medi as conseqüências; recorri a um
derradeiro empréstimo; fui à Rua dos Ourives, comprei a melhor jóia da cidade, três
diamantes grandes encastoados num pente de marfim; corri à casa de Marcela.
Marcela estava reclinada numa rede, o gesto mole e cansado, uma das pernas pendentes, a
ver-se-lhe o pezinho calçado de meia de seda, os cabelos soltos, derramados, o olhar quieto
e sonolento.
--Vem comigo, disse eu, arranjei recursos... temos muito dinheiro, terás tudo o que
quiseres... Olha, toma.
E mostrei-lhe o pente com os diamantes. . . Marcela teve um leve sobressalto, ergueu
metade do corpo, e, apoiada num cotovelo, olhou para o pente durante alguns instantes
curtos; depois retirou os olhos; tinha-se dominado. Então, eu lancei-lhe as mãos aos cabelos,
coligi-os, enlacei-os à pressa, improvisei um toucado, sem nenhum alinho, e rematei-o com
o pente de diamantes; recuei, tornei a aproximar-me, corrigi-lhe as madeixas, abaixei-as de
um lado, busquei alguma simetria naquela desordem, tudo com uma minuciosidade e um
carinho de mãe.
--Pronto, disse eu.
--Doudo! foi a sua primeira resposta.
A segunda foi puxar-me para si, e pagar-me o sacrifício com um beijo, o mais ardente de
todos. Depois tirou o pente, admirou muito a matéria e o lavor, olhando a espaços para mim,
e abanando a cabeça com um ar de repreensão:
--Ora você! dizia.
--Vens comigo?
Marcela refletiu um instante. Não gostei da expressão com que passeava os olhos de mim
para a parede, e da parede para a jóia; mas toda a má impressão se desvaneceu, quando ela
me respondeu resolutamente:
--Vou. Quando embarcas?
--Daqui a dous ou três dias.
--Vou.
Agradeci-lho de joelhos. Tinha achado a minha Marcela dos primeiros dias, e disse-lho; ela
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sorriu, e foi guardar a jóia, enquanto eu descia a escada.
CAPÍTULO XVIII / VISÃO DO CORREDOR
No FIM da escada, ao fundo do corredor escuro, parei alguns instantes para respirar,
apalpar-me, convocar as idéias dispersas, reaver-me enfim no meio de tantas sensações
profundas e contrárias. Achava-me feliz. Certo é que os diamantes corrompiam-me um
pouco a felicidade; mas não é menos certo que uma dama bonita pode muito bem amar os
gregos e os seus presentes. E depois eu confiava na minha boa Marcela; podia ter defeitos,
mas amava-me...
Um anjo! murmurei olhando para o tecto do corredor.
E aí, como um escárnio, vi o olhar de Marcela, aquele olhar que pouco antes me dera uma
sombra de desconfiança, o qual chispava de cima de um nariz, que era ao mesmo tempo o
nariz de Bakbarah e o meu. Pobre namorado das Mil e Uma Noites! Vi-te ali mesmo correr
atrás da mulher do vizir, ao longo da galeria, ela a acenar-te com a posse, e tu a correr, a
correr, a correr, até a alameda comprida, donde saíste à rua, onde todos os correeiros te
apuparam e desancaram. Então pareceu-me que o corredor de Marcela era a alameda, e que
a rua era a de Bagdá. Com efeito, olhando para a porta, vi na calçada três dos correeiros, um
de batina, outro de libré, outro à paisana, os quais todos três entraram no corredor,
tomaram-me pelos braços, meteram-me numa sege, meu pai à direita, meu tio cônego à
esquerda, o da libré na boléia, e lá me levaram à casa do intendente de polícia, donde fui
transportado a uma galera que devia seguir para Lisboa. Imaginem se resisti; mas toda a
resistência era inútil.
Três dias depois segui barra fora, abatido e mudo. Não chorava sequer; tinha uma idéia fixa.
. . Malditas idéias fixas! A dessa ocasião era dar um mergulho no oceano, repetindo o nome
de Marcela.
CAPÍTULO XIX / A BORDO
ÉRAMOS ONZE passageiros, um homem doudo, acompanhado pela mulher, dous rapazes
que iam a passeio, quatro comerciantes e dous criados. Meu pai recomendou-me a todos,
começando pelo capitão do navio, que aliás tinha muito que cuidar de si, porque, além do
mais, levava a mulher tísica em último grau.
Não sei se o capitão suspeitou alguma cousa do meu fúnebre projeto, ou se meu pai o pôs de
sobreaviso; sei que não me tirava os olhos de cima; chamava-me para toda a parte. Quando
não podia estar comigo, levava-me para a mulher. A mulher ia quase sempre numa camilha
rasa, a tossir muito, e a afiançar que me havia de mostrar os arredores de Lisboa. Não estava
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magra, estava transparente; era impossível que não morresse de uma hora para outra. O
capitão fingia não crer na morte próxima, talvez por enganar-se a si mesmo. Eu não sabia
nem pensava nada. Que me importava a mim o destino de uma mulher tísica, no meio do
oceano? O mundo para mim era Marcela.
Uma noite, logo no fim de uma semana, achei ensejo propício para morrer. Subi cauteloso,
mas encontrei o capitão, que junto à amurada, tinha os olhos fitos no horizonte.
--Algum temporal? disse eu.
--Não, respondeu ele estremecendo; não; admiro o esplendor da noite. Veja; está celestial!
O estilo desmentia da pessoa, assaz rude e aparentemente alheia a locuções rebuscadas.
Fitei-o; ele pareceu saborear o meu espanto. No fim de alguns segundos, pegou-me na mão e
apontou para a lua, perguntando-me por que não fazia uma ode à noite; respondi-lhe que não
era poeta. O capitão rosnou alguma cousa, deu dous passos, meteu a mão no bolso, sacou
um pedaço de papel, muito amarrotado; depois, à luz de uma lanterna, leu uma ode
horaciana sobre a liberdade da vida marítima. Eram versos dele.
--Que tal?
Não me lembra o que lhe disse; lembra-me que ele me apertou a mão com muita força e
muitos agradecimentos; logo depois recitou-me dous sonetos; ia recitar-me outro quando o
vieram chamar da parte da mulher. Lá vou, disse ele; e recitou-me o terceiro soneto, com
pausa, com amor.
Fiquei só; mas a musa do capitão varrera-me do espírito os pensamentos maus; preferi
dormir, que é um modo interino de morrer. No dia seguinte, acordamos debaixo de um
temporal, que meteu medo a toda a gente, menos ao doudo; esse entrou a dar pulos, a dizer
que a filha o mandava buscar, numa berlinda; a morte de uma filha fora a causa da loucura.
Não, nunca me há de esquecer a figura hedionda do pobre homem, no meio do tumulto das
gentes e dos uivos do furacão, a cantarolar e a bailar, com os olhos a saltarem-lhe da cara,
pálido, cabelo arrepiado e longo. Às vezes parava, erguia ao ar as mãos ossudas, fazia umas
cruzes com os dedos, depois um xadrez, depois umas argolas, e ria muito,
desesperadamente. A mulher não podia já cuidar dele; entregue ao terror da morte, rezava
por si mesma a todos os santos do Céu. Enfim, a tempestade amainou. Confesso que foi uma
diversão excelente à tempestade do meu coração. Eu, que meditava ir ter com a morte, não
ousei fitá-la quando ela veio ter comigo.
O capitão perguntou-me se tivera medo, se estivera em risco, se não achara sublime o
espetáculo: tudo isso com um interesse de amigo. Naturalmente a conversa versou sobre a
vida do mar; o capitão perguntou-me se não gostava de idílios piscatórios: eu respondi-lhe
ingenuamente que não sabia o que era.
--Vai ver, respondeu.
E recitou-me um poemazinho, depois outro, -- uma égloga,-- e enfim cinco sonetos, com os
quais rematou nesse dia a confidência literária. No dia seguinte, antes de me recitar nada,
explicou-me o capitão que só por motivos graves abraçara a profissão marítima, porque a
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avó queria que ele fosse padre, e com efeito possuía algumas letras latinas; não chegou a ser
padre, mas não deixou de ser poeta, que era a sua vocação natural. Para prová-lo, recitou-me
logo, de corpo presente, uma centena de versos. Notei um fenômeno: os ademanes que ele
usava eram tais, que uma vez me fizeram rir; mas o capitão, quando recitava, de tal sorte
olhava para dentro de si mesmo, que não viu nem ouviu nada.
Os dias passavam, e as águas, e os versos, e com eles ia também passando a vida da mulher.
Estava por pouco. Um dia, logo depois do almoço, disse-me o capitão que a enferma talvez
não chegasse ao fim da semana.
-- Já! exclamei.
--Passou muito mal a noite.
Fui vê-la; achei-a, na verdade, quase moribunda, mas falando ainda de descansar em Lisboa
alguns dias antes de ir comigo a Coimbra, porque era seu propósito levar-me à
Universidade. Deixei-a consternado; fui achar o marido a olhar para as vagas que vinham
morrer no costado do navio, e tratei de o consolar; ele agradeceu-me, relatou-me a história
dos seus amores, elogiou a fidelidade e a dedicação da mulher, relembrou os versos que lhe
fez, e recitou-mos. Neste ponto vieram buscá-lo da parte dela; corremos ambos; era uma
crise. Esse e o dia seguinte foram cruéis; o terceiro foi o da morte; eu fugi ao espetáculo,
tinha-lhe repugnância. Meia hora depois encontrei o capitão, sentado num molho de cabos,
com a cabeça nas mãos, disse-lhe alguma cousa de conforto.
--Morreu como uma santa, respondeu ele; e, para que estas palavras não pudessem ser
levadas a conta de fraqueza, ergueu-se longe, sacudiu a cabeça e fitou o horizonte, com um
gesto longo e profundo. --Vamos, continuou, entreguêmo-la à cova que nunca mais se abre.
Efetivamente, poucas horas depois, era o cadáver lançado ao mar, com as cerimônias do
costume. A tristeza murchara todos os rostos; o do viúvo trazia a expressão de um cabeço
rijamente lascado pelo rio. Grande silêncio. A vaga abriu o ventre, acolheu o despojo,
fechou-se,--uma leve ruga,--e a galera foi andando. Eu deixei-me estar alguns minutos, a
popa, com os olhos naquele ponto incerto do mar em que ficava um de nós. . . Fui dali ter
com o capitão, para distraí-lo.
--Obrigado, disse-me ele compreendendo a intenção; creia que nunca me esquecerei dos
seus bons serviços. Deus é que lhos há de pagar. Pobre Leocádia! tu te lembrarás de nós no
Céu.
Enxugou com a manga uma lágrima importuna; eu busquei um derivativo na poesia, que era
a paixão dele. Falei-lhe dos versos, que me lera, e ofereci-me para imprimi-los. Os olhos do
capitão animaram-se um pouco. --Talvez aceite, disse ele: mas não sei... são bem frouxos
versos. Jurei-lhe que não; pedi que os reunisse e mos desse antes do desembarque.
--Pobre Leocádia! murmurou sem responder ao pedido. Um cadáver... o mar. .. o céu. .. o
navio. . .
No dia seguinte veio ler-me um epicédio composto de fresco, em que estavam memoradas
as circunstâncias da morte e da sepultura da mulher; leu-mo com a voz comovida deveras, e
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a meio trêmula; no fim perguntou-me se os versos eram dignos do tesouro que perdera.
--São, disse eu.
--Não haverá estro, ponderou ele, no fim de um instante, mas ninguém me negará
sentimento, se não é que o próprio sentimento prejudicou a perfeição...
--Não me parece; acho os versos perfeitos.
--Sim, eu creio que.. . Versos de marujo.
--De marujo poeta.
E1e levantou os ombros, olhou para o papel, e tornou a recitar a composição, mas já então
sem tremuras, acentuando as intenções literárias dando relevo às imagens e melodia aos
versos. No fim, confessou-me que era a sua obra mais acabada; eu disse-lhe que sim; ele
apertou-me muito a mão e predisse-me um grande futuro.
CAPÍTULO XX / BACHARELO-ME
UM GRANDE futuro! Enquanto esta palavra me batia no ouvido, devolvia eu os olhos, ao
longe, no horizonte misterioso e vago. Uma idéia expelia outra, a ambição desmontava
Marcela. Grande futuro? Talvez naturalista, literato, arqueólogo, banqueiro, político, ou até
bispo, -- bispo que fosse,--uma vez que fosse um cargo, uma preeminência, uma grande
reputação, uma posição superior. A ambição, dado que fosse águia, quebrou nessa ocasião o
ovo, e desvendou a pupila fulva e penetrante. Adeus, amores! adeus, Marcela! dias de
delírio, jóias sem preço, vida sem regímen, adeus! Cá me vou às fadigas e à glória;
deixo-vos com as calcinhas da primeira idade.
E foi assim que desembarquei em Lisboa e segui para Coimbra. A Universidade
esperava-me com as suas matérias árduas; estudei-as muito mediocremente, e nem por isso
perdi o grau de bacharel; deram-mo com a solenidade do estilo, após os anos da lei; uma
bela festa que me encheu de orgulho e de saudades, -- principalmente de saudades. Tinha eu
conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião; era um acadêmico estróina,
superficial, tumultuário e petulante, dado às aventuras, fazendo romantismo prático e
liberalismo teórico, vivendo na pura fé dos olhos pretos e das constituições escritas. No dia
em que a Universidade me atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de
trazer arraigada no cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que
orgulhoso. Explico-me: o diploma era uma carta de alforria; se me dava a liberdade dava-me
a responsabilidade. Guardei-o, deixei as margens do Mondego, e vim por ali fora assaz
desconsolado, mas sentindo já uns ímpetos, uma curiosidade, um desejo de acotovelar os
outros? de influir, de gozar, de viver, de prolongar a Universidade pela vida adiante . . .
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CAPÍTULO XXI / O ALMOCREVE
VAI ENTÃO, empacou o jumento em que eu vinha montado; fustiguei-o, ele deu dous
corcovos, depois mais três, enfim mais um, que me sacudiu fora da sela, com tal desastre,
que o pé esquerdo me ficou preso no estribo, tento agarrar-me ao ventre do animal, mas já
então, espantado, disparou pela estrada fora. Digo mal: tentou disparar, e efetivamente deu
dous saltos, mas um almocreve, que ali estava, acudiu a tempo de lhe pegar na rédea e
detê-lo, não sem esforço nem perigo. Dominado o bruto, desvencilhei-me do estribo e
pus-me de pé.
--Olhe do que vosmecê escapou, disse o almocreve.
E era verdade; se o jumento corre por ali fora, contundia-me deveras, e não sei se a morte
não estaria no fim do desastre; cabeça partida, uma congestão, qualquer transtorno cá
dentro, lá se me ia a ciência em flor. O almocreve salvara-me talvez a vida; era positivo; eu
sentia-no no sangue que me agitava o coração. Bom almocreve! enquanto eu tornava à
consciência de mim mesmo, ele cuidava de consertar os arreios do jumento, com muito zelo
e arte. Resolvi dar-lhe três moedas de ouro das cinco que trazia comigo; não porque tal fosse
o preço da minha vida,-- essa era inestimável; mas porque era uma recompensa digna da
dedicação com que ele me salvou. Está dito, dou-lhe as três moedas.
--Pronto, disse ele, apresentando-me a rédea da cavalgadura.
-- Daqui a nada, respondi; deixa-me, que ainda não estou em mim. . .
--Ora qual!
--Pois não é certo que ia morrendo?
--Se o jumento corre por aí fora, é possível; mas, com a ajuda do Senhor, viu vosmecê que
não aconteceu nada.
Fui aos alforjes, tirei um colete velho, em cujo bolso trazia as cinco moedas de ouro, e
durante esse tempo cogitei se não era excessiva a gratificação, se não bastavam duas
moedas. Talvez uma. Com efeito, uma moeda era bastante para lhe dar estremeções de
alegria. Examinei-lhe a roupa; era um pobre-diabo, que nunca jamais vira uma moeda de
ouro. Portanto, uma moeda. Tirei-a, vi-a reluzir à luz do sol; não a viu o almocreve, porque
eu tinha-lhe voltado as costas; mas suspeitou-o talvez, entrou a falar ao jumento de um
modo significativo; dava-lhe conselhos, dizia-lhe que tomasse juízo, que o "senhor doutor"
podia castigá-lo; um monólogo paternal. Valha-me Deus! até ouvi estalar um beijo: era o
almocreve que lhe beijava a testa.
--Olé! exclamei.
-- Queira vosmecê perdoar, mas o diabo do bicho está a olhar para a gente com tanta graça...
Ri-me, hesitei, meti-lhe na mão um cruzado em prata, cavalguei o jumento, e segui a trote
largo, um pouco vexado, melhor direi um pouco incerto do efeito da pratinha. Mas a
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algumas braças de distância, olhei para trás, o almocreve fazia-me grandes cortesias, com
evidentes mostras de contentamento. Adverti que devia ser assim mesmo; eu pagara-lhe
bem, pagara-lhe talvez demais. Meti os dedos no bolso do colete que trazia no corpo e senti
umas moedas de cobre; eram os vinténs que eu devera ter dado ao almocreve, em lugar do
cruzado em prata. Porque, enfim, ele não levou em mira nenhuma recompensa ou virtude,
cedeu a um impulso natural, ao temperamento, aos hábitos do ofício; acresce que a
circunstâncias de estar, não mais adiante nem mais atrás, mas justamente no ponto do
desastre, parecia constituí-lo simples instrumento da Providência; e de um ou de outro
modo, o mérito do ato era positivamente nenhum. Fiquei desconsolado com esta reflexão,
chamei-me pródigo, lancei o cruzado à conta das minhas dissipações antigas; tive (por que
não direi tudo?) tive remorsos.
CAPÍTULO XXII / VOLTA AO RIO
JUMENTO de uma figa, cortaste-me o fio às reflexões. Já agora não digo o que pensei dali
até Lisboa, nem o que fiz em Lisboa, na península e em outros lugares da Europa, da velha
Europa, que nesse tempo parecia remoçar. Não, não direi que assisti às alvoradas do
romantismo, que também eu fui fazer poesia efetiva no regaço da Itália; não direi cousa
nenhuma. Teria de escrever um diário de viagem e não umas memórias, como estas são, nas
quais só entra a substância da vida.
Ao cabo de alguns anos de peregrinação, atendi as súplicas de meu pai; --"Vem, dizia ele na
última carta; se não vieres depressa, acharás tua mãe morta! Esta última palavra foi para
mim um golpe. Eu amava minha mãe; tinha ainda diante dos olhos as circunstâncias da
última bênção que ela me dera, a bordo do navio. "Meu triste filho, nunca mais te verei",
soluçava a pobre senhora apertando-me ao peito. E essas palavras ressoavam-me agora,
como um profecia realizada.
Note-se que eu estava em Veneza, ainda recendente aos versos de lord Byron; lá estava,
mergulhado em pleno sonho, revivendo o pretérito, crendo-me na Sereníssima República. É
verdade; uma vez aconteceu-me perguntar ao locandeiro se o doge ia a passeio nesse dia. --
Que doge, signor mio? Caí em mim, mas não confessei a ilusão; disse-lhe que a minha
pergunta era um gênero de charada americana; ele mostrou compreender, e acrescentou que
gostava muitos das charadas americanas. Era um locandeiro. Pois deixei tudo isso, o
locandeiro, o locandeiro, o doge, a Ponte dos Suspiros, a gôndola, os versos do lord, as
damas do Rialto, deixei tudo e disparei como uma bala na direção do Rio de Janeiro.
Vim. . . Mas não; não alonguemos este capítulo. Às vezes, esqueço-me a escrever, e a pena
vai comendo papel, com grave prejuízo meu, que sou autor. Capítulos compridos quadram
melhor a leitores pesadões; e nós não somos um público in-folio, mas in-12, pouco texto,
larga margem, tipo elegante, corte dourado e vinhetas... principalmente vinhetas... Não, não
alonguemos o capítulo.
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CAPÍTULO XXIII / TRISTE, MAS CURTO
VIM. NÃO NEGO que, ao avistar a cidade natal, tive uma sensação nova. Não era efeito da
minha pátria política; era-o do lugar da infância, a rua, a torre, o chafariz da esquina, a
mulher de mantilha, o preto do ganho, as cousas e cenas da meninice, buriladas na memória.
Nada menos que uma renascença. O espírito, como um pássaro, não se lhe deu da corrente
dos anos, arrepiou o vôo na direção da fonte original, e foi beber da água fresca e pura,
ainda não mesclada do enxurro da vida.
Reparando bem, há aí um lugar-comum. Outro lugar-comum, tristemente comum, foi a
consternação da família. Meu pai abraçou-me com lágrimas. -- Tua mãe não pode viver,
disse-me. Com efeito, não era já o reumatismo que a matava, era um cancro no estômago. A
infeliz padecia de um modo cru, porque o cancro é indiferente às virtudes do sujeito; quando
rói, rói; roer é o seu ofício. Minha irmã Sabina, já então casada com o Cotrim, andava a cair
de fadiga. Pobre moça! dormia três horas por noite, nada mais. O próprio tio João estava
abatido e triste. D. Eusébia e algumas outras senhoras lá estavam também, não menos tristes
e não menos dedicadas.
--Meu filho!
A dor suspendeu por um pouco as tenazes; um sorriso alumiou o rosto da enferma, sobre o
qual a morte batia a asa eterna. Era menos um rosto do que uma caveira: a beleza passara,
como um dia brilhante; restavam os ossos, que não emagrecem nunca. Mal poderia
conhecê-la; havia oito ou nove anos que nos não víamos. Ajoelhado, ao pé da cama, com as
mãos dela entre as minhas, fiquei mudo e quieto, sem ousar falar, porque cada palavra seria
um soluço, e nós temíamos avisá-la do fim. Vão temor! Ela sabia que estava prestes a
acabar; disse-mo; verificamo-lo na seguinte manhã.
Longa foi a agonia, longa e cruel, de uma crueldade minuciosa fria, repisada, que me encheu
de dor e estupefação. Era a primeira vez que eu via morrer alguém. Conhecia a morte de
outiva; quando muito, tinha-a visto já petrificada no rosto de algum cadáver, que
acompanhei ao cemitério, ou trazia-lhe a idéia embrulhada nas amplificações de retórica dos
professores de cousas antigas, -- a morte aleivosa de César, a austera de Sócrates, a
orgulhosa de Catão. Mas esse duelo do ser e do não ser, a morte em ação, dolorida,
contraída convulsa, sem aparelho político ou filosófico, a morte de uma pessoa amada, essa
foi a primeira vez que a pude encarar. Não chorei; lembra-me que não chorei durante o
espetáculo: tinha os olhos estúpidos, a garganta presa, a consciência boquiaberta. Quê? uma
criatura tão dócil, tão meiga, tão santa, que nunca jamais fizera verter uma lágrima de
desgosto, mãe carinhosa, esposa imaculada, era força que morresse assim, trateada, mordida
pelo dente tenaz de uma doença sem misericórdia? Confesso que tudo aquilo me pareceu
obscuro, incongruente, insano...
Triste capítulo; passemos a outro mais alegre.
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CAPÍTULO XXIV / CURTO, MAS ALEGRE
FIQUEI PROSTADO. E contudo era eu, nesse tempo, um fiel compêndio de trivialidade e
presunção. Jamais o problema da vida e da morte me oprimira o cérebro; nunca até esse dia
me debruçara sobre o abismo do inexplicável; faltava-me o essencial, que é o estímulo, a
vertigem. . .
Para lhes dizer a verdade toda, eu refletia as opiniões de um cabeleireiro, que achei em
Módena, e que se distinguia por não as ter absolutamente. Era a flor dos cabeleireiros; por
mais demorada que fosse a operação do toucado, não enfadava nunca; ele intercalava as
penteadelas com muitos motes e pulhas, cheios de um pico, de um sabor... Não tinha outra
filosofia. Nem eu. Não digo que a Universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu
decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim;
embolsei três versos de Virgílio, dous de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas,
para as despesas da conversação. Tratei-os como tratei a história e a jurisprudência. Colhi de
todas as cousas a fraseologia, a casca, a ornamentação...
Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade;
advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o
contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a
disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à
consciência; e o melhor da obrigação é quando, a força de embaçar os outros, embaça-se um
homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa e a
hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que
liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas,
despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de
ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem
estranhos; não há platéia. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude,
logo que pisamos o território da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e nos não
examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores
vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados.
CAPÍTULO XXV/ NA TIJUCA
Ui! LÁ ME IA a pena a escorregar para o enfático. Sejamos simples, como era simples a
vida que levei na Tijuca, durante as primeiras semanas depois da morte de minha mãe.
No sétimo dia, acabada a missa fúnebre, travei de uma espingarda, alguns livros, roupa,
charutos, um moleque, o Prudêncio do capítulo XI,-- e fui meter-me numa velha casa de
nossa propriedade. Meu pai forcejou por me torcer a resolução, mas eu é que não podia nem
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queria obedecer-lhe. Sabina desejava que eu fosse morar com ela algum tempo, duas
semanas, ao menos; meu cunhado esteve a ponto de me levar à fina força. Era um bom rapaz
este Cotrim; passara de estróina a circunspecto. Agora comerciava em gêneros de estiva,
labutava de manhã até à noite, com ardor, com perseverança. De noite, sentado à janela, a
encaracolar as suíças, não pensava em outra cousa. Amava a mulher e um filho, que então
tinha, e que lhe morreu alguns anos depois. Diziam que era avaro.
Renunciei tudo; tinha o espírito atônito. Creio que por então é que começou a desabotoar em
mim a hipocondria, essa flor amarela, solitária e mórbida, de um cheiro inebriante e
sutil.--"Que bom que é estar triste e não dizer cousa nenhuma!" -- Quando esta palavra de
Shakespeare me chamou a atenção, confesso que senti em mim um eco, um eco delicioso.
Lembra-me que estava sentado, debaixo de um tamarineiro, com o livro do poeta aberto nas
mãos e o espírito mais cabisbaixo do que a figura, -- ou jururu como dizemos de galinhas
tristes. Apertava ao peito a minha dor taciturna, com uma sensação única, uma cousa a que
poderia chamar volúpia do aborrecimento. Volúpia do aborrecimento: decora esta
expressão, leitor; guarda-a, examina-a, e se não chegares a entendê-la, podes concluir que
ignoras uma das sensações mais sutis desse mundo e daquele tempo.
Às vezes, caçava, outras dormia, outras lia, -- lia muito,-- outras enfim não fazia nada;
deixava-me atoar de idéia em idéia, de imaginação em imaginação, como uma borboleta
vadia ou faminta. As horas iam pingando uma a uma, o sol caía, as sombras da noite
velavam a montanha e a cidade. Ninguém me visitava; recomendei expressamente que me
deixassem só. Um dia, dous dias, três dias, uma semana inteira passada assim, sem dizer
palavra, era bastante para sacudir-me da Tijuca fora e restituir-me ao bulício. Com efeito, ao
cabo de sete dias estava farto da solidão; a dor aplacara; o espírito já se não contentava com
o uso da espingarda e dos livros, nem com a vista do arvoredo e do céu. Reagia a mocidade,
era preciso viver. Meti no baú o problema da vida e da morte, os hipocondríacos do poeta,
as camisas, as meditações, as gravatas, e ia fechá-lo quando o moleque Prudêncio me disse
que uma pessoa do meu conhecimento se mudara na véspera para uma casa roxa, situada a
duzentos passos da nossa.
--Quem?
--Nhonhô talvez não se lembre mais de D. Eusébia...
--Lembra-me... É ela?
--Ela e a filha. Vieram ontem de manhã.
Ocorreu-me logo o episódio de 1814, e senti-me vexado; mas adverti que os acontecimentos
tinham-me dado razão. Na verdade, fora impossível evitar as relações íntimas do Vilaça com
a irmã do sargento-mor; antes mesmo do meu embarque, já se boquejava misteriosamente
no nascimento de uma menina. Meu tio João mandou-me dizer depois que o Vilaça, ao
morrer, deixara um bom legado a D. Eusébia, cousa que deu muito que falar em todo o
bairro. O próprio tio João, guloso de escândalos, não tratou de outro assunto na carta, aliás
de muitas folhas. Tinham-me dado razão os acontecimentos. Ainda porém que ma não
dessem, 1814 lá ia longe, e, com ele, a travessura, e o Vilaça, e o beijo da moita; finalmente,
nenhumas relações estreitas existiam entre mim e ela. Fiz comigo essa reflexão e acabei de
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fechar o baú.
--Nhonhô não vai visitar sinhá D. Eusébia? perguntou-me o Prudêncio. Foi ela quem vestiu
o corpo da minha defunta senhora.
Lembrei-me que a vira, entre outras senhoras, por ocasião da morte e do enterro; ignorava
porém que ela houvesse prestado a minha mãe esse derradeiro obséquio. A ponderação do
moleque era razoável; eu devia-lhe uma visita; determinei fazê-la imediatamente e descer.
CAPÍTULO XXVI / O AUTOR HESITA
SÚBITO OUÇO uma voz: -- Olá, meu rapaz, isto não é vida! Era meu pai, que chegava com
duas propostas na algibeira. Sentei-me no baú e recebi-o sem alvoroço. Ele esteve alguns
instantes de pé, a olhar para mim; depois estendeu-me a mão com um gesto comovido:
--Meu filho, conforma-te com a vontade de Deus.
--Já me conformei, foi a minha resposta, e beijei-lhe a mão. Não tinha almoçado;
almoçamos juntos. Nenhum de nós aludiu ao triste motivo da minha reclusão. Uma só vez
falamos nisso, de passagem, quando meu pai fez recair a conversa na Regência: foi então
que aludiu à carta de pêsames que um dos Regentes lhe mandara. Trazia a carta consigo, já
bastante amarrotada, talvez por havê-la lido a muitas outras pessoas. Creio haver dito que
era de um dos Regentes. Leu-ma duas vezes.
--Já lhe fui agradecer este sinal de consideração, concluiu meu pai, e acho que deves ir
também...
--Eu?
--Tu; é um homem notável, faz hoje às vezes de Imperador. Demais trago comigo uma idéia,
um projeto, ou... sim, digo-te tudo; trago dous projetos, um lugar de deputado e um
casamento.
Meu pai disse isto com pausa, e não no mesmo tom, mas dando às palavras um jeito e
disposição cujo fim era cavá-las mais profundamente no meu espírito. A proposta, porém,
desdizia tanto das minhas sensações últimas, que eu cheguei a não entendê-la bem. Meu pai
não fraqueou e repetiu-a; encareceu o lugar e a noiva.
--Aceitas?
--Não entendo de política, disse eu depois de um instante; quanto à noiva... deixe-me viver
como um urso, que sou.
--Mas os ursos casam-se, replicou ele.
--Pois traga-me uma ursa. Olhe, a Ursa-Maior...
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Riu-se meu pai, e depois de rir, tornou a falar sério. Era-me necessária a carreira política,
dizia ele, por vinte e tantas razões, que deduziu com singular volubilidade, ilustrando-as
com exemplos de pessoas do nosso conhecimento. Quanto à noiva, bastava que eu a visse;
se a visse, iria logo pedi-la ao pai, logo, sem demora de um dia. Experimentou assim a
fascinação, depois a persuasão, depois a intimação; eu não dava resposta, afiava a ponta de
um palito ou fazia bolas de miolo de pão, a sorrir ou a refletir; e, para tudo dizer, nem dócil
nem rebelde à proposta. Sentia-me aturdido. Uma parte de mim mesmo dizia que sim, que
uma esposa formosa e uma posição política eram bens dignos de apreço; outra dizia que
não; e a morte de minha mãe me aparecia como um exemplo da fragilidade das cousas, das
afeições, da família...
--Não vou daqui sem uma resposta definitiva, disse meu pai. De-fi-ni-ti-va! repetiu, batendo
as sílabas com o dedo.
Bebeu o último gole de café; repoltreou-se e entrou a falar de tudo, do senado, da câmara, da
Regência, da restauração? do Evaristo, de um coche que pretendia comprar, da nossa casa de
Mata cavalos... Eu deixava-me estar ao canto da mesa, a escrever desvairadamente num
pedaço de papel, com uma ponta de lápis; traçava uma palavra, uma frase, um verso, um
nariz, um triângulo, e repetia-os muitas vezes, sem ordem, ao acaso, assim:
arma virumque cano
A
arma virumque cano
Arma virumque cano
arma virumque cano
arma virumque cano
virunque
Maquinalmente tudo isto; e, não obstante, havia certa lógica, certa dedução, por exemplo,
foi o virumque que me fez chegar ao nome do próprio poeta, por causa da primeira sílaba- ia
a escrever virumque, e sai-me Virgílio, então continuei:
Vir gílio
Virgílio Virgílio Virgílio
Virgílio
Meu pai, um pouco despeitado com aquela indiferença, ergueu-se veio a mim, lançou os
olhos ao papel...
--Virgílio! exclamou. És tu, meu rapaz; a tua noiva chama-se justamente Virgília.
CAPÍTULO XXVII / VIRGÍLIA?
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VIRGÍLIA? Mas então era a mesma senhora que alguns anos depois? .. A mesma; era
justamente a senhora, que em 1869 devia assistir aos meus últimos dias, e que antes, muito
antes, teve larga parte nas minhas mais íntimas sensações. Naquele tempo contava apenas
uns quinze ou dezesseis anos; era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça, e, com
certeza, a mais voluntariosa. Não digo que ia lhe coubesse a primazia da beleza, entre as
mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e
fecha os olhos às sardas e espinhas; mas também não digo que lhe maculasse o rosto
nenhuma sarda ou espinha, não. Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele
feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da
criação. Era isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns
ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma devoção, -- devoção, ou talvez medo; creio
que medo.
Aí tem o leitor, em poucas linhas, o retrato físico e moral da pessoa que devia influir mais
tarde na minha vida e era aquilo com dezesseis anos. Tu que me lês, se ainda fores viva,
quando estas páginas vierem à luz, -- tu que me lês, Virgília amada, não reparas na diferença
entre a linguagem de hoje e a que primeiro empreguei quando te vi? Crê que era tão sincero
então como agora; a morte não me tornou rabugento, nem injusto.
--Mas, dirás tu, como é que podes assim discernir a verdade daquele tempo, e exprimi-la
depois de tantos anos?
Ah! indiscreta! ah! ignorantona! Mas é isso mesmo que nos faz senhores da Terra, é esse
poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade
dos nossos afetos. Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Não é uma
errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que
será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor da de graça aos vermes.
CAPÍTULO XXVIII / CONTANTO QUE . . .
--VIRGÍLIA? interrompi eu.
--Sim, senhor; é o nome da noiva. Um anjo, meu pateta, um anjo sem asas. Imagina uma
moça assim, desta altura, viva como um azougue, e uns olhos... filha do Dutra...
-- Que Dutra?
--O Conselheiro Dutra, não conheces; uma influência política Vamos lá, aceitas?
Não respondi logo; fitei por alguns segundos a ponta do botim; declarei depois que estava
disposto a examinar as duas cousas, a candidatura e o casamento, contanto que...
-- Contanto quê?
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Contanto que não fique obrigado a aceitar as duas; creio que posso ser separadamente
homem casado ou homem público...
Todo o homem público deve ser casado, interrompeu sentenciosamente meu pai. Mas seja
como queres; estou por tudo, fico certo de que a vista fará fé! Demais, a noiva e o
Parlamento são a mesma cousa... isto é, não... saberás depois... Vá; aceito a dilação,
contanto que...
-- Contanto quê?... interrompi eu, imitando-lhe a voz.
--Ah! brejeiro! Contanto que não te deixes ficar aí inútil, obscuro, e triste; não gastei
dinheiro, cuidados, empenhos, para te não ver brilhar, como deves, e te convém, e a todos
nós; é preciso continuar o nosso nome, continuá-lo e ilustrá-lo ainda mais. Olha, estou com
sessenta anos, mas se fosse necessário começar vida nova, começava, sem hesitar um só
minuto. Teme a obscuridade, Brás; foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por
diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros homens. Não
estragues as vantagens da tua posição, os teus meios...
E foi por diante o mágico, a agitar diante de mim um chocalho, como me faziam, em
pequeno, para eu andar depressa, e a flor da hipocondria recolheu-se ao botão para deixar a
outra flor menos amarela, e nada mórbida,--o amor da nomeada, o emplasto Brás Cubas.
CAPÍTULO XXIX / A VISITA
VENCERA meu pai, dispus-mo a aceitar o diploma e o casamento, Virgília e a Câmara dos
Deputados. As duas Virgílias, disse ele num assomo de ternura política. Aceitei-os; meu pai
deu-me dous fortes abraços. Era o seu próprio sangue que ele, enfim, reconhecia.
--Desces comigo?
--Desço amanhã. Vou fazer primeiramente uma visita a D. Eusébia...
Meu pai torceu o nariz, mas não disse nada; despediu-se e desceu. Eu, na tarde desse mesmo
dia, fui visitar D. Eusébia. Achei-a a repreender um preto jardineiro, mas deixou tudo para
vir falar-me, com um alvoroço, um prazer tão sincero, que me desacanhou logo. Creio que
chegou a cingir-me com o seu par de braços robustos. Fez-me sentar ao pé de si, na varanda,
entre muitas exclamações de contentamento:
-- Ora, o Brasinho! Um homem! Quem diria, há anos... Um homenzarrão! E bonito! Qual!
Você não se lembra de mim. .
Disse-lhe que sim, que não era possível esquecer uma amiga tão familiar de nossa casa. D.
Eusébia começou a falar de minha mãe com muitas saudades, com tantas saudades, que me
cativou logo posto me entristecesse. Ela percebeu-o nos meus olhos, e torceu a rédea à
conversação; pediu-me que lhe contasse a viagem, os estudos os namoros... Sim, os namoros
também; confessou-me que era uma velha patusca. Nisto recordei-me do episódio de 1814,
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ela, o Vilaça, a moita, o beijo, o meu grito; e estando a recordá-lo, ouço um ranger de porta,
um farfalhar de saias e esta palavra:
--Mamãe... mamãe...
CAPÍTULO XXX / A FLOR DA MOITA
A VOZ E AS SAIAS pertenciam a uma mocinha morena, que se deteve à porta, alguns
instantes, ao ver gente estranha. Silêncio curto e constrangido. D. Eusébia quebrou-o, enfim,
com resolução e franqueza:
--Vem cá, Eugênia, disse ela, cumprimenta o Dr. Brás Cubas filho do Sr. Cubas, veio da
Europa.
E voltando-se para mim:
-- Minha filha Eugênia.
Eugênia, a flor da moita, mal respondeu ao gesto de cortesia que lhe fiz; olhou-me admirada
e acanhada, e lentamente se aproximou da cadeira da mãe. A mãe arranjou-lhe uma das
tranças do cabelo cuja ponta se desmanchara. Ah! travessa! dizia. Não imagina doutor, o que
isto é... E beijou-a com tão expansiva ternura que me comoveu um pouco; lembrou-me
minha mãe, e, -- direi tudo,-- tive umas cócegas de ser pai.
-- Travessa? disse eu. Pois já não está em idade própria, ao que parece.
-- Quantos lhe dá?
--Dezessete.
-- Menos um.
--Dezesseis. Pois então! é uma moça
Não pôde Eugênia encobrir a satisfação que sentia com esta minha palavra, mas emendou-se
logo, e ficou como dantes, erecta, fria e muda. Em verdade, parecia ainda mais mulher do
que era, seria criança nos seus folgares de moça; mas assim quieta, impassível, tinha a
compostura da mulher casada. Talvez essa circunstância lhe diminuía um pouco da graça
virginal. Depressa nos familiarizamos; a mãe fazia-lhe grandes elogios, eu escutava-os de
boa sombra, e ela sorria com os olhos fúlgidos, como se lá dentro do cérebro lhe estivesse a
voar uma borboletinha de asas de ouro e olhos de diamante...
Digo lá dentro, porque cá fora o que esvoaçou foi uma borboleta preta, que subitamente
penetrou na varanda, e começou a bater as asas em derredor de D. Eusébia. D. Eusébia deu
um grito, levantou-se, praguejou umas palavras soltas: --T'sconjuro!... Sai, diabo!... Virgem
Nossa Senhora!...
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-- Não tenha medo, disse eu; e, tirando o lenço, expeli a borboleta. D. Eusébia sentou-se
outra vez, ofegante, um pouco envergonhada; a filha, pode ser que pálida de medo,
dissimulava a impressão com muita força de vontade. Apertei-lhes a mão e saí, a rir comigo
da superstição das duas mulheres, um rir filosófico, desinteressado, superior. De tarde, vi
passar a cavalo a filha de D. Eusébia, seguida de um pajem; fez-me um cumprimento com a
ponta do chicote. Confesso que me lisonjeei com a idéia de que alguns passos adiante ela
voltaria a cabeça para trás; mas não voltou.
CAPÍTULO XXXI / A BORBOLETA PRETA
NO DIA SEGUINTE, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto
uma borboleta, tão negra como a outra, e muito maior do que ela. Lembrou-me o caso da
véspera, e ri-me; entrei logo a pensar na filha de D. Eusébia, no susto que tivera, e na
dignidade que, apesar dele, soube conservar. A borboleta, depois de esvoaçar muito em
torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi pousar na vidraça; e, porque eu a
sacudisse de novo, saiu dali e veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra
como a noite. O gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover as asas, tinha um
certo ar escarninho, que me aborreceu muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá,
minutos depois, e achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repelão dos nervos, lancei mão
de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.
Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei-a
na palma da mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de
alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.
-- Também por que diabo não era ela azul? disse comigo. E esta reflexão, -- uma das mais
profundas que se tem feito, desde a invenção das borboletas,-- me consolou do malefício, e
me reconciliou comigo mesmo Deixei-me estar a contemplar o cadáver, com alguma
simpatia, confesso. Imaginei que ela saíra do mato, almoçada e feliz. A manhã era linda.
Veio por ali fora, modesta e negra, espairecendo as suas borboletices, sob a vasta cúpula de
um céu azul, que é sempre azul, para todas as asas. Passa pela minha janela, entra e dá
comigo. Suponho que nunca teria visto um homem; não sabia, portanto, o que era o homem;
descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha olhos,
braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então disse consigo: "Este é
provavelmente o inventor das borboletas." A idéia subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, que é
também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu criador era beijá-lo na
testa, e beijou-me na testa. Quando enxotada por mim, foi pousar na vidraça, viu dali o
retrato de meu pai, e não é impossível que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali
o pai do inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia.
Pois um golpe de toalha rematou a aventura. Não lhe valeu a imensidade azul, nem a alegria
das flores, nem a pompa das folhas verdes, contra uma toalha de rosto, dous palmos de linho
cru. Vejam como é bom ser superior às borboletas! Porque, é justo dizê-lo, se ela fosse azul,
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ou cor de laranja, não teria mais segura a vida; não era impossível que eu a atravessasse com
um alfinete, para recreio dos olhos. Não era. Esta última idéia restituiu-me a consolação; uni
o dedo grande ao polegar, despedi um piparote e o cadáver caiu no jardim. Era tempo; aí
vinham já as próvidas formigas. . . Não, volto à primeira idéia; creio que para ela era melhor
ter nascido azul.
CAPÍTULO XXXII / COXA DE NASCENÇA
FUI DALI ACABAR os preparativos da viagem. Já agora não me demoro mais. Desço
imediatamente; desço, ainda que algum leitor circunspecto me detenha para perguntar se o
capítulo passado é apenas uma sensaboria ou se chega a empulhação... Ai, não contava com
D. Eusébia. Estava pronto, quando me entrou por casa. Vinha convidar-me para transferir a
descida, e ir lá jantar nesse dia. Cheguei a recusar; mas instou tanto, tanto, tanto, que não
pude deixar de aceitar, demais, era-lhe devida aquela compensação; fui.
Eugênia desataviou-se nesse dia por minha causa. Creio que foi por minha causa, se é que
não andava muita vez assim. Sem as bichas de ouro, que trazia na véspera, lhe pendiam
agora das orelhas, duas orelhas finamente recortadas numa cabeça de ninfa. Um simples
vestido branco, de cassa, sem enfeites, tendo ao colo, em vez de broche, um botão de
madrepérola, e outro botão nos punhos, fechando as mangas, e nem sombra de pulseira.
Era isso no corpo; não era outra cousa no espírito. Idéias claras, maneiras chãs, certa graça
natural, um ar de alguma outra cousa; sim, a boca, exatamente a boca da mãe, a qual me
lembrava o episódio de 1814, e então dava-me ímpetos de glosar o mesmo mote à filha. . .
-- Agora vou mostrar-lhe a chácara, disse a mãe, logo que esgotamos o último gole de café.
Saímos à varanda, dali à chácara, e foi então que notei uma circunstância. Eugênia coxeava
um pouco, tão pouco que eu cheguei a perguntar-lhe se machucara o pé. A mãe calou-se; a
filha respondeu sem titubear:
--Não, senhor, sou coxa de nascença.
Mandei-me a todos os diabos; chamei-me desastrado, grosseirão. Com efeito, a simples
possibilidade de ser coxa era bastante para lhe não perguntar nada. Então lembrou-me que
da primeira vez que a vi -- na véspera --a moça chegara-se lentamente à cadeira da mãe, e
que naquele dia já a achei à mesa de jantar. Talvez fosse para encobrir o defeito; mas por
que razão o confessava agora? Olhei para ela e reparei que ia triste.
Tratei de apagar os vestígios de meu desazo;-- não me foi difícil porque a mãe era, segundo
confessara, uma velha patusca, e prontamente travou de conversa comigo. Vimos toda a
chácara, árvores, flores, tanque de patos, tanque de lavar, uma infinidade de cousas, que ela
me ia mostrando, e comentando, ao passo que eu de soslaio, perscrutava os olhos de
Eugênia...
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Palavra que o olhar de Eugênia não era coxo, mas direito, perfeitamente são, vinha de uns
olhos pretos e tranqüilos. Creio que duas ou três vezes baixaram estes, um pouco turvados;
mas duas ou três vezes somente; em geral, fitavam-me com franqueza, sem temeridade, nem
biocos.
CAPÍTULO XXXIII / BEM-AVENTURADOS OS QUE NÃO DESCEM
O PIOR É que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão
senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso
escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha
fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com a solução do enigma. O
melhor que há, quando se não resolve um enigma, é sacudi-lo pela janela fora; foi o que eu
fiz; lancei mão de uma toalha e enxotei essa outra borboleta preta, que me adejava no
cérebro. Fiquei aliviado e fui dormir. Mas o sonho, que é uma fresta do espírito, deixou
novamente entrar o bichinho, e aí fiquei eu a noite toda a cavar o mistério, sem explicá-lo.
Amanheceu chovendo, transferi a descida; mas no outro dia a manhã era límpida e azul, e
apesar disso deixei-me ficar, não menos que no terceiro dia. e no quarto, até o fim da
semana. Manhãs bonitas, frescas, convidativas- lá embaixo a família a chamar-me, e a
noiva, e o Parlamento, e eu sem acudir a cousa nenhuma, enlevado ao pé da minha Vênus
Manca. Enlevado é uma maneira de realçar o estilo; não havia enlevo, mas gosto, uma certa
satisfação física e moral. Queria-lhe, é verdade; ao pé dessa criatura tão singela, filha
espúria e cosa, feita de amor e desprezo, ao pé dela sentia-me bem, e ela creio que ainda se
sentia melhor ao pé de mim. E isto na Tijuca. Uma simples égloga. D. Eusébia vigiava-nos,
mas pouco; temperava a necessidade com a conveniência. A filha, nessa primeira explosão
da natureza, entregava-me a alma em flor.
-- O senhor desce amanhã? disse-me ela no sábado.
-- Pretendo.
-- Não desça.
Não desci, e acrescentei um versículo ao Evangelho: --Bem-aventurados os que não descem,
porque deles é o primeiro beijo das moças. Com efeito, foi no domingo esse primeiro beijo
de Eugênia, -- o primeiro que nenhum outro varão jamais lhe tomara, e não furtado ou
arrebatado, mas candidamente entregue, como um devedor honesto paga uma dívida. Pobre
Eugênia! Se tu soubesses que idéias me vagavam pela mente fora naquela ocasião! Tu,
trêmula de comoção, com os braços nos meus ombros, a contemplar em mim o teu
bem-vindo esposo, e eu com os olhos de 1814, na moita, no Vilaça, e a suspeitar que não
podias mentir ao teu sangue, à tua origem . . .
D. Eusébia entrou inesperadamente, mas não tão súbita, que nos apanhasse ao pé um do
outro. Eu fui até à janela; Eugênia sentou-se a concertar uma das tranças. Que dissimulação
graciosa! que arte infinita e delicada! que tartufice profunda! e tudo isso natural, vivo, não
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estudado, natural como o apetite, natural como o sono. Tanto melhor! D. Eusébia não
suspeitou nada.
CAPÍTULO XXXIV / A UMA ALMA SENSÍVEL
HÁ AÍ, entre as cinco ou dez pessoas que me lêem, há aí uma aia sensível, que está decerto
um tanto agastada com o capítulo anterior, começa a tremer pela sorte de Eugênia, e talvez...
sim, talvez, lá no fundo de si mesma, me chame cínico. Eu cínico, alma sensível? Pela coxa
de Diana! esta injúria merecia ser lavada com sangue, se o sangue lavasse alguma cousa
nesse mundo. Não, alma sensível, eu não sou cínico, eu fui homem; meu cérebro foi um
tablado em que se deram peças de todo gênero, o drama sacro, o austero, o piegas, a
comédia louçã, a desgrenhada farsa, os autos, as bufonerias, um pandemonium, alma
sensível, uma barafunda de cousas e pessoas, em que podias ver tudo, desde a rosa de
Esmirna até a arruda do teu quintal, desde o magnífico leito de Cleópatra até o recanto da
praia em que o mendigo tirita o seu sono. Cruzavam-se nele pensamentos de vária casta e
feição. Não havia ali a atmosfera somente da águia e do beija-flor; havia também a da lesma
e do sapo. Retira, pois, a expressão, alma sensível, castiga os nervos, limpa os óculos, -- que
isso às vezes é dos óculos, e acabemos de uma vez com esta flor da moita.
CAPÍTULO XXXV / O CAMINHO DE DAMASCO
ORA ACONTECEU, que, oito dias depois, como eu estivesse no caminho de Damasco,
ouvi uma voz misteriosa, que me sussurrou as palavras da Escritura (Ar. IX, 7): "Levanta-te,
e entra na cidade." Essa voz saía de mim mesmo, e tinha duas origens a piedade, que me
desarmava ante a candura da pequena, e o terror de vir a amar deveras, e desposá-la. Uma
mulher coxa! Quanto a este motivo da minha descida, não há duvidar que ela o achou e mo
disse. Foi na varanda, na tarde de uma segunda-feira, ao anunciar-lhe que na seguinte manhã
viria para baixo. -- Adeus, suspirou ela estendendo-me a mão com simplicidade; faz bem --
E como eu nada dissesse, continuou: -- Faz bem em fugir ao ridículo de casar comigo. Ia
dizer-lhe que não; ela retirou-se lentamente, engolindo as lágrimas. Alcancei-a a poucos
passos, e jurei-lhe por todos os santos do Céu que eu era obrigado a descer, mas que não
deixava de lhe querer e muito; tudo hipérboles frias, que ela escutou sem dizer nada.
-- Acredita-me? perguntei eu no fim.
-- Não, e digo-lhe que faz bem.
Quis retê-la, mas o olhar que me lançou não foi já de súplica, senão de império. Desci da
Tijuca, na manhã seguinte, um pouco amargurado, outro pouco satisfeito. Vinha dizendo a
mim mesmo que era justo obedecer a meu pai, que era conveniente abraçar a carreira
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política... que a constituição... que a minha noiva... que o meu cavalo...
CAPÍTULO XXXVI / A PROPÓSITO DE BOTAS
MEU PAI, que me não esperava, abraçou-me cheio de ternura e agradecimento. Agora é
deveras? disse ele. Posso enfim. . .?
deixei-o nessa reticência, e fui descalçar as botas, que estavam apertadas. Uma vez aliviado,
respirei à larga, e deitei-me a fio comprido, enquanto os pés, e todo eu atrás deles,
entrávamos numa relativa bem-aventurança. Então considerei que as botas apertadas são
uma das maiores venturas da Terra, porque, fazendo doer os pés, dão azo ao prazer de as
descalçar. Mortifica os pés, desgraçado, desmortifica-os depois, e aí tens a felicidade barata,
ao sabor dos sapateiros e de Epicuro. Enquanto esta idéia me trabalhava no famoso trapézio,
lançava eu os olhos para a Tijuca, e via a aleijadinha perder-se no horizonte do pretérito, e
sentia que o meu coração não tardaria também a descalçar as suas botas. E descalçou-as o
lascivo. Quatro ou cinco dias depois, saboreava esse rápido, inefável e incoercível momento
de gozo, que sucede a uma dor pungente, a uma preocupação, a um incômodo... Daqui inferi
eu que a vida é o mais engenhoso dos fenômenos, porque só aguça a fome, com o fim de
deparar a ocasião de comer, e não inventou os calos, senão porque eles aperfeiçoam a
felicidade terrestre. Em verdade vos digo que toda a sabedoria humana não vale um par de
botas curtas.
-- Tu, minha Eugênia, é que não as descalçaste nunca; foste aí pela estrada da vida,
manquejando da perna e do amor, triste como os enterros pobres, solitária, calada, laboriosa,
até que vieste também para esta outra margem... O que eu não sei é se a tua existência era
muito necessária ao século. Quem sabe? Talvez um comparsa de menos fizesse patear a
tragédia humana.
CAPÍTULO XXXVII / ENFIM!
ENFIM! eis aqui Virgília. Antes de ir à casa do Conselheiro Dutra, perguntei a meu pai se
havia algum ajuste prévio de casamento.
-- Nenhum ajuste. Há tempos, conversando com ele a teu respeito, confessei-lhe o desejo
que tinha de te ver deputado; e de tal modo falei, que ele prometeu fazer alguma cousa, e
creio que o fará. Quanto à noiva, é o nome que dou a uma criaturinha, que é uma jóia, uma
flor, uma estrela, uma cousa rara. . . é a filha dele; imaginei que, se casasses com ela, mais
depressa serias deputado.
-- Só isto?
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--Só isto.
Fomos dali à casa do Dutra. Era uma pérola esse homem, risonho, jovial, patriota, um pouco
irritado com os males públicos, mas não desesperando de os curar depressa. Achou que a
minha candidatura era legítima; convinha, porém, esperar alguns meses. E logo me
apresentou à mulher, uma estimável senhora,--e à filha, que não desmentiu em nada o
panegírico de meu pai. Juro-vos que em nada. Relede o capítulo XXVII. Eu, que levava
idéias a respeito da pequena, fitei-a de certo modo; ela, que não sei se as tinha, não me fitou
de modo diferente; e o nosso olhar primeiro foi pura e simples mente conjugal. No fim de
um mês estávamos íntimos.
CAPÍTULO XXXVIII / A QUARTA EDIÇÃO
-- VENHA CÁ jantar amanhã, disse-me o Dutra uma noite.
Aceitei o convite. No dia seguinte, mandei que a sege me esperasse no Largo de S.
Francisco de Paula, e fui dar várias voltas. Lembra-vos ainda a minha teoria das edições
humanas? Pois sabei que, naquele tempo, estava eu na quarta edição, revista e emendada,
mas ainda inçada de descuidos e barbarismos; defeito que, aliás, achava alguma
compensação no tipo, que era elegante, e na encadernação, que era luxuosa. Dadas as voltas,
ao passar pela Rua dos Ourives, consulto o relógio e cai-me o vidro na calçada. Entro na
primeira loja que tinha à mão; era um cubículo, pouco mais,-- empoeirado e escuro.
Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto amarelo e bexiguento
não se destacava logo, à primeira vista; mas logo que se destacava era um espetáculo
curioso. Não podia ter sido feia; ao contrário, via-se que fora bonita, e não pouco bonita,
mas a doença e uma velhice precoce destruíam-lhe a flor das graças. As bexigas tinham sido
terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam saliências e encarnas, declives e aclives, e
davam uma sensação de lisa grossa, enormemente grossa. Eram os olhos a melhor parte do
vulto, e aliás tinham uma expressão singular e repugnante, que mudou, entretanto, logo que
eu comecei a falar. Quanto ao cabelo, estava ruço e quase tão poento como os portais da
loja. Num dos dedos da mão esquerda fulgia-lhe um diamante. Crê-lo-eis, pósteros? essa
mulher era Marcela.
Não a conheci logo; era difícil; ela porém conheceu-me apenas lhe dirigi a palavra. Os olhos
chisparam e trocaram a expressão usual por outra, meia doce e meia triste. Vi-lhe um
movimento coma para esconder-se ou fugir; era o instinto da vaidade, que não durou mais
de um instante. Marcela acomodou-se e sorriu.
--Quer comprar alguma cousa? disse ela estendendo-me a mão. Não respondi nada. Marcela
compreendeu a causa do meu silencio (não era difícil), e só hesitou, creio eu, em decidir o
que dominava mais, se o assombro do presente, se a memória do passado. Deu-me uma
cadeira, e, com o balcão permeio, falou-me longamente de si, da vida que levara, das
lágrimas que eu lhe fizera verter, das saudades, dos desastres, enfim das bexigas, que lhe
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escalavraram o rosto, e do tempo, que ajudou a moléstia, adiantando-lhe a decadência.
Verdade é que tinha a alma decrépita. Vendera tudo, quase tudo; um homem, que a amara
outrora, e lhe morreu nos braços. Deixara-lhe aquela loja de ourivesaria, mas para que a
desgraça fosse completa, era agora pouco buscada a loja-- talvez pela singularidade de a
dirigir uma mulher. Em seguida pediu-me que lho contasse a minha vida. Gastei pouso
tempo em dizer-lha; não era longa, nem interessante.
-- Casou? disse Marcela no fim de minha narração.
-- Ainda não, respondi secamente.
Marcela lançou os olhos para a rua, com a atonia de quem reflete ou relembra; eu deixei-me
ir então ao passado, e, no meio das recordações e saudades, perguntei a mim mesmo por que
motivo fizera tanto desatino. Não era esta certamente a Marcela de 1822; mas a beleza de
outro tempo valia uma terça parte dos meus sacrifícios? Era o que eu buscava saber,
interrogando o rosto de Marcela. O rosto dizia-me que não; ao mesmo tempo os olhos me
contavam que, já outrora, como hoje, ardia neles a flama da cobiça. Os meus é que não
souberam ver-lha; eram olhos da primeira edição.
-- Mas por que entrou aqui? viu-me da rua? perguntou ela, saindo daquela espécie de torpor.
--Não, supunha entrar numa casa de relojoeiro; queria comprar um vidro para este relógio;
vou a outra parte; desculpe-me; tenho pressa.
Marcela suspirou com tristeza. A verdade é que eu me sentia pungido e aborrecido, ao
mesmo tempo, e ansiava por me ver fora daquela casa. Marcela, entretanto, chamou um
moleque, deu-lhe o relógio, e, apesar da minha oposição, mandou-o, a uma loja na
vizinhança, comprar o vidro. Não havia remédio; sentei-me outra vez. Disse ela então que
desejava ter a proteção dos conhecidos de outro tempo; ponderou que mais tarde ou mais
cedo era natural que me casasse, e afiançou que me daria finas jóias por preços baratos. Não
disse preços baratos, mas usou uma metáfora delicada e transparente. Entrei a desconfiar
que não padecera nenhum desastre (salvo a modéstia), que tinha o dinheiro a bom recado, e
que negociava com o único fim de acudir à paixão do lucro, que era o verme roedor daquela
existência; foi isso mesmo que me disseram depois.
CAPÍTULO XXXIX / O VIZINHO
ENQUANTO EU fazia comigo mesmo aquela reflexão, entrou na loja um sujeito baixo, sem
chapéu, trazendo pela mão uma menina de quatro anos.
--Como passou de boje de manhã? disse ele a Marcela.
--Assim, assim. Vem cá, Maricota.
O sujeito levantou a criança pelos braços e passou-a para dentro do balcão.
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--Anda, disse ele; pergunta a D. Marcela como passou a noite. Estava ansiosa por vir cá,
mas a mãe não tinha podido vesti-la.., Então, Maricota? Toma a bênção... Olha a vara de
marmelo! Assim... Não imagina o que ela é lá em casa; fala na senhora a todos os instantes,
e aqui parece a pamonha. Ainda ontem... Digo, Maricota?
--Não, diga, não, papai.
--Então foi alguma cousa feia? perguntou Marcela batendo na cara da menina.
--Eu lhe digo; a mãe ensina-lhe a rezar todas as noites um padre-nosso e uma ave-maria,
oferecidos a Nossa Senhora; mas a pequena ontem veio pedir-me com voz muito humilde...
imagine o quê?... que queria oferecê-los a Santa Marcela.
--Coitadinha! disse Marcela beijando-a.
-- É um namoro, uma paixão, como a senhora não imagina... A mãe diz que é feitiço...
Contou mais algumas cousas o sujeito, todas mui agradáveis, até que saiu levando a menina,
não sem deitar-me um olhar interrogativo ou suspeitoso. Perguntei a Marcela quem era ele.
-- É um relojoeiro da vizinhança, um bom homem; a mulher também; e a filha é galante,
não? Parecem gostar muito de mim... é boa gente.
Ao proferir estas palavras havia um tremor de alegria na voz de Marcela; e no rosto como
que se lhe espraiou uma onda de ventura. . .
CAPÍTULO XL / NA SEGE
NISTO ENTROU o moleque trazendo o relógio com o vidro novo. Era tempo; já me
custava estar ali; dei uma moedinha de prata ao moleque; disse a Marcela que voltaria
noutra ocasião, e saí a passo largo. Para dizer tudo, devo confessar que o coração me batia
um pouco; mas era uma espécie de dobre de finados. O espírito ia travado de impressões
opostas. Notem que aquele dia amanhecera alegre para mim. Meu pai, ao almoço,
repetiu-me, por antecipação, o primeiro discurso que eu tinha de proferir na Câmara dos
Deputados; rimo-nos muito, e o sol também, que estava brilhante, como nos mais belos dias
do mundo; do mesmo modo que Virgília devia rir, quando eu lhe contasse as nossas
fantasias do almoço. Vai senão quando, cai-me o vidro do relógio; entro na primeira loja que
me fica à mão; e eis me surge o passado, ei-lo que me lacera e beija; ei-lo que me interroga,
com um rosto cortado de saudades e bexigas...
Lá o deixei; meti-me às pressas na sege, que me esperava no Largo de S. Francisco de
Paula, e ordenei ao boleeiro que rodasse pelas ruas fora. O boleeiro atiçou as bestas, a sege
entrou a sacolejar-me, as molas gemiam, as rodas sulcavam rapidamente a lama que deixara
a chuva recente, e tudo isso me parecia estar parado. Não há, às vezes, um certo vento
morno, não forte nem áspero, mas abafadiço, que nos não leva o chapéu da cabeça, nem
rodomoinha nas saias das mulheres, e todavia é ou parece ser pior do que se fizesse uma e
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outra cousa, porque abate, afrouxa, e como que dissolve os espíritos? Pois eu tinha esse
vento comigo; e, certo de que ele me soprava por achar-me naquela espécie de garganta
entre o passado e o presente, almejava por sair à planície do futuro. O pior é que a sege não
andava.
-- João, bradei eu ao boleeiro. Esta sege anda ou não anda?
--Uê! nhonhô! Já estamos parados na porta de sinhô Conselheiro.
CAPÍTULO XLI / A ALUCINAÇÃO
ERA VERDADE. Entrei apressado; achei Virgília ansiosa, mau humor, fronte nublada. A
mãe, que era surda, estava na sala com ela. No fim dos cumprimentos disse-me a moça com
sequidão:
-- Esperávamos que viesse mais cedo.
Defendi-me do melhor modo; falei do cavalo que empacara, e de um amigo, que me
detivera. De repente morre-me a voz nos lábios, fico tolhido de assombro. Virgília... seria
Virgília aquela moça? Fitei-a muito, e a sensação foi tão penosa, que recuei um passo e
desviei a vista. Tornei a olhá-la. As bexigas tinham-lhe comido o rosto; a pele, ainda na
véspera tão fina, rosada e pura, aparecia-me agora amarela, estigmada pelo mesmo flagelo,
que devastara o rosto da espanhola. Os olhos, que eram travessos, fizeram-se murchos; tinha
o lábio triste e a atitude cansada. Olhei-a bem; peguei-lhe na mão, e chamei-a brandamente a
mim. Não me enganava; eram as bexigas. Creio que fiz um gesto de repulsa.
Virgília afastou-se, e foi sentar-se no sofá. Eu fiquei algum tempo a olhar para os meus
próprios pés. Devia sair ou ficar? Rejeitei o primeiro alvitre, que era simplesmente absurdo,
e encaminhei-me para Virgília, que lá estava sentada e calada. Céus! Era outra vez a fresca,
a juvenil, a florida Virgília. Em vão procurei no rosto dela algum vestígio da doença;
nenhum havia; era a pele fina e branca do costume.
--Nunca me viu? perguntou Virgília, vendo que a encarava com insistência.
-- Tão bonita, nunca.
Sentei-me, enquanto Virgília, calada, fazia estalar as unhas. Seguiram-se alguns segundos de
pausa. Falei-lhe de cousas estranhas ao incidente; ela porém não me respondia nada, nem
olhava para mim. Menos o estalido, era a estátua do Silêncio. Uma só vez me deitou os
olhos, mas muito de cima, soerguendo a pontinha esquerda do lábio, contraindo as
sobrancelhas, ao ponto de as unir; todo esse conjunto de cousas dava-lhe ao rosto uma
expressão média, entre cômica e trágica.
Havia alguma afetação naquele desdém; era um arrebique do gesto. Lá dentro, ela padecia, e
não pouco, ou fosse mágoa pura, ou só despeito; e porque a dor que se dissimula dói mais, é
mui provável que Virgília padecesse em dobro do que realmente descia padecer. Creio que
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isto é metafísica.
CAPÍTULO XLII / QUE ESCAPOU A ARISTÓTELES
OUTRA COUSA que também me parece metafísica é isto: Dá-se movimento a uma bola,
por exemplo; rola esta, encontra outra bola, transmite-lhe o impulso, e eis a segunda boa a
rolar como a primeira rolou. Suponhamos que a primeira bola se chama... Marcela, -- é uma
simples suposição; a segunda, Brás Cubas; a terceira, Virgília. Temos que Marcela,
recebendo um piparote do passado rolou até tocar em Brás Cubas, o qual, cedendo à força
impulsiva, entrou a rolar também até esbarrar em Virgília, que não tinha nada com a
primeira bola; e eis aí como, pela simples transmissão de uma força, se tocam os extremos
sociais, e se estabelece uma cousa que poderemos chamar solidariedade do aborrecimento
humano. Co mo é que este capítulo escapou a Aristóteles?
CAPÍTULO XLIII / MARQUESA, PORQUE EU SEREI MARQUÊS
POSITIVAMENTE, era um diabrete Virgília, um diabrete angélico, se querem, mas era-o, e
então...
Então apareceu o Lobo Neves, um homem que não era mais esbelto que eu, nem mais
elegante, nem mais lido, nem mais simpático, e todavia foi quem me arrebatou Virgília e a
candidatura, dentro de poucas semanas, com um ímpeto verdadeiramente cesariano. Não
precedeu nenhum despeito; não houve a menor violência de família. Dutra veio dizer-me,
um dia. que esperasse outra aragem, porque a candidatura de Lobo Neves era apoiada por
grandes influencias. Cedi; tal foi o começo da minha derrota. Uma semana depois, Virgília
perguntou ao Lobo Neves, a sorrir, quando seria ele ministro.
-- Pela minha vontade, já; pelas dos outros, daqui a um ano. Virgília replicou:
Promete que algum dia me fará baronesa?
Marquesa, porque eu serei marquês.
Desde então fiquei perdido. Virgília comparou a águia e o pavão, e elegeu a águia, deixando
o pavão com o seu espanto, o seu despeito, e três ou quatro beijos que lhe dera. Talvez cinco
beijos; mas dez que fossem não queria dizer cousa nenhuma. O lábio do homem não é como
a pata do cavalo de Atila, que esterilizava o solo em que batia; é justamente o contrário.
CAPÍTULO XLIV / UM CUBAS!
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MEU PAI ficou atônito com o desenlace, e quer-me parecer que não morreu de outra cousa.
Eram tantos os castelos que engenhara, tantos e tantíssimos os sonhos, que não podia vê-los
assim esboroados, sem padecer um forte abalo no organismo. A princípio não quis crê-lo.
Um Cubas! um galho da árvore ilustre dos Cubas! E dizia isto com tal convicção, que eu, já
então informado da nossa tanoaria, esqueci um instante a volúvel dama, para só contemplar
aquele fenômeno, não raro, mas curioso: uma imaginação graduada em consciência.
--Um Cubas! repetia-me ele na seguinte manhã, ao almoço. Não foi alegre o almoço; eu
próprio estava a cair de sono. Tinha velado uma parte da noite. De amor? Era impossível
não se ama duas vezes a mesma mulher, e eu, que tinha de amar aquela, tempos depois, não
lhe estava agora preso por nenhum outro vínculo, além de uma fantasia passageira, alguma
obediência e muita fatuidade. E isto basta a explicar a vigília; era despeito, um
despeitozinho agudo como ponta de alfinete, o qual se desfez, com charutos, murros, leituras
truncadas, até romper a aurora, a mais tranqüila das auroras.
Mas eu era moço, tinha o remédio em mim mesmo. Meu pai é que não pôde suportar
facilmente a pancada. Pensando bem, pode ser que não morresse precisamente do desastre;
mas que o desastre lhe complicou as últimas dores, é positivo. Morreu daí a quatro meses,
acabrunhado, triste, com uma preocupação intensa e contínua, à semelhança de remorso, um
desencanto mortal, que lhe substituiu os reumatismos e tosses. Teve ainda meia hora de
alegria; foi quando um dos ministros o visitou. Vi-lhe, -- lembra-me bem, vi-lhe o grato
sorriso de outro tempo, e nos olhos uma concentração de 1uz, que era, por assim dizer, o
último lampejo da alma expirante. Mas a tristeza tornou logo, a tristeza de morrer sem me
ver posto em algum lugar alto, como aliás me cabia.
--Um Cubas!
Morreu alguns dias depois da visita do ministro, uma manhã de maio, entre os dois filhos,
Sabina e eu, e mais o tio Ildefonso e meu cunhado. Morreu sem lhe poder valer a ciência dos
médicos, nem o nosso amor, nem os cuidados, que foram muitos, nem cousa nenhuma; tinha
de morrer, morreu.
-- Um Cubas!
CAPÍTULO XLV / NOTAS
SOLUÇOS, lágrimas, casa armada, veludo preto nos portais, um homem que veio vestir o
cadáver, outro que tomou a medida do caixão, essa, tocheiros, convites, convidados que
entravam, lentamente, a passo surdo, e apertavam a mão à família, alguns tristes, todos
sérios e calados, padre e sacristão do caixão, a prego e martelo, seis pessoas que o tomam da
essa, e o levantam, e o descem a custo pela escada, não obstante os gritos, soluços e novas
lágrimas da família, e vão até o coche fúnebre, e o colocam em cima e traspassam e apertam
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as correias, o rodar do coche, o rodar dos carros, um a um... Isto que parece um simples
inventário, eram notas que eu havia tomado para um capítulo triste e vulgar que não escrevo.
CAPÍTULO XLVI / A HERANÇA
VEJA NOS AGORA o leitor, oito dias depois da morte de meu pai,-- minha irmã sentada
num sofá, pouco adiante, Cotrim, de pé, encostado a um consolo, com os braços cruzados e
a morder o bigode,-- eu a passear de um lado para outro, com os olhos no chão. Luto
pesado. Profundo silêncio.
-- Mas afinal, disse Cotrim; esta casa pouco mais pode valer de trinta contos; demos que
valha trinta e cinco. . .
-- Vale cinqüenta, ponderei; Sabina sabe que custou cinqüenta e oito...
-- Podia custar até sessenta, tornou Cotrim; mas não se segue que os valesse, e menos ainda
que os valha hoje. Você sabe que as casas, aqui há anos, baixaram muito. Olhe, se esta vale
os cinqüenta contos, quantos não vale a que você deseja para si, a do Campo?
-- Não fale nisso! Uma casa velha.
--Velha! exclamou Sabina, levantando as mãos ao tecto.
--Parece-lhe nova, aposto?
-- Ora, mano, deixe-se dessas cousas, disse Sabina, erguendo-se do sofá, podemos arranjar
tudo em boa amizade, e com lisura. Por exemplo, Cotrim não aceita os pretos, quer só o
boleeiro de papa
--O boleeiro não, acudi eu; fico com a sege e não hei de ir comprar outro.
-- Bem; fico com o Paulo e o Prudêncio.
--O Prudêncio está livre.
-- Livre?
-- Há dous anos.
-- Livre? Como seu pai arranjava estas cousas cá por casa, sem dar parte a ninguém! Está
direito. Quanto à prata. . . creio que não libertou a prata?
Tínhamos falado na prata, a velha prataria do tempo de D. José I, a porção mais grave da
herança, já pelo lavor, já pela vetustez, já pela origem da propriedade; dizia meu pai que o
Conde da Cunha, quando vice-rei do Brasil, a dera de presente a meu bisavô Luís Cubas.
-- Quanto à prata, continuou Cotrim, eu não faria questão nenhuma, se não fosse o desejo
que sua irmã tem de ficar com ela; e acho-lhe razão. Sabina é casada, e precisa de uma copa
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digna, apresentável. Voe é solteiro, não recebe, não...
--Mas posso casar.
--Para quê? interrompeu Sabina.
Era tão sublime esta pergunta, que por alguns instantes me fez esquecer os interesses. Sorri;
peguei na mão de Sabina, bati-lhe levemente na palma, tudo isso com tão boa sombra, que o
Cotrim interpretou o gesto como de aquiescência, e agradeceu-mo.
--Que é lá? redargüi; não cedi cousa nenhuma, nem cedo.
--Nem cede?
Abanei a cabeça.
--Deixa, Cotrim, disse minha irmã ao marido; vê se ele quer ficar também com a nossa
roupa do corpo; é só o que falta.
--Não falta mais nada. Quer a sege, quer o boleeiro, quer a prata, quer tudo. Olhe, é muito
mais sumário citar-nos a juízo e provar com testemunhas que Sabina não é sua irmã, que eu
não sou seu cunhado e que Deus não é Deus. Faça isto, e não perde nada, nem uma
colherinha. Ora, meu amigo, outro ofício!
Estava tão agastado, e eu não menos, que entendi oferecer um meio de conciliação; dividir a
prata. Riu-se e perguntou-me a quem caberia o bule e a quem o açucareiro; e depois desta
pergunta, declarou que teríamos tempo de liquidar a pretensão, quando menos em juízo.
Entretanto, Sabina fora até à janela que dava para a chácara,-- e depois de um instante,
voltou, e propôs ceder o Paulo e outro preto, com a condição de ficar com a prata; eu ia
dizer que não me convinha, mas Cotrim adiantou-se e disse a mesma cousa.
--Isso nunca! não faço esmolas! disse ele.
Jantamos tristes. Meu tio cônego apareceu à sobremesa, e ainda presenciou uma pequena
altercação.
--Meus filhos, disse ele, lembrem-se que meu irmão deixou um pão bem grande para ser
repartido por todos
Mas Cotrim:
--Creio, creio. A questão, porém, não é de pão, é de manteiga. Pão seco é que eu não engulo.
Fizeram-se finalmente as partilhas, mas nós estávamos brigados. E digo-lhes que, ainda
assim, custou-me muito a brigar com Sabina. Éramos tão amigos! Jogos pueris, fúrias de
criança, risos e tristezas da idade adulta, dividimos muita vez esse pão da alegria e da
miséria, irmãmente, como bons irmãos que éramos. Mas estávamos brigados. Tal qual a
beleza de Marcela, que se esvaiu com as bexigas.
CAPÍTULO XLVII / O RECLUSO
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MARCELA, Sabina, Virgília... aí estou eu a fundir todos os contrastes, como se esses
nomes e pessoas não fossem mais do que modos de ser da minha afeição interior. Pena de
maus costumes, ata uma gravata ao estilo, veste-lhe um colete menos sórdido; e depois sim,
depois vem comigo, entra nessa casa, estira-te nessa rede que me embalou a melhor parte
dos anos que decorreram desde o inventário de meu pai até 1842. Vem, se te cheirar a algum
aroma de toucador, não cuides que o mandei derramar para meu regalo; é um vestígio da N.
ou da Z. ou da U. -- que todas essas letras maiúsculas embalaram aí a sua elegante abjeção.
Mas, se além do aroma, quiseres outra cousa, fica-te com o desejo, porque eu não guardei
retratos, nem cartas, nem memórias, a mesma comoção esvaiu-se, e só me ficaram as letras
iniciais.
Vivi meio recluso, indo de longe em longe a algum baile, ou teatro, ou palestra, mas a maior
parte do tempo passei-a comigo mesmo Vivia, deixava-me ir ao curso e recurso dos
sucessos e dos dias, ora buliçoso, ora apático, entre a ambição e o desanimo. Escrevia
política e fazia literatura. Mandava artigos e versos para as folhas públicas, e cheguei a
alcançar certa reputação de polemista e de poeta Quando me lembrava do Lobo Neves, que
era já deputado, e de Virgília, futura marquesa, perguntava a mim mesmo por que não seria
melhor deputado e melhor marquês do que o Lobo Neves, eu, que valia mais, muito mais do
que ele, e dizia isto a olhar para a ponta do nariz...
CAPÍTULO XLVIII / UM PRIMO DE VIRGÍLIA
-- SABE QUEM CHEGOU ontem de São Paulo? perguntou-me uma noite Luís Dutra.
Luís Dutra era um primo de Virgília, que também privava com as musas. Os versos dele
agradavam e valiam mais do que os meus; mas ele tinha necessidade da sanção de alguns,
que lhe confirmasse o aplauso dos outros. Como fosse acanhado, não interroga a ninguém;
mas deleitava-se com ouvir alguma palavra de apreço; então criava novas forças e arremetia
juvenilmente ao trabalho.
Pobre Luís Dutra! Apenas publicava alguma cousa, corria à minha casa, e entrava a girar em
volta de mim, à espreita de um juízo, de uma palavra, de um gesto, que lhe aprovasse a
recente produção, eu falava-lhe de mil cousas diferentes, -- do último baile do Catete, da
discussão das câmaras de berlindas e cavalos, -- de tudo, menos dos seus versos ou prosas.
Ele respondia-me, a princípio com animação, depois mais frouxo, torcia a rédea da conversa
para o assunto dele, abria um livro, perguntava-me se tinha algum trabalho novo e eu
dizia-lhe que sim ou que não, mas torcia a rédea para o outro lado, e lá ia ele atrás de mim,
até que empacava de todo e saía triste. Minha intenção era fazê-lo duvidar de si mesmo,
desanimá-lo, eliminá-lo. E tudo isto a olhar para a ponta do nariz ...
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CAPÍTULO XLIX / A PONTA DO NARIZ
NARIZ, consciência sem remorsos, tu me valeste muito na vida... Já meditaste alguma vez
no destino do nariz, amado leitor? A explicação do Doutor Pangloss é que o nariz foi criado
para uso dos óculos, e tal explicação confesso que até certo tempo me pareceu definitiva;
mas veio um dia. em que, estando a ruminar esse e outros pontos obscuros de filosofia,
atinei com a única, verdadeira e definitiva explicação.
Com efeito, bastou-me atentar no costume do faquir. Sabe o leitor que o faquir gasta longas
horas a olhar para a ponta do nariz, com o fim único de ver a luz celeste. Quando ele finca
os olhos na ponta do nariz, perde e sentimento das cousas externas, embeleza-se no
invisível, aprende o impalpável, desvincula-se da Terra, dissolve-se, eteriza-se. Essa
sublimação do ser pela ponta do nariz é o fenômeno mais excelso do espírito, e a faculdade
de a obter não pertence ao faquir somente: é universal. Cada homem tem necessidade e
poder de contemplar o seu próprio nariz, para o fim de ver a luz celeste, e tal contemplação,
cujo efeito é a subordinação do universo a um nariz somente, constitui o equilíbrio das
sociedades. Se os narizes se contemplassem exclusivamente uns aos outros, o gênero
humano não chegaria a durar dous séculos: extinguia-se com as primeiras tribos.
Ouço daqui uma objeção do leitor: -- Como pode ser assim, diz ele se nunca jamais ninguém
não viu estarem os homens a contemplar o seu próprio nariz?
Leitor obtuso, isso prova que nunca entraste no cérebro de um chapeleiro. Um chapeleiro
passa por uma loja de chapéus; é a loja de um rival, que a abriu há dous anos; tinha então
duas portas, hoje tem quatro; promete ter seis a oito. Nas vidraças ostentam-se os chapéus
do rival; pelas portas entram os fregueses do rival; o chapeleiro compara aquela loja com a
sua, que é mais antiga e tem só duas portas, e aqueles chapéus com os seus, menos
buscados, ainda que de igual preço. Mortifica-se naturalmente; mas vai andando
concentrado, com os olhos para baixo ou para a frente, a indagar as causas da prosperidade
do outro e do seu próprio atraso, quando ele chapeleiro é muito melhor chapeleiro do que o
outro chapeleiro... Nesse instante é que os olhos se fixam na ponta do nariz.
A conclusão, portanto, é que há duas forças capitais: o amor, que multiplica a espécie, e o
nariz, que a subordina ao indivíduo. Procriação, equilíbrio.
CAPÍTULO L / VlRGÍLIA CASADA
-- QUEM CHEGOU de S. Paulo foi minha prima Virgília, casada com o Lobo Neves,
continuou Luís Dutra.
--Ah!
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E só hoje é que eu soube uma cousa, seu maganão.
--Que foi?
--Que você quis casar com ela.
-- Idéias de meu pai. Quem lhe disse isso?
-- Ela mesma. Falei-lhe muito em você, e ela então contou-me tudo.
No dia seguinte, estando na Rua do Ouvidor, à porta da tipografia do Plancher, vi assomar, a
distância uma mulher esplêndida. Era ela; só a reconheci a poucos passos, tão outra estava, a
tal ponto a natureza e a arte lhe haviam dando o último apuro. Cortejamo-nos; ela seguiu;
entrou com o marido na carruagem, que os esperava um pouco acima; fiquei atônito.
Oito dias depois encontrei-a num baile; creio que chegamos a trocar duas ou três palavras.
Mas noutro baile, dado daí a um mês, em casa de uma senhora, que ornara os salões do
primeiro reinado, e não desornava então os do segundo, a aproximação foi maior e mais
longa, porque conversamos e valsamos. A valsa é uma deliciosa cousa. Valsamos; não nego
que, ao conchegar ao meu corpo aquele corpo flexível e magnífico, tive uma singular
sensação, uma sensação de homem roubado.
Está muito calor, disse ela, logo que acabamos. Vamos ao terraço?
Não; pode constipar-se. Vamos a outra sala.
Na outra sala estava Lobo Neves, que me fez muitos cumprimentos, acerca dos meus
escritos políticos, acrescentando que nada dizia dos literários por não entender deles; mas os
políticos eram excelentes, bem pensados e bem escritos. Respondi-lhe com iguais esmeros
de cortesia, e separamo-nos contentes um do outro.
Cerca de três semanas depois recebi um convite dele para uma reunião íntima. Fui; Virgília
recebeu-me com esta graciosa palavra: -- O senhor hoje há de valsar comigo. Em verdade,
eu tinha fama e era valsista emérito; não admira que ela me preferisse. Valsamos uma vez, e
mais outra vez. Um livro perdeu Francesca; cá foi a valsa que nos perdeu. Creio que essa
noite apertei-lhe a mão com muita força, e ela deixou-a ficar, como esquecida, e eu a
abraçá-la fechada e todos com os olhos em nós, e nos outros que também se abraçavam e
giravam Um delírio.
CAPÍTULO LI / É MINHA!
"É MINHA!" disse eu comigo, logo que a passei a outro cavalheiro; e confesso que durante
o resto da noite, foi-se-me a idéia entranhando no espírito, não à força de martelo, mas de
verruma, que é mais insinuativa.
"É minha!" dizia eu ao chegar à porta de casa.
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Mas aí, como se o destino ou o acaso, ou o que quer que fosse lembrasse de dar algum passo
aos meus arroubos possessórios, luziu-me no chão uma cousa redonda e amarela.
Abaixei-me; era uma moeda de ouro, uma meia dobra.
"Ë minha!" repeti eu a rir-me, e meti-a no bolso.
Nessa noite não pensei mais na moeda; mas no dia seguinte, recordando o caso, senti uns
repelões da consciência, e uma voz que me perguntava por que diabo seria minha uma
moeda que eu não herdara nem ganhara, mas somente achara na rua. Evidentemente não era
minha; era de outro, daquele que a perdera, rico ou pobre, e talvez fosse pobre, algum
operário que não teria com que dar de comer à mulher e aos filhos; mas se fosse rico, o meu
dever ficava o mesmo. Cumpria restituir a moeda, e o melhor meio, o único meio, era
fazê-lo por intermédio de um anúncio ou da polícia. Enviei uma carta ao chefe de polícia,
remetendo-lhe o achado, e rogando-lhe que, pelos meios a seu alcance, fizesse devolvê-lo às
mãos do verdadeiro dono.
Mandei a carta e almocei tranqüilo, posso até dizer que jubiloso. Minha consciência valsara
tanto na véspera, que chegou a ficar sufocada, sem respiração; mas a restituição da meia
dobra foi uma janela que se abriu para o outro lado da moral; entrou uma onda de ar puro, e
a pobre dama respirou à larga. Ventilai as consciências! não vos digo mais nada. Todavia,
despido de quaisquer outras circunstâncias, o meu ato era bonito, porque exprimia um justo
escrúpulo, um sentimento de alma delicada. Era o que me dizia a minha dama interior, com
um modo austero e meigo a um tempo; é o que ela me dizia, reclinada ao peitoril da janela
aberta.
--Fizeste bem, Cubas; andaste perfeitamente. Este ar não é só puro, é balsâmico, é uma
transpiração dos eternos jardins. Queres ver o que fizeste, Cubas?
E a boa dama sacou um espelho e abriu-mo diante dos olhos. Vi, claramente vista, a meia
dobra da véspera, redonda, brilhante, multiplicando-se por si mesma, -- ser dez -- depois
trinta -- depois quinhentas, -- exprimindo assim o benefício que me daria na vida e na morte
o simples ato da restituição. E eu espraiava todo o meu ser na contemplação daquele ato,
revia-me nele, achava-me bom, talvez grande. Uma simples moeda, hem? Vejam o que é ter
valsado um poucochinho mais.
Assim eu, Brás Cubas, descobri uma lei sublime, a lei da equivalência das janelas, e
estabeleci que o modo de compensar uma janela fechada e abrir outra, a fim de que a moral
possa arejar continuamente a consciência. Talvez não entendas o que aí fica; talvez queiras
uma cousa mais concreta, um embrulho, por exemplo, um embrulho misterioso. Pois toma lá
o embrulho misterioso.
CAPÍTULO LII / O EMBRULHO MISTERIOSO
FOI O CASO que, alguns dias depois, indo eu a Botafogo, tropecei num embrulho, que
estava na praia. Não digo bem; houve menos tropeção que pontapé. Vendo um embrulho,
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pão grande, mas limpo e corretamente feito, atado com um barbante rijo, uma cousa que
parecia alguma cousa, lembrou-me bater-lhe com o pé, assim por experiência, e bati! e o
embrulho resistiu. Relanceei os olhos em volta de mim; a praia estava deserta; ao longe uns
meninos brincavam, -- um pescador curava as redes ainda mais longe, ninguém que pudesse
ver a minha ação; inclinei-me, apanhei o embrulho e segui.
Segui, mas não sem receio. Podia ser uma pulha de rapazes. Tive idéia de devolver o achado
à praia, mas apalpei-o e rejeitei a idéia. pouco adiante, desandei o caminho e guiei para casa.
--Vejamos, disse eu ao entrar no gabinete.
E hesitei um instante, creio que por vergonha; assaltou-me outra vez o receio da pulha. É
certo que não havia ali nenhuma testemunha externa; mas eu tinha dentro de mim mesmo
um garoto, que havia de assobiar, guinchar, grunhir, patear, apupar, cacarejar, fazer o diabo
se me visse abrir o embrulho e achar dentro uma dúzia de lenços velhos ou duas dúzias de
goiabas podres. Era tarde; a curiosidade estava aguçada, como deve estar a do leitor; desfiz
o embrulho, e vi... achei. . . contei. . . recontei nada menos de cinco contos de réis. Nada
menos. Talvez uns dez mil-réis mais. Cinco contos cm boas notas e moedas, tudo
asseadinho e arranjadinho, um achado raro. Embrulhei-as de novo. Ao jantar pareceu-me
que um dos moleques falara a outro com os olhos. Ter-me-iam espreitado? Interroguei-os
discretamente, e concluí que não. Sobre o jantar fui outra vez ao gabinete, examinei o
dinheiro, e ri-me dos meus cuidados maternais a respeito de cinco contos, eu, que era
abastado.
Para não pensar mais naquilo fui de noite à casa do Lobo Neves, que instara muito comigo
não deixasse de freqüentar as recepções da mulher. Lá encontrei o chefe de polícia; fui-lhe
apresentado; ele lembrou-se logo da carta e da meia dobra que eu lhe remetera alguns dias
antes. Aventou o caso; Virgília pareceu saborear o meu procedimento, e cada um dos
presentes acertou de contar uma anedota análoga, que eu ouvi com impaciência de mulher
histérica.
De noite, no dia seguinte, em toda aquela semana pensei o menos que pude nos cinco
contos, e até confesso que os deixei muito quietinhos na gaveta da secretária. Gostava de
falar de todas as cousas, menos de dinheiro, e principalmente de dinheiro achado; todavia
não era crime achar dinheiro, era uma felicidade, um bom acaso, era talvez um lance da
Providência. Não podia ser outra cousa. Não se perdem cinco contos, como se perde um
lenço de tabaco. Cinco contos levam-se com trinta mil sentidos, apalpam-se a miúdo, não se
lhes tiram os olhos de cima, nem as mãos, nem o pensamento, e para se perderem assim
tolamente, numa praia, é necessário que... Crime é que não podia ser o achado; nem crime,
nem desonra, nem nada que embaciasse o caráter de um homem. Era um achado, um acerto
feliz, como a sorte grande, como as apostas de cavalo, como os ganhos de um jogo honesto
e até direi que a minha felicidade era merecida, porque eu não me sentia mau, nem indigno
dos benefícios da Providência.
"Estes cinco contos, dizia eu comigo, três semanas depois, hei de empregá-los em alguma
ação boa, talvez um dote a alguma menina pobre, ou outra cousa assim... hei de ver..."
Nesse mesmo dia levei-os ao Banco do Brasil. Lá me receberam com muitas e delicadas
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alusões ao caso da meia dobra, cuja notícia andava já espalhada entre as pessoas do meu
conhecimento; respondi enfadado que a cousa não valia a pena de tamanho estrondo;
louvaram-me então a modéstia, e porque eu me encolerizasse, -- replicaram-me que era
simplesmente grande.
CAPÍTULO LIII / ...
VIRGÍLLA é que já se não lembrava da meia dobra; toda ela estava concentrada em mim,
nos meus olhos, na minha vida, no meu pensamento; -- era o que dizia, e era verdade.
Há umas plantas que nascem e crescem depressa; outras são tardias e pecas. O nosso amor
era daquelas; brotou com tal ímpeto e tanta seiva, que, dentro em pouco, era mais vasta,
folhuda e exuberante criatura dos bosques. Não lhes poderei dizer, ao certo, os dias que
durou esse crescimento. Lembra-me, sim, que, em certa noite, abotoou-se a flor, ou o beijo,
se assim lhe quiserem chamar, um beijo que ela me deu, trêmula,-- coitadinha,-- trêmula de
medo, porque era ao portão da chácara. Uniu-nos esse beijo único, -- breve como a ocasião,
ardente como o amor, prólogo de uma vida de delícias, de terrores, de remorsos, de prazeres
que rematavam em dor, de aflições que desabrochavam em alegria, -- uma hipocrisia
paciente e sistemática, único freio de uma paixão sem freio, -- vida de agitações, de cóleras,
de desesperos e de ciúmes, que uma hora pagava à farta e de sobra; mas outra hora vinha e
engolia aquela, como tudo mais, para deixar à tona as agitações e o resto, e o resto do resto,
que é o fastio e a saciedade: tal foi o livro daquele prólogo.
CAPÍTULO LIV / A PÊNDULA
SAÍ DALI a saborear o beijo. Não pude dormir; estirei-me na cama, é certo, mas foi o
mesmo que nada. Ouvi as horas todas da noite. Usualmente, quando eu perdia o sono, o
bater da pêndula fazia-me muito mal; esse tique-taque soturno, vagaroso e seco parecia dizer
a cada golpe que eu ia ter um instante menos de vida. Imaginava então um velho diabo,
sentado entre dous sacos, o da vida e o da morte, a tirar as moedas da vida para dá-las à
morte, e a contá-las assim:
Outra de menos. .
--Outra de menos...
--Outra de menos...
--Outra de menos...
--Outra de menos...
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O mais singular é que, se o relógio parava, eu dava-lhe corda, para que ele não deixasse de
bater nunca, e eu pudesse contar todos os meus instantes perdidos. Invenções há, que se
transformam ou acabam; as mesmas instituições morrem; o relógio é definitivo e perpetuo.
O derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, há de ter um relógio na algibeira,
para saber a hora exata em que morre.
Naquela noite não padeci essa triste sensação de enfado, mas outra e deleitosa. As fantasias
tumultuavam-me cá dentro, vinham umas sobre outras, à semelhança de devotas que se
abalroam para ver o anjo-cantor das procissões. Não ouvia os instantes perdidos, mas os
minutos ganhados. De certo tempo em diante não ouvi cousa nenhuma, porque o meu
pensamento, ardiloso e traquinas, saltou pela janela fora e bateu as asas na direção da casa
de Virgília. Aí achou no peitoril de uma janela o pensamento de Virgília, saudaram-se se e
ficaram de palestra. Nós a rolarmos na cama, talvez com frio, necessitados de repouso, e os
dous vadios ali postos, a repetirem o velho diálogo de Adão e Eva.
CAPÍTULO LV / O VELHO DIÁLOGO DE ADÃO E EVA
BRAS CUBAS ................................?
VIRGILLA ...............................
BRÁS CUBAS.........................................................................................................
VÍRGILIA.............................................!
BRAS CUBAS .................................
VIRGÍLIA......................................................................................................................?
........................................
BRÁS CUBAS.........................................................
VIRGÍLIA.......................................................
BRÁS CUBAS
..................................................................................................................................................
..................!....................................!....................
VIRGÍLIA.........................................................?
BRÁS CUBAS ....................................!
VIRGÍLIA ............................................!
CAPÍTULO LVI / O MOMENTO OPORTUNO
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MAS, COM A BRECA! quem me explicará a razão desta diferença? Um dia vimo-nos,
tratamos o casamento, desfizemo-lo e separamo-nos, a frio, sem dor, porque não houvera
paixão nenhuma; mordeu-me apenas algum despeito e nada mais. Correm anos, torno a
vê-la, damos três ou quatro giros de valsa, e eis-nos a amar um ao outro com delírio. A
beleza de Virgília chegara, é certo, a um alto grau de apuro, mas nós éramos
substancialmente os mesmos, e eu, à minha parte, não me tornara mais bonito nem mais
elegante. Quem me explicará a razão dessa diferença?
A razão não podia ser outra senão o momento oportuno. Não era oportuno o primeiro
momento, porque, se nenhum de nós estava verde para o amor, ambos o estávamos para o
nosso amor: distinção fundamental. Não há amor possível sem a oportunidade dos sujeitos.
Esta explicação achei-a eu mesmo, dous anos depois do beijo, um dia em que Virgília se me
queixava de um pintalegrete que lá ia e tenazmente a galanteava.
--Que importuno! dizia ela fazendo uma careta de raiva. Estremeci, fitei-a, vi que a
indignação era sincera; então ocorreu-me que talvez eu tivesse provocado alguma vez
aquela mesma careta, e compreendi logo toda a grandeza da minha evolução. Tinha vindo
de importuno a oportuno.
CAPÍTULO LVII / DESTINO
SIM, SENHOR, amávamos. Agora, que todas as leis sociais no-lo impediam, agora é que
nos amávamos deveras. Achávamo-nos jungidos um ao outro, como as duas almas que o
poeta encontrou no Purgatório:
Di pari, come buoi, che vanno a giogo;
e digo mal, comparando-nos a bois, porque nós éramos outra espécie de animal menos tardo,
mais velhaco e lascivo. Eis-nos a caminhar sem saber até onde, nem por que estradas
escusas; problema que me assustou, durante algumas semanas, mas cuja solução entreguei
ao destino. Pobre Destino! Onde andarás agora, grande procurador dos negócios humanos?
Talvez estejas a criar pele nova, outra cara, outras maneiras, outro nome, e não é impossível
que. . . Já me não lembra onde estava... Ah! nas estradas escusas. Disse eu comigo que já
agora seria o que Deus quisesse. Era a nossa sorte amar-nos; se assim não fora, como
explicaríamos a valsa e o resto? Virgília pensava a mesma cousa. Um dia, depois de me
confessar que tinha momentos de remorsos, como eu lhe dissesse que, se tinha remorsos, é
porque me não tinha amor, Virgília cingiu-me com os seus magníficos braços, murmurando:
--Amo-te, é a vontade do Céu.
E esta palavra não vinha à toa; Virgília era um pouco religiosa. Não ouvia missa aos
domingos, é verdade, e creio até que só ia às igrejas em dia de festa, e quando havia lugar
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vago em alguma tribuna. Mas rezava todas as noites, com fervor, ou, pelo menos, com sono.
Tinha medo às trovoadas; nessas ocasiões, tapava os ouvidos, e resmoneava todas as orações
do catecismo. Na alcova dela havia um oratoriozinho de jacarandá, obra de talha, de três
palmos de altura, com três imagens dentro; mas não falava dele às amigas; Ao contrário,
tachava de beatas as que eram só religiosas. Algum tempo desconfiei que havia nela certo
vexame de crer, e que a sua religião era uma espécie de camisa de flanela, preservativa e
clandestina; mas evidentemente era engano meu.
CAPÍTULO LVIII / CONFIDÊNCIA
LOBO NEVES, a princípio, metia-me grandes sustos. Pura ilusão! Como adorasse a mulher,
não se vexava de mo dizer muitas vezes; achava que Virgília era a perfeição mesma, um
conjunto de qualidades sólidas e finas amorável, elegante, austera, um modelo. E a
confiança não parava aí. De fresta que era, chegou a porta escancarada. Um dia
confessou-me que trazia uma triste carcoma na existência; faltava-lhe a glória pública.
Animei-o; disse-lhe muitas cousas bonitas, que ele ouviu com aquela unção religiosa de um
desejo que não quer acabar de morrer; então compreendi que a ambição dele andava cansada
de bater as asas; sem poder abrir o vôo. Dias depois disse-me todos os seus tédios e
desfalecimentos, as amarguras engolidas, as raivas sopitadas; contou-me que a vida política
era um tecido de invejas, despeitos, intrigas, perfídias, interesses, vaidades. Evidentemente
havia aí uma crise de melancolia; tratei de combate-la
--Sei o que lhe digo, replicou-me com tristeza. Não pode imaginar o que tenho passado.
Entrei na política por gosto, por família, por ambição, e um pouco por vaidade. Já vê que
reuni em mim só todos os motivos que levam o homem à vida pública; faltou-me só o
interesse de outra natureza Vira o teatro pelo lado da platéia; e, palavra, que era bonito!
Soberbo cenário, vida, movimento e graça na representação. Escriturei-me; deram-me um
papel que... Mas para que o estou a fatigar com isto? Deixe-me ficar com as minhas
amofinações. Creia que tenho passado horas e dias... Não há constância de sentimentos, não
há gratidão, não há nada... nada.... nada...
Calou-se, profundamente abatido, com os olhos no ar, parecendo não ouvir cousa nenhuma,
a não ser o eco de seus próprios pensamentos. Após alguns instantes, ergueu-se e
estendeu-me a mão:-- O senhor há de rir-se de mim, disse ele; mas desculpe aquele
desabafo; tinha um negócio, que me mordia o espírito. E ria, de um jeito sombrio e triste;
depois pediu-me que não referisse a ninguém o que se passara entre nós; ponderei-lhe que a
rigor não se passara nada. Entraram dous deputados e um chefe político da paróquia. Lobo
Neves recebeu-os com alegria, a princípio um tanto postiça mas logo depois natural. No fim
de meia hora, ninguém diria que ele não era o mais afortunado dos homens; conversava,
chasqueava! e ria, e riam todos.
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CAPÍTULO LIX / UM ENCONTRO
DEVE SER um vinho enérgico a política, dizia eu comigo, ao sair da casa de Lobo Neves; e
fui andando, fui andando, até que na Rua dos Barbonos vi uma sege, e dentro um dos
ministros, meu antigo companheiro de colégio. Cortejamo-nos afetuosamente, a sege seguiu,
e eu fui andando... andando... andando...
"Por que não serei eu ministro?"
Esta idéia, rútila e grande,--trajada ao bizarro, como diria o Padre Bernardes,--esta idéia
começou uma vertigem de cabriolas e eu deixei-me estar com os olhos nela, a achar-lhe
graça. Não pensei mais na tristeza de Lobo Neves; sentia a atração do abismo. Recordei
aquele companheiro de colégio, as correrias nos morros, as alegrias e travessuras, e
comparei o menino com o homem, e perguntei a mim mesmo por que não seria eu como ele.
Entrava então no Passeio Público, e tudo me parecia dizer a mesma cousa. -- Por que não
serás ministro, Cubas? -- Cubas, por que não serás ministro de Estado? Ao ouvi-lo, uma
deliciosa sensação me refrescava todo o organismo. Entrei, fui sentar-me num banco, a
remoer aquela idéia. E Virgília que havia de gostar! Alguns minutos depois vejo
encaminhar-se para mim uma cara, que não me pareceu desconhecida. Conhecia-a, fosse
donde fosse.
Imaginem um homem de trinta e oito a quarenta anos, alto, magro e pálido. As roupas, salvo
o feitio, pareciam ter escapado ao cativeiro de Babilônia; o chapéu era contemporâneo do de
Gessler. Imaginem agora uma sobrecasaca, mais larga do que pediam as carnes, --ou,
literalmente, os ossos da pessoa; a cor preta ia cedendo o passo a um amarelo sem brilho; o
pêlo desaparecia aos poucos; dos oito primitivos botões restavam três. As calças, de brim
pardo, tinham duas fortes joelheiras,- enquanto as bainhas eram roídas pelo tacão de um
botim sem misericórdia nem graxa. Ao pescoço flutuavam as pontas de uma gravata de duas
cores, ambas desmaiadas, apertando um colarinho de oito dias. Creio que trazia também
colete, um colete de seda escura, roto a espaços, e desabotoado.
-- Aposto que me não conhece, Sr. Dr. Cubas? disse ele.
--Não me lembra...
-- Sou o Borba, o Quincas Borba.
Recuei espantado. . Quem me dera agora o verbo solene de um Bossuet ou de Vieira, para
contar tamanha desolação! Era o Quincas Borba, o gracioso menino de outro tempo, o meu
companheiro de colégio, tão inteligente e agastado. Quincas Borba! Não; impossível; não
pode ser. Não podia acabar de crer que essa figura esquálida, essa barba pintada de branco,
esse maltrapilho avelhentado, que toda essa ruína fosse o Quincas Borba. Mas era. Os olhos
tinham um resto da expressão de outro tempo, e o sorriso não perdera certo ar escarninho,
que lhe era peculiar. Entretanto, ele suportava com firmeza o meu espanto. No fim de algum
tempo arredei os olhos; se a figura repelia, a comparação acabrunhava.
--Não é preciso contar-lhe nada, disse ele enfim; o senhor adivinha tudo. Uma vida de
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misérias, de atribulações e de lutas. Lembra-se das nossas festas, em que eu figurava de rei?
Que trambolhão! Acabo mendigo. . .
E alçando a mão direita e os ombros, com um ar de indiferença, parecia resignado aos
golpes da fortuna, e não sei até se contente. Talvez contente. Com certeza, impassível. Não
havia nele á resignação cristã, nem a conformidade filosófica. Parece que a miséria lhe
calejara a alma, a ponto de lhe tirar a sensação de lama. Arrastava os andrajos, como outrora
a púrpura: com certa graça indolente.
--Procure-me, disse eu, poderei arranjar-lhe alguma cousa.
Um sorriso magnífico lhe abriu os lábios. --Não é o primeiro que me promete alguma cousa,
replicou, e não sei se será o último que não me fará nada. E para quê? Eu nada peço, a não
ser dinheiro; dinheiro sim, porque é necessário comer, e as casas de pasto não fiam. Nem as
quitandeiras. Uma cousa de nada, uns dous vinténs de angu, nem isso fiam as malditas
quitandeiras... Um inferno, meu... ia dizer meu amigo... Um inferno! o diabo! todos os
diabos! Olhe, ainda hoje não almocei.
--Não?
--Não; saí muito cedo de casa. Sabe onde moro? No terceiro degrau das escadas de S.
Francisco, à esquerda de quem sobe; não precisa bater na porta. Casa fresca, extremamente
fresca. Pois saí cedo, e ainda não comi...Tirei a carteira, escolhi uma nota de cinco mil-réis,
-- a menos limpa,-- e dei-lha. Ele recebeu-ma com os olhos cintilantes de cobiça. Levantou a
nota ao ar, e agitou-a entusiasmado.
-- In hoc signo vinces! bradou.
E depois beijou-a, com muitos ademanes de ternura, e tão ruidosa expansão, que me
produziu um sentimento misto de nojo e lástima. Ele, que era arguto, entendeu-me; ficou
sério, grotescamente sério e pediu-me desculpa da alegria, dizendo que era alegria de pobre
que não via, desde muitos anos, uma nota de cinco mil-réis.
--Pois está em suas mãos ver outras muitas, disse eu.
--Sim? acudiu ele, dando um bote para mim.
--Trabalhando, concluí eu.
Fez um gesto de desdém; calou-se alguns instantes; depois disse-me positivamente que não
queria trabalhar. Eu estava enjoado dessa abjeção tão cômica e tão triste, e preparei-me para
sair.
--Não vá sem eu lhe ensinar a minha filosofia da miséria, disse ele, escarranchando-se diante
de mim.
CAPÍTULO LX / O ABRAÇO
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CUIDEI que o pobre-diabo estivesse doudo, e ia afastar-me, quando ele me pegou no pulso,
e olhou alguns instantes para o brilhante que eu trazia no dedo. Senti-lhe na mão uns
estremeções de cobiça, uns pruridos de posse.
-- Magnífico! disse ele.
Depois começou a andar à roda de mim e a examinar-me muito.
-- O senhor trata-se, disse ele. Jóias, roupa fina, elegante e.. Compare esses sapatos aos
meus; que diferença! Pudera não! Digo-lhe que se trata. E moças? Como vão elas? Está
casado?
Não . . .
-- Nem eu.
-- Moro na rua...
-- Não quero saber onde mora, atalhou Quincas Borba. Se alguma vez nos virmos, dê-me
outra nota de cinco mil-réis; mas permita-me que não a vá buscar à sua casa. É uma espécie
de orgulho... Agora, adeus; vejo que está impaciente.
-- Adeus!
-- E obrigado. Deixa-me agradecer-lhe de mais perto?
E dizendo isto abraçou-me com tal ímpeto, que não pude evitá-lo. Separamo-nos finalmente,
eu a passo largo, com a camisa amarrotada do abraço, enfadado e triste. Já não dominava em
mim a parte simpática da sensação, mas a outra. Quisera ver-lhe a miséria digna. Contudo,
não pude deixar de comparar outra vez o homem de agora com o de outrora, entristecer-me
e encarar o abismo que separa as esperanças de um tempo da realidade de outro tempo...
"Ora adeus! Vamos jantar", disse comigo.
Meto a mão no colete e não acho o relógio. Última desilusão! O Borba furtara-mo no
abraço.
CAPÍTULO LXI / UM PROJETO
JANTEI TRISTE. Não era a falta do relógio que me pungia, era a imagem do autor do furto,
e as reminiscências de criança, e outra vez a comparação, e a conclusão. . . Desde a sopa,
começou a abrir em mim a flor amarela e mórbida do capítulo XXV, e então jantei depressa,
para correr à casa de Virgínia. Virgínia era o presente; eu queria refugiar-me nele, para
escapar às opressões do passado, pôr que o encontro do Quicas Borba, tornara-me aos olhos
o passado, não qual fora deveras, mas um passado roto, abjeto, mendigo e gatuno.
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Saí de casa, mas era cedo; iria achá-los à mesa. Outra vez pensei no Quincas Borba, e tive
então um desejo de tornar ao Passeio Público, a ver se o achava; a idéia de o regenerar
surgiu-me como uma forte necessidade. Fui; mas já não o achei. Indaguei do guarda;
disse-me que efetivamente "esse sujeito" ia por ali às vezes.
--A que horas?
--Não tem hora certa.
Não era impossível encontrá-lo noutra ocasião; prometi a mim mesmo lá voltar. A
necessidade de o regenerar, de o trazer ao trabalho e ao respeito de sua pessoa enchia-me o
coração; eu começava a sentir um bem-estar, uma elevação, uma admiração de mim
próprio... Nisto caía a noite; fui ter com Virgília.
CAPÍTULO LXII / O TRAVESSElRO
FUI TER com Virgília; depressa esqueci o Quincas Borba. Virgília era o travesseiro do meu
espírito, um travesseiro mole, tépido, aromático, enfronhado em cambraia e bruxelas. Era ali
que ele costumava repousar de todas as sensações más, simplesmente enfadonhas, ou até
dolorosas. E, bem pesadas as cousas, não era outra a razão da existência de Virgília; não
podia ser. Cinco minutos bastaram para olvidar inteiramente o Quincas Borba; cinco
minutos de uma contemplação mútua, com as mãos presas umas nas outras; cinco minutos e
um beijo. E lá se foi a lembrança do Quincas Borba. . . Escrófula da vida, andrajo do
passado, que me importa que existas, que molestes os olhos dos outros, se eu tenho dous
palmos de um travesseiro divino, para fechar os olhos e dormir?
CAPÍTULO LXIII / FUJAMOS!
AI! NEM SEMPRE dormir. Três semanas depois, indo à casa de Virgília, eram quatro horas
da tarde, -- achei-a triste e abatida. Não me quis dizer o que era; mas, como eu instasse
muito:
--Creio que o Damião desconfia alguma cousa. Noto agora umas esquisitices nele... Não sei.
Trata-me bem, não há dúvida; mas o olhar parece que não é o mesmo. Durmo mal; ainda
esta noite acordei, aterrada; estava sonhando que ele me ia matar. Talvez seja ilusão, mas eu
penso que ele desconfia...
Tranqüilizei-a como pude; disse que podiam ser cuidados políticos. Virgília concordou que
seriam, mas ficou ainda muito excitada e nervosa. Estávamos na sala de visitas, que dava
justamente para a chácara, onde trocáramos o beijo inicial. Uma janela aberta deixava entrar
o vento, que sacudia frouxamente as cortinas, e eu fiquei a olhar para as cortinas, sem as ver.
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Empunhara o binóculo da imaginação; lobrigava, ao longe, uma casa nossa, uma vida
nossa? um mundo nosso, em que não havia Lobo Neves, nem casamento, nem moral, nem
nenhum outro liame, que nos tolhesse a expansão da vontade. Esta idéia embriagou-me;
eliminados assim o mundo, a moral e o marido, bastava penetrar naquela habitação dos
anjos.
-- Virgília, disse eu, proponho-te uma cousa.
-- Que é?
-- Amas-me?
--Oh! suspirou ela, cingindo-me os braços ao pescoço.
Virgília amava-me com fúria; aquela resposta era a verdade patente. Com os braços ao meu
pescoço, calada, respirando muito deixou-se ficar a olhar para mim, com os seus grandes e
belos olhos, que davam uma sensação singular de luz úmida; eu deixei-me estar a vê-los, a
namorar-lhe a boca, fresca como a madrugada, e insaciável como a morte. A beleza de
Virgília tinha agora um tom grandioso, que não possuíra antes de casar. Era dessas figuras
talhadas um pentélico, de um lavor nobre, rasgado e puro, tranqüilamente bela, como as
estátuas, mas não apática nem fria. Ao contrário, tinha o aspecto das naturezas cálidas, e
podia-se dizer que, na realidade, resumia todo o amor. Resumia-o sobretudo naquela ocasião
em que exprimia mudamente tudo quanto pode dizer a pupila humana. Mas o tempo urgia;
deslacei-lhe as mãos, peguei-lhe nos pulsos, e, fito nela, perguntei se tinha coragem.
-- De quê?
-- De fugir. Iremos para onde nos for mais cômodo, casa grande ou pequena, à tua vontade,
na roça ou na cidade, ou na Europa, onde te parecer, onde ninguém nos aborreça, e não haja
perigos para ti, onde vivamos um para o outro... Sim? Fujamos. Tarde ou cedo, ele pode
descobrir alguma cousa, e estarás perdida...ouves? perdida... morta... e ele também, porque
eu o matarei, juro-te.
Interrompi-me; Virgília empalidecera muito, deixou cair os braços e sentou-se no canapé.
Esteve assim alguns instantes, sem me dizer palavra, não sei se vacilante na escolha, se
aterrada com a idéia da descoberta e da morte. Fui-me a ela, insisti na proposta, todas as
vantagens de uma vida a sós, sem zelos, nem terrores, nem aflições. Virgília ouvia-me
calada; depois disse:
--Não escaparíamos talvez; ele iria ter comigo e matava do mesmo modo.
Mostrei-lhe que não. O mundo era assaz vasto, e eu tinha os meios de viver onde quer que
houvesse ar puro e muito sol; ele não chegaria até lá; só as grandes paixões são capazes de
grandes ações, e ele não a amava tanto que pudesse ir buscá-la, se ela estivesse longe.
Virgília fez um gesto de espanto e quase indignação; murmurou que o marido gostava muito
dela.
--Pode ser, respondi eu; pode ser que sim...
Fui até a janela, e comecei a rufar com os dedos no peitoril. Virgília chamou-me; deixei-me
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estar, a remoer os meus zelos, a desejar estrangular o marido, se o tivesse ali à mão...
Justamente, nesse instante apareceu na chácara o Lobo Neves. Não tremas assim, leitora
pálida; descansa, que não hei de rubricar esta lauda com um pingo de sangue. Logo que
apareceu na chácara, fiz-lhe um gesto amigo, acompanhado de uma palavra graciosa;
Virgília retirou-se apressadamente da sala, onde ele entrou daí a três minutos.
--Está cá há muito tempo? disse-me ele.
--Não.
Entrara sério, pesado, derramando os olhos de um modo distraído, costume seu, que trocou
logo por uma verdadeira expansão de jovialidade, quando viu chegar o filho, o Nhonhô, o
futuro bacharel do capítulo VI, tomou-o nos braços, levantou-o ao ar, beijou-o muitas vezes.
Eu, que tinha ódio ao menino, afastei-me de ambos. Virgília tornou à sala.
--Ah! Respirou Lobo Neves, sentando-se preguiçosamente no sofá.
--Cansado? perguntei eu.
--Muito; aturei duas maçadas de primeira ordem, uma na câmara e outra na rua. E ainda
temos terceira, acrescentou, olhando para a mulher.
--Que é? perguntou Virgília.
--Um. . . Adivinha!
Virgília sentara-se ao lado dele, pegou-lhe numa das mãos, compôs-lhe a gravata, e tornou a
perguntar o que era.
--Nada menos que um camarote.
--Para a Candiani?
--Para a Candiani.
Virgília bateu palmas, levantou-se, deu um beijo no filho, com um ar de alegria pueril, que
destoava muito da figura; depois perguntou se o camarote era de boca ou do centro,
consultou o marido, em voz baixa, acerca da toilette que faria, da ópera que se cantava, e de
não sei que outras cousas.
--Você janta conosco, doutor, disse-me Lobo Neves.
--Veio para isso mesmo, confirmou a mulher; diz que você possui o melhor vinho do Rio de
Janeiro.
--Nem por isso bebe muito.
Ao jantar, desmenti-o; bebi mais do que costumava; ainda assim, menos do que era preciso
para perder a razão. Já estava excitado, fiquei um pouco mais. Era a primeira grande cólera
que eu sentia contra Virgília. Não olhei uma só vez para ela durante o jantar; falei de
política, da imprensa, do ministério, creio que falaria de teologia, se a soubesse, ou se me
lembrasse. Lobo Neves acompanhava-me com muita placidez e dignidade, e até com certa
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benevolência superior; e tudo aquilo me irritava também, e me tornava mais amargo e longo
o jantar. Despedi-me apenas nos levantamos da mesa.
--Até logo, não? perguntou Lobo Neves.
--Pode ser.
E saí.
CAPÍ TULO LXIV / A TRANSAÇÃO
VAGUEI PELAS RUAS e recolhi-me às nove horas. Não podendo dormir, atirei-me a ler e
escrever. Às onze horas estava arrependido de não ter ido ao teatro, consultei o relógio, quis
vestir-me, e sair. Julguei porém, que chegaria tarde; demais, era dar prova de fraqueza.
Evidentemente, Virgília começava a aborrecer-se de mim, pensava eu. E esta idéia fez-me
sucessivamente desesperado e frio, disposto a esquecê-la e a matá-la. Via-a dali mesmo,
reclinada no camarote, com os seus magníficos braços nus,-- os braços que eram meus, só
meus,-- fascinando os olhos de todos com o vestido soberbo que havia de ter, o colo de leite,
os cabelos postos em bandós à maneira do tempo, e os brilhantes, menos luzidios que os
olhos dela... Via-a assim, e doía-me que a vissem outros. Depois, começava a despi-la, a por
de lado as jóias e sedas, a despenteá-la com as minhas mãos sôfregas e lascivas, a torná-la,--
não sei se mais bela, se mais natural, a torná-la minha, somente minha, única mente minha.
No dia seguinte, não me pude ter; fui cedo à casa de Virgília; achei-a com os olhos
vermelhos de chorar.
--Que houve? perguntei.
-- Você não me ama, foi a sua resposta; nunca me teve a menor soma de amor. Tratou-me
ontem como se me tivesse ódio. Se eu ao menos soubesse o que é que fiz! Mas não sei. Não
me dirá o que foi?
--Que foi o quê? Creio que não houve nada.
-- Nada? Tratou-me como não se trata um cachorro...
A esta palavra, peguei-lhe nas mãos, beijei-as, e duas lágrimas rebentaram-lhe dos olhos.
-- Acabou, acabou, disse eu.
Não tive ânimo de argüir, e, aliás, argüi-la de quê? Não era culpa dela se o marido a amava.
Disse-lhe que não me fizera cousa nenhuma, que eu tinha necessariamente ciúmes do outro,
que nem sempre o podia suportar de cara alegre; acrescentei que talvez houvesse nele muita
dissimulação, e que o melhor meio de fechar a porta aos sustos e às dissensões era aceitar a
minha idéia da véspera.
--Pensei nisso, acudiu Virgília; uma casinha só nossa, solitária, metida num jardim, em
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alguma rua escondida, não é? Acho a idéia boa; mas para que fugir?
Disse isto com o tom ingênuo e preguiçoso de quem não cuida em mal, e o sorriso que lhe
derreava os cantos da boca trazia a mesma expressão de candidez. Então, afastando-me,
respondi:
--Você é que nunca me teve amor.
--Eu?
-- Sim, é uma egoísta! prefere ver-me padecer todos os dias...é uma egoísta sem nome!
Virgília desatou a chorar, e para não atrair gente, metia o lenço na boca, recalcava os
soluços; explosão que me desconcertou. Se alguém a ouvisse, perdia-se tudo. Inclinei-me
para ela, travei-lhe dos pulsos, sussurrei-lhe os nomes mais doces da nossa intimidademostrei-
lhe o perigo; o terror apaziguou-a.
-- Não posso, disse ela daí a alguns instantes; não deixo meu filho, se o levar, estou certa de
que ele me irá buscar ao fim do mundo. Não posso; mate-me você, se o quiser, ou deixe-me
morrer... Ah! meu Deus! meu Deus!
-- Sossegue; olhe que podem ouvi-la.
-- Que ouçam! Não me importa.
Estava ainda excitada; pedi-lhe que esquecesse tudo, que me perdoasse, que eu era um
doudo, mas que a minha insânia provinha dela e com ela acabaria. Virgília enxugou os olhos
e estendeu-me a mão. Sorrimos ambos; minutos depois, tornávamos ao assunto da casinha
solitária, em alguma rua escusa...
CAPÍTULO LXV / OLHEIROS E ESCUTAS
INTERROMPEU-NOS o rumor de um carro na chácara. Veio um escravo dizer que era a
baronesa X. Virgília consultou-me com os olhos.
--Se a senhora está assim com dor de cabeça, disse eu, parece que o melhor é não receber.
--Já se apeou? perguntou Virgília ao escravo.
--Já se apeou; diz que precisa muito de falar com sinhá!
--Que entre!
A baronesa entrou daí a pouco. Não sei se contava comigo na sala; mas era impossível
mostrar maior alvoroço.
--Bons olhos o vejam! exclamou. Onde se mete o senhor que não aparece em parte
nenhuma? Pois olhe, ontem admirou-me não o ver no teatro. A Candiani esteve deliciosa.
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Que mulher! Gosta da Candiani? É natural. Os senhores são todos os mesmos. O barão dizia
ontem, no camarote, que uma só italiana vale por cinco brasileiras. Que desaforo! e desaforo
de velho, que é pior. Mas por que é que o senhor não foi ontem ao teatro?
--Uma enxaqueca.
--Qual! Algum namoro; não acha, Virgília? Pois, meu amigo, apresse-se, porque o senhor
deve estar com quarenta anos... ou perto disso. .. Não tem quarenta anos?
--Não lhe posso dizer com certeza, respondi eu -- mas se me dá licença, vou consultar a
certidão de batismo.
--Já, vá... E estendendo-me a mão: Até quando? Sábado ficamos em casa; o barão está com
umas saudades suas...
Chegando à rua, arrependi-me de ter saído. A baronesa era uma das pessoas que mais
desconfiavam de nós. Cinqüenta e cinco anos que pareciam quarenta, macia, risonha,
vestígios de beleza, porte elegante e maneiras finas. Não falava muito nem sempre; possuía
a grande arte de escutar os outros, espiando-os; reclinava-se então na cadeira,
desembainhava um olhar afiado e comprido, e deixava-se estar. 0s outros, não sabendo o
que era, falavam, olhavam, gesticulavam, ao tempo que ela olhava só, ora fixa, ora móbil,
levando a astúcia ao ponto de olhar às vezes para dentro de si, porque deixava cair as
pálpebras; mas, como as pestanas eram rótulas, o olhar continuava o seu ofício, remexendo a
alma e a vida dos outros.
A segunda pessoa era um parente de Virgília, o Viegas, um cangalho de setenta invernos,
chupado e amarelado, que padecia de um reumatismo teimoso, de uma asma não menos
teimosa e de uma lesão de coração: era um hospital concentrado. Os olhos porém luziam de
muita vida e saúde. Virgília, nas primeiras semanas, lhe tinha medo nenhum; dizia-me que,
quando o Viegas parecia espreitar, com o olhar fixo, estava simplesmente contando
dinheiro. Com efeito, era um grande avaro.
Havia ainda o primo de Virgínia, o Luis Dutra, que eu agora desarmava à força de lhe falar
nos versos e prosas, e de o apresentar aos conhecidos. Quando estes, ligando o nome à
pessoa, se mostravam contentes da apresentação, não há dúvida que Luís Dutra exultava de
felicidade; mas eu curava-me da felicidade com a esperança de que ele nos não denunciasse
nunca. Havia, enfim, umas duas ou três senhoras, vários gamenhos, e os fâmulos, que
naturalmente se desforravam assim da condição servil, e tudo isso constituía uma verdadeira
floresta de olheiros e escutas, por entre os quais tínhamos de resvalar com a tática e maciez
das cobras.
CAPÍTULO LXVI / AS PERNAS
ORA, ENQUANTO EU pensava naquela gente, iam-me pernas levando, ruas abaixo, de
modo que insensivelmente me achei à porta do Hotel Pharous. De costume jantava aí; mas,
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não tendo deliberadamente andado, nenhum merecimento da ação me cabe, e sim às pernas
que a fizeram. Abençoadas pernas! E há quem vos trate com desdém ou indiferença. Eu
mesmo, até então, tinha-vos em má conta, zangava-me quando vos fatigáveis, quando não
podíeis ir além de certo ponto, e me deixáveis com o desejo a avoaçar, à semelhança de
galinha atada pelos pés.
Aquele caso, porém, foi um raio de luz. Sim, pernas amigas, vós deixastes à minha cabeça o
trabalho de pensar em Virgília, e dissestes uma à outra: Ele precisa comer, são horas de
jantar, vamos levá-lo ao Pharous; dividamos a consciência dele, uma parte fique lá com a
dama, tomemos nós a outra, para que ele vá direito, não: abalroe as gentes e as carroças, tire
o chapéu aos conhecidos, e finalmente chegue são e salvo ao hotel. E cumpristes à risca o
vosso propósito, amáveis pernas, o que me obriga a imortalizar-vos nesta página.
CAPÍTULO LXVII / A CASINHA
JANTEI E FUI a casa. Lá achei uma caixa de charutos, que me mandara o Lobo Neves,
embrulhada em papel de seda, e ornada de fitinhas cor-de-rosa. Entendi, abri-a, e tirei este
bilhete:
Meu B...
Desconfiam de nós; tudo está perdido; esqueça-me para sempre. Não nos veremos mais.
Adeus; esqueça-se da infeliz
Foi um golpe esta carta; não obstante, apenas fechou a noite, corri à casa de Virgília. Era
tempo; estava arrependida. Ao vão de uma janela, contou-me o que se passara com a
baronesa. A baronesa disse-lhe francamente que se falara muito, no teatro, na noite anterior,
a propósito da minha ausência do camarote do Lobo Neves; tinham comentado as minhas
relações na casa;- em suma, éramos objeto da suspeita pública. Concluiu dizendo que não
sabia que o fazer.
-- O melhor é fugirmos, insinuei.
-- Nunca, respondeu ela abanando a cabeça.
Vi que era impossível separar duas cousas que no espírito dela estavam inteiramente ligadas:
o nosso amor e a consideração pública. Virgília era capaz de iguais e grandes sacrifícios
para conservar ambas as vantagens, e a fuga só lhe deixava uma. Talvez senti alguma cousa
semelhante a despeito; mas as comoções daqueles dous dias eram já muitas, e o despeito
morreu depressa. Vá lá; arranjemos a casinha.
Com efeito, achei-a, dias depois, expressamente feita, em um recanto da Gamboa. Um
brinco! Nova, caiada de fresco, com quatro janelas na frente e duas de cada lado, todas com
venezianas cor de tijolo, -- trepadeira nos cantos, jardim na frente; mistério e solidão. Um
brinco!
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Convencionamos que iria morar ali uma mulher, conhecida de Virgília, em cuja casa fora
costureira e agregada. Virgília exercia sobre ela verdadeira fascinação. Não se lhe diria tudo;
ela aceitaria facilmente o resto.
Para mim era aquilo uma situação nova do nosso amor, uma aparência de posse exclusiva,
de domicilio absoluto, alguma cousa que me faria adormecer a consciência e resguardar o
decoro. Já estava cansado das cortinas do outro, das cadeiras, do tapete, do anapé, de todas
essas cousas, que me traziam aos olhos constantemente a nossa duplicidade. Agora podia
evitar os jantares freqüentes o chá de todas as noites, enfim a presença do filho deles, meu
cúmplice e meu inimigo. A casa resgatava-me tudo; o mundo vulgar terminaria à porta; dali
para dentro era o infinito, um mundo eterno, superior, excepcional, nosso, somente nosso,
sem leis, sem instituições, sem baronesas, sem olheiros, sem escutas, -- um só mundo, um só
casal, uma só vida, uma só vontade, uma só afeição, -- a unidade moral de todas as cousas
pela exclusão das que me eram contrárias.
CAPÍTULO LXVIII / O VERGALHO
TAIS ERAM as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de
ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na
praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: -- "Não, perdão
meu senhor; meu senhor, perdão!" Mas o primeiro não fazia cada súplica, respondia com
uma vergalhada nova.
-- Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
-- Meu senhor! gemia o outro.
Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o do verganho? Nada menos que o meu
moleque Prudêncio, o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se
logo e pedir e a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.
-- É sim, nhonhô.
-- Fez-te alguma cousa?
-- É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia
lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.
-- Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
-- Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa,
Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas. Segui caminho, a
desfiar uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria
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matéria para um bom capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco.
Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que meti mais
dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo
que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, » transmitindo-as a outro. Eu,
em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca e desancava-o sem compaixão; ele
gemia e sofria. Agora, porem, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas,
podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se
desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim
recebera. Vejam as subtilezas do maroto!
CAPÍTULO LXIX / UM GRÃO DE SANDICE
ESTE CASO faz-me lembrar um doudo que conheci. Chamava-se Romualdo e dizia ser
Tamerlão. Era a sua grande e única mania, e tinha uma curiosa maneira de a explicar.
--Eu sou o ilustre Tamerlão, dizia ele. Outrora fui Romualdo, mas adoeci, e tomei tanto
tártaro, tanto tártaro, tanto tártaro, e até rei dos Tártaros. O tártaro tem a virtude de fazer
tártaros.
Pobre Romualdo! A gente ria da resposta, mas é provável que o leitor não se ria, e com
razão; eu não lhe acho graça nenhuma. Ouvida, tinha algum chiste; mas assim contada, no
papel, e a propósito de um vergalho recebido e transferido, força é confessar que é muito
melhor voltar à casinha da Gamboa; deixemos os Romualdos e Prudêncios.
CAPÍTULO LXX / D. PLÁCIDA
VOLTEMOS à casinha. Não serias capaz de lá entrar hoje, curioso leitor; envelheceu,
enegreceu, apodreceu, e o proprietário deitou-a abaixo para substitui-la por outra, três vezes
maior, mas juro-te que muito menor que a primeira. O mundo era estreito para Alexandre;
um desvão de telhado é o infinito para as andorinhas.
Vê agora a neutralidade deste globo, que nos leva, através dos espaços, como uma lancha de
náufragos, que vai dar à costa: dorme hoje um casal de virtudes no mesmo espaço de chão
que sofreu um casal de pecados. Amanhã pode lá dormir um eclesiástico, depois um
assassino, depois um ferreiro, depois um poeta, e todos abençoarão esse canto de terra, que
lhes deu algumas ilusões.
Virgília fez daquilo um brinco; designou as alfaias mais idôneas, e dispô-las com a intuição
estética da mulher elegante; eu levei para lá alguns livros, e tudo ficou sob a guarda de D.
Plácida, suposta, e, a certos respeitos, verdadeira dona da casa.
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Custou-lhe muito a aceitar a casa; farejara a intenção e doía-lhe o ofício; mas afinal cedeu.
Creio que chorava, a princípio: tinha nojo de si mesma. Ao menos, é certo que não levantou
os olhos para mim durante os primeiros dous meses; falava-me com eles baixos, seria,
carrancuda, às vezes triste. Eu queria angariá-la, e não me dava por ofendido, tratava-a com
carinho e respeito; forcejava por obter-lhe a benevolência, depois a confiança. Quando
obtive a confiança, imaginei uma história patética dos meus amores com Virgília, um caso
anterior ao casamento, a resistência do pai, a dureza do marido, e não sei que outros toques
de novela. D. Plácida não rejeitou uma só página da novela; aceitou-as todas. Era uma
necessidade da consciência. Ao cabo de seis meses, quem nos visse juntos diria que D.
Plácida era minha sogra.
Não fui ingrato; fiz-lhe um pecúlio de cinco contos,--os cinco contos achados em Botafogo,
como um pão para a velhice. D. Plácida agradeceu-me com lágrimas nos olhos, e nunca
mais deixou de rezar por mim, todas as noites, diante de uma imagem da Virgem, que tinha
no quarto. Foi assim que lhe acabou o nojo.
CAPÍTULO LXXI / O SENÃO DO LIVRO
COMEÇO a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e,
realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um
pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração
cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu
tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o
estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à
esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam .o céu, escorregam e
caem...
E caem! -- Folhas misérrimas do meu cipreste, heis de cair, coxo quaisquer outras belas e
vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar-vos-ia uma lágrima de saudade. Esta é a grande
vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar...
Heis de cair.
CAPÍTULO LXXII / O BIBLIÔMANO
TALVEZ SUPRIMA o capítulo anterior; entre outros motivos, há aí, nas últimas linhas,
uma frase muito parecida com despropósito, e eu não quero dar pasto à crítica do futuro.
Olhai: daqui a setenta anos, um sujeito magro, amarelo, grisalho, que não ama nenhuma
outra cousa além dos livros, inclina-se sobre a página anterior, a ver se lhe descobre o
despropósito; lê, relê! Treslê, desengonça as palavras, saca uma sílaba, depois outra, mais
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outra e as restantes, examina-as por dentro e por fora, por todos os lados, contra a luz,
espaneja-as, esfrega-as no joelho, lava-as, e nada; não acha o despropósito.
É um bibliômano. Não conhece o autor; este nome de Brás Cubas não vem nos seus
dicionários biográficos. Achou o volume por acaso, no pardieiro de um alfarrabista.
Comprou-o por duzentos réis. Indagou, pesquisou, esgaravatou, e veio a descobrir que era
um exemplar único... único! Vós, que não só amais os livros, senão que padeceis a mania
deles, vós sabeis mui bem o valor desta palavra, e adivinhais portanto, as delícias de meu
bibliômano. Ele rejeitaria a coroa das Índias, o papado, todos os museus da Itália e da
Holanda, se os houvesse de trocar por esse único exemplar; e não porque seja o das minhas
Memórias; faria a mesma cousa com o Almanaque de Laemmert, uma vez que fosse único.
O pior é o despropósito. Lá continua o homem inclinado sobre a página, com uma lente no
olho direito, todo entregue i nobre e áspera função de decifrar o despropósito. Já prometeu a
si mesmo escrever uma breve memória, na qual relate o achado do livro e a descoberta da
sublimidade, se a houver por baixo daquela frase obscura. Ao cabo, não descobre nada e
contenta-se com a posse. Fecha o livro, mira-o, remira-o, chega-se à janela e mostra-o ao
sol. Um exemplar único! Nesse momento passa-lhe pôr baixo da janela um César ou um
Cromwell, a caminho do poder. Ele dá de ombros, fecha a janela, estira-se na rede e folheia
o livro devagar, com amor, aos goles... Um exemplar único!
CAPÍTULO LXXIII / O LUNCHEON
O DESPROPÓSITO fez-me perder outro capítulo. Que melhor não era dizer as cousas
lisamente, sem todos estes solavancos! Já comparei o meu estilo ao andar dos ébrios. Se a
idéia vos parece indecorosa direi que ele é o que eram as minhas refeições com Virgília, na
casinha da Gamboa, onde às vezes fazíamos a nossa patuscada, o nosso luncheon. Vinho,
fruta, compotas. Comíamos, é verdade, mas era um comer virgulado de palavrinhas doces,
de olhares ternos, de criancices, uma infinidade desses apartes do coração, aliás o
verdadeiro, o ininterrupto discurso do amor. Às vezes vinha o arrufo temperar o nímio
adocicado da situação. Ela deixava-me, refugiava-se num canto do canapé, ou ia para o
interior ouvir as denguices de Dona Plácida. Cinco ou dez minutos depois, reatávamos a
palestra, como eu reato a narração, para desatá-la outra vez. Note-se que, longe de termos
horror ao método, era nosso costume convidá-lo, na pessoa de D. Plácida, a sentar-se
conosco à mesa; mas D. Plácida não aceitava nunca.
-- Você parece que não gosta mais de mim, disse-lhe um dia Virgília.
-- Virgem Nossa Senhora! exclamou a boa dama alçando as mãos para o tecto. Não gosto de
Iaiá! Mas então de quem é que eu gostaria neste mundo?
E, pegando-lhe nas mãos, olhou-a fixamente, fixamente, fixamente, até molharem-se-lhe os
olhos, de tão fixo que era. Virgília acariciou-a muito; eu deixei-lhe uma pratinha na
algibeira do vestido.
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CAPÍTULO LXXIV / HISTÓRIA DE D. PLÁCIDA
NÃO TE ARREPENDAS de ser generoso; a pratinha rendeu-me uma confidência de D.
Plácida, e conseguintemente este capítulo. Dias depois, como eu a achasse só em casa,
travamos palestra, e ela contou-me em breves termos a sua história. Era filha natural de um
sacristão da Sé e de uma mulher que fazia doces para fora. Perdeu o pai aos dez anos. Já
então ralava coco e fazia não sei que outros trabalhos de doceira, compatíveis com a idade.
Aos quinze ou dezesseis casou com um alfaiate, que morreu tísico algum tempo depois,
deixando-lhe uma filha. Viúva e moça, ficaram a seu cargo a filha, com dous anos, e a mãe,
cansada de trabalhar. Tinha de sustentar a três pessoas. Fazia doces, que era o seu ofício,
mas cosia também, de dia e de noite, com afinco, para três ou quatro lojas, e ensinava
algumas crianças do bairro, a dez tostões por mês. Com isto iam-se passando os, não a
beleza, porque não a tivera nunca. Apareceram-lhe alguns namoros, propostas, seduções, a
que resistia.
--Se eu pudesse encontrar outro marido, disse-me ela, creia que me teria casado; mas
ninguém queria casar comigo.
Um dos pretendentes conseguiu fazer-se aceito; não sendo, porém, mais delicado que os
outros, D. Plácida despediu-o do mesmo modo, e, depois de o despedir, chorou muito.
Continuou a coser para fora e a escumar os tachos. A mãe tinha a rabugem do
temperamento, dos anos e da necessidade- mortificava a filha para que tomasse um dos
maridos de empréstimo e de ocasião que lha pediam. E bradava:
--Queres ser melhor do que eu? Não sei donde te vem essas fidúcias de pessoa rica. Minha
camarada, a vida não se arranja à toa; não se come vento. Ora esta! Moços tão bons como o
Policarpo da venda, coitado... Esperas algum fidalgo, não é?
D. Plácida jurou-me que não esperava fidalgo nenhum. Era gênio. Queria ser casada. Sabia
muito bem que a mãe o não fora, e conhecia algumas que tinham só o seu moço delas; mas
era gênio e queria ser casada. Não queria também que a filha fosse outra cousa. Trabalhava
muito, queimando os dedos ao fogão, e os olhos ao candeeiro, para comer e não cair.
Emagreceu, adoeceu, perdeu a mãe, enterrou-a por subscrição, e continuou a trabalhar. A
filha estava com quatorze anos; mas era muito fraquinha, e não fazia nada, a não ser
namorar os capadócios que lhe rondavam a rótula. D. Plácida vivia com imensos cuidados,
levando-a consigo, quando tinha de entregar costuras. A gente das lojas arregalava e piscava
os olhos, convencida de que ela a levava para colher marido ou outra cousa. Alguns diziam
graçolas, faziam cumprimentos; a mãe chegou a receber propostas de dinheiro...
Interrompeu-se um instante, e continuou logo:
-- Minha filha fugiu-me; foi com um sujeito, nem quero saber... Deixou-me só, mas tão
triste, tão triste, que pensei morrer. Não tinha ninguém mais no mundo e estava quase velha
e doente. Foi por esse tempo que conheci a família de Iaiá; boa gente, que me deu que fazer,
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e até chegou a me dar casa. Estive lá muitos meses, um ano, mais de um ano, agregada,
costurando. Saí quando Iaiá casou. Depois vivi como Deus foi servido. Olhe os meus dedos,
olhe estas mãos... E mostrou-me as mãos grossas e gretadas, as pontas dos dedos pica das da
agulha. - Não se cria isto à toa, meu senhor; Deus sabe como é que isto se cria. . .
Felizmente, Iaiá me protegeu, e o senhor doutor também... Eu tinha um medo de acabar na
rua, pedindo esmola . . .
Ao soltar a última frase, D. Plácida teve um calafrio. Depois, como se tornasse a si, pareceu
atentar na inconveniência daquela confissão ao amante de uma mulher casada, e começou a
rir, a desdizer-se, a chamar-se tola, "cheia de fidúcias", como lhe dizia a mãe; enfim,
cansada do meu silêncio, retirou-se da sala. Eu fiquei a olhar para a ponta do botim.
CAPÍTULO LXXV / COMIGO
PODENDO ACONTECER que algum dos meus leitores tenha pulado o capítulo anterior,
observo que é preciso le-lo para entender o que eu disse comigo, logo depois que D. Plácida
saiu da sala. O que eu disse foi isto:
"Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia. ajudando à missa, viu entrar a dama, que devia ser
sua colaboradora na vida de D. Plácida. Viu-a outros dias, durante semanas inteiras, gostou,
disse-lhe alguma graça, pisou-lhe o pé, ao acender os altares, nos dias de festa. Ela gostou
dele, acercaram-se, amaram-se. Dessa conjunção de luxúrias vadias brotou D. Plácida. t de
crer que D. Plácida não falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores
de seus dias: --Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristã naturalmente
lhe responderiam. --Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura,
comer mal, ou não comer andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com
o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada,
mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no
hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia".
CAPÍTULO LXXVI / O ESTRUME
SÚBITO DEU-ME a consciência um repelão, acusou-me de ter feito capitular a probidade
de D. Plácida, obrigando-a a um papel torpe, depois de uma longa vida de trabalho e
privações. Medianeira não era melhor que concubina, e eu tinha-a baixado de obséquios e à
custa de obséquios e dinheiro. Foi o que me disse a consciência; fiquei uns dez minutos sem
saber que lhe replicasse. Ela acrescentou que eu me aproveitara da fascinação exercida por
Virgília sobre a ex-costureira, da gratidão desta, enfim da necessidade. Notou a resistência
de D. Plácida, as lágrimas dos primeiros dias, as caras feias, es silêncios, os olhos baixos, e a
minha arte em suportar tudo isso, até vence-la. E repuxou-me outra vez de um modo irritado
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e nervoso.
Concordei que assim era, mas aleguei que a velhice de D. Plácida estava agora ao abrigo da
mendicidade: era uma compensação. Se não fossem os meus amores, provavelmente D.
Plácida acabaria como tantas outras criaturas humanas; donde se poderia deduzir que o vício
e muitas vezes o estrume da virtude. O que não impede que a virtude seja uma flor cheirosa
e sã. A consciência concordou, e eu fui abrir a porta a Virgília.
CAPÍTULO LXXVII / ENTREVISTA
VIRGÍLIA entrou risonha e sossegada. Os tempos tinham levado os sustos e vexames. Que
doce que era vê-la chegar, nos primeiros dias, envergonhada e trêmula! Ia de sege, velado o
rosto, envolvida numa espécie de mantéu, que lhe disfarçava as ondulações do talhe. Da
primeira vez deixou-se cair no canapé, ofegante, escarlate, com os olhos no chão; e, palavra!
em nenhuma outra ocasião a achei tão bela, talvez porque nunca me senti mais lisonjeado.
Agora, porém, como eu dizia, tinham acabado os sustos e vexames; as entrevistas entravam
no período cronométrico. A intensidade do amor era a mesma; a diferença é que a chama
perdera o tresloucado dos primeiros dias para constituir-se um simples feixe de raios,
tranqüilo e constante, como nos casamentos.
--Estou muito zangada com você, disse ela sentando-se.
--Por quê?
--Por que não foi lá ontem, como me tinha dito. O Damião perguntou muitas vezes se você
não iria, ao menos, tomar chá. Por que é que não foi?
Com efeito, eu havia faltado à palavra que dera, e a culpa era toda de Virgília. Questão de
ciúmes. Essa mulher esplendida sabia que o era, e gostava de o ouvir dizer, fosse em voz
alta ou baixa. Na antevéspera, em casa da baronesa, valsara duas vezes com o mesmo
peralta, depois de lhe escutar as cortesanices, ao canto de uma janela. Estava tão alegre! tão
derramada! tão cheia de si! Quando descobriu, entre as minhas sobrancelhas, a ruga
interrogativa e ameaçadora, não teve nenhum sobressalto, nem ficou subitamente séria; mas
deitou ao mar o peralta e as cortesanices. Veio depois a mim, tomou-me o braço, e levou-me
a outra sala, menos povoada, onde se me queixou de cansaço, e disse muitas outras cousas,
com o ar pueril que costumava ter, em certas ocasiões, e eu ouvi-a quase sem responder
nada.
Agora mesmo, custava-me responder alguma cousa, mas enfim contei-lhe o motivo da
minha ausência. . . Não, eternas estrelas, nunca vi olhos mais pasmados. A boca semi-aberta,
as sobrancelhas arqueadas, uma estupefação visível, tangível, que se não podia negar; tal foi
a primeira réplica de Virgília; abanou a cabeça com um sorriso de piedade e ternura, que
inteiramente me confundiu.
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-- Ora, você!
E foi tirar o chapéu, lépida, jovial como a menina que torna do colégio; depois veio a mim,
que estava sentado, deu-me pancadinha na testa, com um só dedo, a repetir: Isto, isto; e eu
não tive. remédio senão rir também, e tudo acabou em galhofa. Era claro que me enganara.
CAPÍTULO LXXVIII / A PRESIDÊNCIA
CERTO DIA, meses depois, entrou Lobo Neves em casa, dizendo que iria talvez ocupar
uma presidência de província. Olhei para Virgínia, que empalideceu; ele, que a viu
empalidecer, perguntou-lhe:
--A modo que não gostaste, Virgília?
Virgília abanou a cabeça.
-- Não me agrada muito, foi a sua resposta.
Não se disse mais nada; mas de noite Lobo Neves insistia no projeto um pouco mais
resolutamente do que de tarde; dous dias depois declarou à mulher que a presidência era
cousa definitiva. Virgília na pôde dissimular a repugnância que isto lhe causava. O marido
respondia a tudo com as necessidades políticas.
Não posso recusar o que me pedem; é até conveniência nossa. do nosso futuro, dos teus
brasões, meu amor, porque eu prometi que serias marquesa, e nem baronesa estás. Dirás que
sou ambicioso? Sou-o deveras, mas é preciso que me não ponhas um peso nas asas da
ambição.
Virgília ficou desorientada. No dia seguinte achei-a triste, na casa; da Gamboa, à minha
espera; tinha dito tudo a D. Plácida, que buscava consolá-la como podia. Não fiquei menos
abatido.
-- Você há de ir conosco, disse-me Virgília.
--Está douda? Seria uma insensatez.
--Mas então...?
--Então, é preciso desfazer o projeto.
-- É impossível.
-- Já aceitou?
--Parece que sim.
Levantei-me, atirei o chapéu a uma cadeira, e entrei a passear de; um lado para outro, sem
saber o que faria. Cogitei largamente, e não achei nada. Enfim, cheguei-me a Virgília, que
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estava sentada, e travei-lhe da mão; D. Plácida foi à janela.
--Nesta pequenina mão está toda a minha existência, disse eu; você é responsável por ela;
faça o que lhe parecer.
Virgília teve um gesto aflitivo; eu fui encostar-me ao consolo fronteiro. Decorreram alguns
instantes de silêncio; ouvíamos somente o latir de um cão, e não sei se o rumor da água, que
morria na praia Vendo que não falava, olhe; para ela. Virgilia tinha os olhos no chão,
parados, sem luz, as mãos deixadas sobre os joelhos, com os dedos cruzados, na atitude da
suprema desesperança. Noutra ocasião, por diferente motivo, é certo que eu me lançaria aos
pés dela, e a ampararia com a minha razão e a minha ternura; agora, porém, era preciso
compeli-la ao esforço de si mesma, ao sacrifício, à responsabilidade da nossa vida comum, e
conseguintemente desampará-la deixá-la, e sair; foi o que fiz.
-- Repito, a minha felicidade está nas tuas mãos, disse eu.
Virgília quis agarrar-me, mas eu já estava fora da porta. Cheguei a ouvir um prorromper de
lágrimas, e digo-lhes que estive a ponto de voltar, para as enxugar com um beijo; mas
subjuguei-me e saí.
CAPÍTULO LXXIX / COMPROMISSO
NÃO ACABARIA se houvesse de contar pelo miúdo o que padeci nas primeiras horas.
Vacilava entre um querer e um não querer, entre a piedade que me empuxava à casa de
Virgília e outro sentimento, -- egoísmo, supunhamos,-- que me dizia: "Fica; deixa-a a sós
com o problema, deixa-a que ela o resolverá no sentido do amor". Creio que essas duas
forças tinham igual intensidade, investiam e resistiam ao mesmo tempo, com ardor, com
tenacidade, e nenhuma cedia definitivamente. Às vezes sentia um dentezinho de remorso;
parecia-me que abusava da fraqueza de uma mulher amante e culpada, sem nada sacrificar
nem arriscar de mim próprio; e, quando ia a capitular, vinha outra vez o amor, e me repetia o
conselho egoísta, e eu ficava irresoluto e inquieto, desejoso de a ver, e receoso de que a vista
me levasse a compartir a responsabilidade da solução.
Por fim interveio um compromisso entre o egoísmo e a piedade; eu iria vê-la em casa, e só
em casa, em presença do marido, para lhe não dizer nada, à véspera do efeito da minha
intimação. Deste modo poderia conciliar as duas forças. Agora, que isto escrevo, quer-me
parecer que o compromisso era uma burla, que essa piedade era ainda uma forma de
egoísmo, e que a resolução de ir consolar Virgília não passava de uma sugestão de meu
próprio padecimento.
CAPÍTULO LXXX / DE SECRETÁRIO
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NA NOITE SEGUINTE fui efetivamente à casa do Lobo Neves estavam ambos, Virgília
muito triste, ele muito jovial. Juro que ela sentiu certo alívio, quando os nossos olhos se
encontraram, cheios de curiosidade e ternura. Lobo Neves contou-me os planos que levava
para a presidência, as dificuldades locais, as esperanças, as resoluções; estava tão contente!
tão esperançado! Virgília, ao pé da mesa fingia ler um livro, mas por cima da página
olhava-me de quando em quando, interrogativa e ansiosa.
--O pior, disse-me de repente o Lobo Neves, é que ainda não achei secretário.
--Não?
--Não, e tenho uma idéia.
--Ah!
--Uma idéia... Quer você dar um passeio ao Norte? Não sei o que lhe disse.
--Você é rico, continuou ele, não precisa de um magro ordenado; mas se quisesse
obsequiar-me, ia de secretário comigo.
Meu espírito deu um salto para trás, como se descobrisse uma serpente diante de si. Encarei
o Lobo Neves, fixamente, imperiosamente a ver se lhe apanhava algum pensamento oculto. .
. Nem sombra disso, o olhar vinha direito e franco, a placidez do rosto era natural, não
violenta, uma placidez salpicada de alegria. Respirei, e não tive ânimo de olhar para
Virgília; senti por cima da página o olhar dela, que me pedia também a mesma cousa, e
disse que sim, que iria. Na verdade, um presidente, uma presidenta, um secretário era
resolver as cousas de um modo administrativo.
CAPÍTULO LXXXI / A RECONCILIAÇÃO
CONTUDO, ao sair de lá, tive umas sombras de dúvida; cogitei se não ia expor insanamente
a reputação de Virgília, se não haveria outro meio razoável de combinar o Estado e a
Gamboa. Não achei nada. No dia seguinte, ao levantar-me da cama, trazia o espírito feito e
resoluto a aceitar a nomeação. Ao meio-dia, veio o criado dizer-me que estava na sala uma
senhora, coberta com um véu. Corro; era minha irmã Sabina.
-- Isto não pode continuar assim, disse ela; é preciso
-- Ora essa! irei eu mesmo vê-la.
-- Sim?
-- Palavra.
-- Tanto melhor! respirou Sabina. É tempo de acabar com isto. Achei-a mais gorda, e talvez
mais moça. Parecia ter vinte anos, e contava mais de trinta. Graciosa, afável, nenhum
acanhamento, nenhum ressentimento. Olhávamos um para o outro, com as mãos seguras,
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falando de tudo e de nada, como dous namorados. Era minha infância que ressurgia, fresca,
travessa e loura; os anos iam caindo como as fileiras de cartas de jogar encurvadas, com que
eu brincava em pequeno, e deixavam-me ver a nossa casa, a nossa família, as nossas festas.
Suportei a recordação com algum esforço; mas um barbeiro da vizinhança lembrou-se de
zangarrear na clássica rabeca, e essa voz porque até então a recordação era muda -- essa voz
do passado, fanhosa e saudosa, a tal ponto me comoveu, que...
Os olhos dela estavam secos. Sabina não herdara a flor amarela e mórbida. Que importa?
Era minha irmã, meu sangue, um pedaço de minha mãe, e eu disse-lho com ternura, com
sinceridade... Súbito ouço bater à porta da sala; vou abrir; era um anjinho de cinco anos.
--Entra, Sara, disse Sabina.
Era minha sobrinha. Apanhei-a do chão, beijei-a muitas vezes; a pequena, espantada,
empurrava-me o ombro com a mãozinha, quebrando o corpo para descer. . . Nisto,
aparece-me à porta um chapéu, e logo um homem, o Cotrim, nada menos que o Cotrim. Eu
estava tão comovido, que deixei a filha e lancei-me aos braços do pai. Talvez essa efusão o
desconcertou um pouco; é certo que me pareceu acanhado. Simples prólogo. Daí a pouco
falávamos como bons amigos velhos. Nenhuma alusão ao passado, muitos planos de futuro,
promessa de jantarmos em casa um do outro. Não deixei de dizer que essa troca de jantares
podia ser que tivesse uma curta interrupção, porque eu andava com idéias de uma viagem ao
Norte. Sabina olhou para o Cotrim, o Cotrim para Sabina; ambos concordaram que essas
idéias não tinham senso comum. Que diacho podia eu achar no Norte? Pois não era na corte,
em plena corte, que devia continuar a luzir, a meter num chinelo os rapazes do tempo? Que
na verdade, nenhum havia que se me comparasse; ele, Cotrim, acompanhava-me de longe,
es não obstante uma briga ridícula, teve sempre interesse, orgulho, vaidade nos meus
triunfos. Ouvia o que se dizia a meu respeito, nas ruas e nas salas; era um concerto de
louvores e admirações. E deixa-se isso para ir passar alguns meses na província, sem
necessidade, sem motivo sério? A menos que não fosse política...
--Justamente política, disse eu.
--Nem assim, replicou ele daí a um instante. E depois de outro silêncio: Seja como for,
venha jantar hoje conosco.
--Certamente que vou; mas, amanhã ou depois, hão de vir jantar comigo.
--Não sei, não sei, objetou Sabina; casa de homem solteiro. . . Você precisa casar, mano.
Também eu quero uma sobrinha, ouviu?
Cotrim reprimiu-a com um gesto, que não entendi bem. Não importa; a reconciliação de
uma família vale bem um gesto enigmático.
CAPÍTULO LXXXII / QUESTÃO DE BOTÂNICA
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DIGAM O QUE QUISEREM dizer os hipocondríacos: a vida é uma cousa doce. Foi o que
eu pensei comigo, ao ver Sabina, o marido e a filha descerem de tropel as escadas, dizendo
muitas palavras afetuosas para cima, onde eu ficava -- no patamar, a dizer-lhes outras tantas
para baixo. Continuei a pensar que, na verdade, era feliz. Amava-ma mulher, tinha a
confiança do marido, ia por secretário de ambos, reconciliava-me com os meus. Que podia
desejar mais, em vinte e quatro horas?
Nesse mesmo dia. tratando de aparelhar os ânimos, comecei a espalhar que talvez fosse para
o Norte como secretário de província, a fim de realizar certos desígnios políticos, que me
eram pessoais. Disse-o na Rua do Ouvidor, repeti-o no dia seguinte, no Pharoux e no teatro.
Alguns, ligando a minha nomeação à do Lobo Neves, que já andava em boatos, sorriam
maliciosamente, outros batiam-me no ombro. No teatro disse-me uma senhora que era levar
muito longe o amor da escultura. Referia-se às belas formas de Virgília.
Mas a alusão mais rasgada que me fizeram foi em casa de Sabina, três dias depois. Fê-la um
certo Garcez, velho cirurgião, pequenino, trivial e grulha, que podia chegar aos setenta, aos
oitenta, aos no venta anos, sem adquirir jamais aquela compostura austera, que é a gentileza
do ancião. A velhice ridícula é, porventura, a mais triste e derradeira surpresa da natureza
humana.
-- Já sei, desta vez vai ler Cícero, disse-me ele, ao saber d viagem.
-- Cícero! exclamou Sabina.
-- Pois então? Seu mano é um grande latinista. Traduz Virgílio de relance. Olhe que é
Virgílio, e não Virgília... não confunda ..
E ria, de um riso grosso, rasteiro e frívolo. Sabina olhou para mim receosa de alguma
réplica; mas sorriu, quando me viu sorrir, e voltou o rosto para disfarçá-lo. As outras
pessoas olhavam-me com um ar de curiosidade, indulgência e simpatia; era transparente que
não acabavam de ouvir nenhuma novidade. O caso dos meus amores andava mais público
do que eu podia supor. Entretanto sorri, um sorriso curto, fugitivo e guloso, -- palreiro como
as pegas de Sintra. Virgília era um belo erro, e é tão fácil confessar um belo erro!
Costumava ficar carrancudo, a princípio, quando ouvia alguma alusão ao nossos amores;
mas, palavra de honra! sentia cá dentro uma impressão são suave e lisonjeira. Uma vez,
porém, aconteceu-me sorrir, e continuei a fazê-lo das outras vezes. Não sei se há aí alguém
que explique o fenômeno. Eu explico-o assim: a princípio, o contentamento, sendo interior,
era por assim dizer o mesmo sorriso, mas abotoado, andando o tempo, desabotoou-se em
flor, e apareceu aos olhos do próximo. Simples questão de botânica.
CAPÍTULO LXXXIII / 13
COTRIM tirou-me daquele gozo, levando-me à janela. Você quer que lhe diga uma cousa?
perguntou ele;-- não faça essa viagem; é insensata, é perigosa.
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-- Por quê?
--Você bem sabe por que, tornou ele: é, sobretudo, perigosa, muito perigosa. Aqui na corte,
um caso desses perde-se na multidão da gente e dos interesses, mas na província muda de
figura; e tratando-se de personagens políticos, é realmente insensatez. As gazetas de
oposição, logo que farejarem o negócio, passam a imprimi-lo com todas as letras, e aí virão
as chufas, os remoques, as alcunhas..,
-- Mas não entendo...
-- Entende, entende. Em verdade, seria bem pouco amigo nosso se me negasse o que toda a
gente sabe. Eu sei disso há longos meses. Repito, não faça semelhante viagem; suporte a
ausência, que é melhor, e evite algum grande escândalo e maior desgosto. ..
Disse isto, e foi para dentro. Eu deixei-me estar com os olhos no lampião da esquina, -- um
antigo lampião de azeite, -- triste obscuro e recurvado, como um ponto de interrogação. Que
me cumpria fazer? Era o caso de Hamlet: ou dobrar-me à fortuna, ou lutar com ela e
subjugá-la. Por outros termos: embarcar ou não embarcar. Esta era a questão. O lampião não
me dizia nada. As palavras do Cotrim ressoavam-me aos ouvidos da memória, de um modo
mui diverso do das palavras do Garcez. Talvez Cotrim tivesse razão; mas podia eu
separar-me de Virgília?
Sabina veio ter comigo, e perguntou-me em que estava pensando. Respondi que em cousa
nenhuma, que tinha sono e ia para casa. Sabina esteve um instante calada.-- O que você
precisa, sei eu; é uma noiva. Deixe, que eu ainda arranjo uma noiva para você. Saí de lá
opresso, desorientado. Tudo pronto para embarcar, -- espírito e coração,-- e eis aí me surge
esse porteiro das conveniências, que me pede o cartão de ingresso. Dei ao diabo as
conveniências, e com elas a constituição, o corpo legislativo, o ministério, tudo.
No dia seguinte, abro uma folha política e leio a notícia de que, por decretos de 13, tínhamos
sido nomeados presidente e secretário da província de *** o Lobo Neves e eu. Escrevi
imediatamente a Virgília, e segui duas horas depois para a Gamboa. Coitada de D. Plácida!
Estava cada vez mais aflita; perguntou-me se esqueceríamos a nossa velha, se a ausência era
grande e se a província ficava longe. Consolei-a; mas eu próprio precisava de consolações; a
objeção de Cotrim afligia-me. Virgília chegou daí a pouco, lépida como uma andorinha;
mas, ao ver-me triste ficou muito séria.
-- Que aconteceu?
--Vacilo, disse eu; não sei se devo aceitar...
Virgínia deixou-se cair, no canapé, a rir. Por quê? disse ela.
-- Não é conveniente dá muito na vista...
-- Mas nós não já vamos.
-- Como assim?
Contou-me que o marido ia recusar a nomeação, e por motivo que só lhe disse, a ela,
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pedindo-lhe o maior segredo; não podia confessá-lo a ninguém mais. t pueril, observou ele,
é ridículo; mas em suma, é um motivo poderoso para mim. Referiu-lhe que o decreto trazia
a data de 13, e que esse número significava para ele uma recordação fúnebre. O pai morreu
num dia 13, treze dias depois de um jantar em que havia treze pessoas. A casa em que
morrera a mãe tinha o n.° 13. Et coetera. Era um algarismo fatídico. Não podia alegar
semelhante cousa ao ministro; dir-lhe-ia que tinha razões particulares para não aceitar. Eu
fiquei como há de estar o leitor,-- um pouco assombrado com esse sacrifício a um número;
mas, sendo ele ambicioso, o sacrifício devia ser sincero...
CAPÍTULO LXXXIV / O CONFLITO
NÚMERO FATÍDICO, lembras-te que te abençoei muitas vezes? Assim também as virgens
ruivas de Tebas deviam abençoar a égua, de ruiva crina, que as substituiu no sacrifício de
Pelópidas,-- uma donosa égua, que lá morreu, coberta de flores, sem que ninguém lhe desse
nunca uma palavra de saudade. Pois dou-ta eu, égua piedosa, não só pela morte havida,
como porque entre as donzelas escapas, não é impossível que figurasse uma avó dos
Cubas... Número fatídico, tu foste a nossa salvação. Não me confessou o marido a causa da
recusa; disse-me também que eram negócios particulares, e o rosto ; sério, convencido, com
que eu o escutei, fez honra à dissimulação humana. Ele é que mal podia encobrir a tristeza
profunda que o minava- falava pouco, absorvia-se, metia-se em casa, a ler. Outras vezes
recebia, e então conversava e ria muito, com estrépito e afetação. Oprimiam-no duas cousas,
a ambição, que um escrúpulo desazara, e logo depois a dúvida, e talvez o arrependimento, --
mas um arrependimento, que viria outra vez, se repetisse a hipótese porque o fundo
supersticioso existia. Duvidava da superstição, sem chegar a rejeitá-la. Essa persistência de
um sentimento, que repugna ao mesmo indivíduo, era um fenômeno digno de alguma
atenção. Mas eu preferia a pura ingenuidade de D. Plácida, quando conversava não poder
ver um sapato voltado para o ar.
--Que tem isso? perguntava-lhe eu.
--Faz mal, era a sua resposta.
Isto somente, esta única resposta, que valia para ela o livro dos sete selos. Faz mal.
Disseram-lhe isso em criança, sem outra explicação, e ela contentava-se com a certeza do
mal. Já não acontecia mesma cousa quando se falava de apontar uma estrela com o dedo aí
sabia perfeitamente que era caso de criar uma verruga.
Ou verruga ou outra cousa, que valia isso, para quem não perde uma presidência de
província? Tolera-se uma superstição gratuita ou barata; é insuportável a que leva uma parte
da vida. Este era o caso do Lobo Neves com o acréscimo da dúvida e do terror de haver sido
ridículo. E mais este outro acréscimo, que o ministro não acreditou nos motivos particulares;
atribuiu a recusa do Lobo Neves a manejos políticos, ilusão complicada de algumas
aparências; tratou-o mal, comunicou a desconfiança aos colegas; sobrevieram incidentes;
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enfim, com o tempo, o presidente resignatário foi para a oposição.
CAPÍTULO LXXXV / O CIMO DA MONTANHA
QUEM ESCAPA a um perigo ama a vida com outra intensidade; Entrei a amar Virgília com
muito mais ardor, depois que estive a pique de a perder, e a mesma cousa lhe aconteceu a
ela. Assim, a presid6encia não fez mais do que avivar a afeição primitiva; foi a droga com
que tomamos mais saboroso o nosso amor, e mais prezado também. Nos primeiros dias,
depois daquele incidente, folgávamos de imaginar a dor da separação, se houvesse
separação, a tristeza de um e de outro, à proporção que o mar, como uma toalha elástica, se
fosse dilatando entre nós; e, semelhantes às crianças, que se achegam ao regaço das mães,
para fugir a uma simples careta, fugíamos do suposto perigo, apertando-nos com abraços.
-- Minha boa Virgília!
-- Meu amor!
-- Tu és minha, não?
-- Tua, tua...
E assim reatamos o fio da aventura como a sultana Scheherazade o dos seus contos. Esse
foi, cuido eu, o ponto máximo do nosso amor, o cimo da montanha, donde por algum tempo
divisamos os vale de leste e de oeste, e por cima de nós o céu tranqüilo e azul. Repousado
esse tempo, começamos a descer a encosta, com as mãos presas ou soltas, mas a descer, a
descer...
CAPÍTULO LXXXVI / O MISTÉRIO
SERRA ABAIXO, como eu a visse um pouco diferente, não sei se abatida ou outra cousa,
perguntei-lhe o que tinha; calou-se, fez um gesto de enfado, de mal-estar, de fadiga; ateimei,
ela disse-me que... Um fluido subtil percorreu todo o meu corpo: sensação forte, rápida,
singular, que eu não chegarei jamais a fixar no papel. Travei-lhe das mãos, puxei-a
levemente a mim, e beijei-a na testa, com uma delicadeza de zéfiro e uma gravidade de
Abraão. Ela estremeceu, colheu-me a cabeça entre as palmas, fitou-me os olhos, depois
afagou-me com um gesto maternal. . . Eis aí um mistério; deixemos ao leitor o tempo de
decifrar este mistério.
CAPÍTULO LXXXVII / GEOLOGIA
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SUCEDEU por esse tempo um desastre: a morte do Viegas. O Viegas passou aí de relance,
com os seus setenta anos, abafados de asma, desconjuntados de reumatismo, e uma lesão de
coração por quebra. Foi um dos finos espreitadores da nossa aventura. Virgínia nutria
grandes esperanças em que esse velho parente, avaro como um sepulcro, lhe amparasse o
futuro do filho, com algum legado; e, se o marido tinha iguais pensamentos, encobria-os ou
estrangulava-os. Tudo se deve dizer: havia no Lobo Neves certa dignidade fundamental,
uma camada de rocha, que resistia ao comércio dos homens. As outras, as camadas de cima,
terra solta e areia, levou-lhas a vida, que é um enxurro perpétuo. Se o leitor ainda se lembra
do capítulo XXIII, observará que é agora a segunda vez que eu comparo a vida a um
enxurro; mas também há de reparar que desta vez acrescento-lhe um adjetivo -- perpétuo. E
Deus sabe a força de um adjetivo, principalmente em países novos e cálidos.
O que é novo neste livro é a geologia moral do Lobo Neves, provavelmente a do cavalheiro,
que me está lendo. Sim, essas camadas de caráter, que a vida altera, conserva ou dissolve,
conforme a resistência delas, essas camadas mereceriam um capítulo, que eu não escrevo,
por não alongar a narração. Digo apenas que o homem mais probo que conheci em minha
vida foi um certo Jacó Medeiros ou Jacó Valadares, não me recorda bem o nome. Talvez
fosse Jacó Rodrigues; em suma, Jacó. Era a probidade em pessoa; podia ser rico,
violentando um pequenino escrúpulo, e não quis; deixou ir pelas mãos fora nada menos de
uns quatrocentos contos; tinha a probidade tão exemplar, que chegava a ser miúda e
cansativa. Um dia. como nos achássemos, a sós, em casa dele, em boa palestra, vieram dizer
que o procurava o Dr. B., um sujeito enfadonho. Jacó mandou dizer que não estava em casa.
--Não pega, bradou uma voz do corredor; cá estou de dentro.
E, com efeito, era o Dr. B., que apareceu logo à porta da sala.
Jacó foi recebê-lo, afirmando que cuidava ser outra pessoa, e não ; ele, e acrescentando que
tinha muito prazer com a visita, o que nos. rendeu hora e meia de enfado mortal, e isto
mesmo, porque Jacó tirou o relógio; o Dr. B. perguntou-lhe então se ia sair.
-- Com minha mulher, disse Jacó.
Retirou-se o Dr. B. e respiramos. Uma vez respirados, disse eu ao Jacó que ele acabava de
mentir quatro vezes, em menos de duas horas: a primeira, negando-se, a segunda,
alegrando-se com a presença do importuno; a terceira, dizendo que ia sair; a quarta,
acrescentando que com a mulher. Jacó refletiu um instante, depois confessou a justeza da
minha observação, mas desculpou-se dizendo que a veracidade absoluta era incompatível
com um estado social adiantado, e que a paz das cidades só se podia obter à custa de embaça
delas recíprocas. .. Ah! lembra-me agora: chamava-se Jacó Tavares.
CAPÍTULO LXXXVIII / O ENFERMO
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NÃO É PRECISO dizer que refutei tão perniciosa doutrina, com os mais elementares
argumentos; mas ele estava tão vexado do meu reparo, que resistiu até o fim, mostrando
certo calor fictício, talvez para atordoar a consciência.
O caso de Virgília tinha alguma gravidade mais. Ela era menos escrupulosa que o marido:
manifestava claramente as esperanças que trazia no legado, cumulava o parente de todas as
cortesias, atenções e afagos que poderiam render, pelo menos, um codicilo. Propriamente,
adulava-o- mas eu observei que a adulação das mulheres não é a mesma cousa que a dos
homens. Esta orça pela servilidade; a outra confunde-se com a afeição. As formas
graciosamente curvas, a palavra doce, a mesma fraqueza física dão à ação lisonjeira da
mulher, uma cor local, um aspecto legítimo. Não importa a idade do adulado; a mulher há de
ter sempre para ele uns ares de mãe ou de irmã,-- ou ainda de enfermeira, outro ofício
feminil, em que o mais hábil dos homens carecerá sempre de um quid, um fluido, alguma
cousa.
Era o que eu pensava comigo, quando Virgília se desfazia toda em afagos ao velho parente.
Ela ia recebe-lo à porta, falando e rindo, tirava-lhe o chapéu e a bengala, dava-lhe o braço e
levava-o a uma cadeira, ou à cadeira, porque havia lá em casa a "cadeira do Viegas", obra
especial, conchegada a feita para gente enferma ou anciã. Ia fechar a janela próxima, se
havia alguma brisa, ou abri-la, se estava calor, mas com cuidado, combinando de modo que
lhe não desse um golpe de ar.
-- Então? Hoje está mais fortezinho. . .
--Qual! Passei mal a noite; o diabo da asma não me deixa.
E bufava o homem? repousando a pouco e pouco do cansaço da entrada e da subida, não do
caminho, porque ia sempre de sege Ao lado, um pouco mais para a frente, sentava-se
Virgília, numa banquinha, com as mãos nos joelhos do enfermo. Entretanto, o nhonhô
chegava à sala, sem os pulos do costume, mas discreto, meigo, sério. Viegas gostava muito
dele.
--Vem cá, nhonhôs dizia-lhe; e a custo introduzia a mão na ampla algibeira, tirava uma
caixinha de pastilhas, metia uma na boca e dava outra ao pequeno. Pastilhas antiasmáticas.
O pequeno dizia que eram muito boas.
Repetia-se isto, com variantes. Como o Viegas gostasse de jogar damas, Virgília
cumpria-lhe o desejo, aturando-o por largo tempo, a mover as pedras com a mão frouxa e
tarda. Outras vezes, desciam a passear na chácara, dando-lhe ela o braço, que ele nem
sempre aceitava, por dizer-se rijo e capaz de andar uma légua. Iam, sentavam-se tornavam a
ir, a falar de cousas várias, ora de um negócio de família ora de uma bisbilhotice de sala, ora
enfim de uma casa que ele meditava construir, para residência própria, casa de feitio
moderno, porque a dele era das antigas, contemporânea de el-rei D. João VI, à maneira de
algumas que ainda hoje (creio eu) se podem ver no bairro de S. Cristóvão, com as suas
grossas colunas na frente. Parecia-lhe que o casarão em que morava podia ser substituído, e
já tinha encomendado o risco a um pedreiro de fama. Ah! então sim, então é que Virgília
chegaria a ver o que era um velho de gosto.
Falava, como se pode supor, lentamente e a custo, intervalado de uma arfagem incômoda
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para ele e para os outros. De quando em quando, vinha um acesso de tosse; curvo, gemendo,
levava o lenço à boca, e investigava-o; passado o acesso, tornava ao plano da casa, que
devia ter tais e tais quartos, um terraço, cachoeira, um primor.
CAPÍTULO LXXXXIX / IN EXTREMIS
--AMANHÃ VOU passar o dia em casa do Viegas, disse-me ela uma vez. Coitado! não tem
ninguém. . .
Viegas caíra na cama, definitivamente; a filha, casada adoecera Justamente agora, e não
podia fazer-lhe companhia. Virgília ia lá de quando em quando. Eu aproveitei a
circunstância para passar todo aquele dia ao pé dela. Eram duas horas da tarde quando
cheguei. Viegas tossia com tal força que me fazia arder o peito; no intervalo dos acessos
debatia o preço de uma casa, com um sujeito magro. O sujeito oferecia trinta contos. Viegas
exigia quarenta. O comprador instava como quem receia perder o trem da estrada de ferro
mas Viegas não cedia; recusou primeiramente os trinta contos, depois mais dous, depois
mais três, enfim teve um forte acesso, que lhe tolheu a fala durante quinze minutos. O
comprador acarinhou-o multo, arranjou-lhe os travesseiros, ofereceu-lhe trinta e seis contos.
--Nunca! gemeu o enfermo.
Mandou buscar um maço de papéis à escrivaninha, não tendo forças para tirar a fita de
borracha que prendia os papéis, pediu-me que os deslaçasse: fi-lo. Eram as contas das
despesas com a construção da casa: contas de pedreiro, de carpinteiro, de pintor; contas do
papel da sala de visitas, da sala de jantar, das alcovas, dos gabinetes; contas das ferragens;
custo do terreno. Ele abria-as, uma por uma, com a mão tremula, e pedia-me que as lesse, e
eu lia-as.
--Veja; mil e duzentos, papel de mil e duzentos a peça. Dobradiças francesas. . . Veja, é de
graça, concluiu ele depois de lida a última conta.
-- Pois bem... mas...
-- Quarenta contos; não lhe dou por menos. Só os juros... faça a conta dos juros...
Vinham tossidas estas palavras, às golfadas, às sílabas, como se fossem migalhas de um
pulmão desfeito. Nas órbitas fundas rolavam os olhos lampejantes, que me faziam lembrar a
lamparina da madrugada. Sob o lençol desenhava-se a estrutura óssea do corpo, pontudo em
dous lugares, nos joelhos e nos pés; a pele amarelada, bamba rugosa, revestia apenas a
caveira de um rosto sem expressão: uma carapuça de algodão branco cobria-lhe o crânio
rapado pelo tempo
--Então? disse o sujeito magro.
Fiz-lhe sinal para que não insistisse, e ele calou-se por alguns instantes. O doente ficou a
olhar para o tecto, calado, a arfar muito; Virgília empalideceu, levantou-se, foi até à janela.
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Suspeitara a morte e tinha medo. Eu procurei falar de outras cousas. O sujeito magro contou
uma anedota, e tornou a tratar da casa, alteando a proposta.
--Trinta e oito contos, disse ele.
--Ahn?... gemeu o enfermo.
O sujeito magro aproximou-se da cama, pegou-lhe na mão, e sentiu-a fria. Eu acheguei-me
ao doente, perguntei-lhe se sentia alguma cousa, se queria tomar um cálice de vinho.
--Não... não... quar... quaren... quar... quar...
Teve um acesso de tosse, e foi o último; daí a pouco expirava ele com grande consternação
do sujeito magro, que me confessou depois a disposição em que estava de oferecer os
quarenta contos; mas era tarde.
CAPITULO XC / O VELHO COLÓQUI0 DE ADÃO E CAIM
NADA. Nenhuma lembrança testamentária, uma pastilha que fosse I com que do todo em
todo não parecesse ingrato ou esquecido. Nada, Virgília travou raivosa esse malogro, e
disse-mo com certa cautela não pela cousa em si, senão porque entendia com o filho, de
quem sabia que eu não gostava muito, nem pouco. Insinuei-lhe que não devia pensar mais
em semelhante negocio. O melhor de tudo era esquecer o defunto, um lorpa, um cainho sem
nome, e tratar de cousas alegres; o nosso filho, por exemplo...
Lá me escapou a decifração do mistério, esse doce mistério de algumas semanas antes,
quando Virgília me pareceu um pouco diferente do que era. Um filho! Um ser tirado do meu
ser! Esta era a minha preocupação exclusiva daquele tempo: Olhos do mundo, zelos do
marido, morte do Viegas, nada me interessava por então, nem conflitos políticos, nem
revoluções, nem terremotos, nem nada. Eu só pensava naquele embrião anônimo, de obscura
paternidade, e uma voz secreta me dizia: é teu filho. Meu filho! E repetia estas duas
palavras, com certa voluptuosidade indefinível, e não sei que assomos de orgulho. Sentia-me
homem.
O melhor é que conversávamos os dous, o embrião e eu, falamos de cousas presentes e
futuras. O maroto amava-me, era um pelintra gracioso, dava-me pancadinhas na cara com as
mãozinhas gordas, ou então traçava a beca de bacharel, porque ele havia de ser bacharel e
fazia um discurso na Câmara dos Deputados. E o pai a ouvi-lo de uma tribuna, com os olhos
rasos de lágrimas. De bacharel passava outra vez à escola, pequenino, lousa e livros debaixo
do braço, ou então caía no berço para tornar a erguer-se homem. Em vão buscava fixar no
espírito uma idade, uma atitude: esse embrião tinha a meus olhos todos os tamanhos e
gestos: ele mamava, ele escrevia, ele valsava, ele era o interminável nos limites de um
quarto de hora, -- baby e deputado, colegial e pintalegrete. Às vezes, ao pé de Virgília,
esquecia-me dela e de tudo; Virgília sacudia-me, reprochava-me o silêncio; dizia que eu já
lhe não queria nada. A verdade é que estava em diálogo com o embrião; era o velho
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colóquio de Adão e Caim, uma conversa sem palavras entre a vida e a vida, o mistério e o
mistério.
CAPÍTULO XCI / UMA CARTA EXTRAORDINÁRIA
POR ESSE TEMPO recebi uma carta extraordinária, acompanhada de um objeto não menos
extraordinário. Eis o que a carta dizia:
Meu caro Brás Cubas,
Há tempos, no Passeio Público, tomei-lhe de empréstimo um relógio. Tenho a satisfação de
restituir-lho com esta carta. A diferença é que não é o mesmos porém outro, não digo
superior, mas igual ao primeiro. Que voulez-vous monseigneur?-- como dizia Fígaro, -- c'est
la misère. Muitas cousas se deram depois do nosso encontro; irei cortá-las pelo miúdo, se
me não fechar a porta. Saiba que já não trago aquelas botas caducas, nem envergo uma
famosa sobrecasaca cujas abas se perdiam na noite dos tempos. Cedi o meu degrau da
escada de S. Francisco; finalmente, almoço.
Dito isto, peço licença para ir um dia destes expor-lhe um trabalho, fruto de longo estudo,
um novo sistema de filosofia, que não só explica e descreve a origem e a consumação das
cousas, como faz dar um grande passo adiante de Zenon e Sêneca, cujo estoicismo era um
verdadeiro brinco de crianças ao pé da minha receita moral. E singularmente espantoso esse
meu sistema; retifica o espírito humano, suprime a dor, assegura a felicidade, e enche de
imensa glória o nosso país. Chamo-lhe Humanitismo, de Humanitas, princípio das cousas.
Minha primeira idéia revelava uma grande enfatuação; era chamar-lhe borbismo, de Borba;
denominação vaidosa, além de rude e molesta. E com certeza exprimia menos. Verá, meu
caro Brás Cubas, verá que é deveras um monumento; e se alguma cousa há que possa
fazer-me esquecer as amarguras da vida, é o gosto de haver enfim apanhado a verdade e a
felicidade. Ei-las na minha mão essas duas esquivas; após tantos séculos de lutas, pesquisas,
descobertas, sistemas e quedas, ei-las nas mãos do homem. Até breve, meu caro Brás Cubas.
Saudades do
Velho amigo
JOAQUIM BORBA DOS SANTOS.
Li esta carta sem entendê-la. Vinha com ela uma boceta contendo um bonito relógio com as
minhas iniciais gravadas, e esta frase: Lembrança do velho Quincas. Voltei à carta, reli-a
com pausa, com atenção. A restituição do relógio excluía toda a idéia de burla; a lucidez, a
serenidade, a convicção, um pouco jactanciosa, é certo, -- pareciam excluir a suspeita de
insensatez. Naturalmente o Quincas Borba herdara de algum dos seus parentes de Minas, e a
abastança devolvera-lhe a primitiva dignidade. Não digo tanto; há cousas que se não podem
reaver integralmente; mas enfim a regeneração não era impossível. Guardei a carta e o
relógio, e esperei a filosofia.
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CAPÍTULO XCII / UM HOMEM EXTRAORDINÁRIO
JÁ AGORA ACABO com as cousas extraordinárias. Vinha de guardar a carta e o relógio,
quando me procurou um homem magro e meão, com um bilhete do Cotrim, convidando-me
para jantar. O portador era casado com uma irmã do Cotrim, chegara poucos dias antes do
Norte, chamava-se Damasceno, e fizera a revolução de 1831. Foi ele mesmo que me disse
isto, no espaço de cinco minutos. Saíra de Rio de Janeiro, por desacordo com o Regente, que
era um asno, pouco menos asno do que os ministros que serviram com ele. De resto, a
revolução estava outra vez às portas. Neste ponto, conquanto trouxesse as idéias políticas
um pouco baralhadas, consegui organizar e formular o governo de suas preferências: era um
despotismo temperado, não por cantigas, como dizem alhures,--mas por penachos da guarda
nacional. Só não pude alcançar se ele queria o despotismo de um, de três. de trinta ou de
trezentos. Opinava por várias cousas, entre outras, o desenvolvimento do tráfico dos
africanos e a expulsão dos ingleses. Gostava muito de teatro; logo que chegou foi ao Teatro
de S. Pedro, onde viu um drama soberto, a Maria Joana, e uma comédia muito interessante,
Kettly, ou a Volta à Suíça. Também gostara muito da Deperini, na Safo, ou na Ana Bolena,
não se lembrava bem. Mas a Candiani! sim, senhor, era papa-fina. Agora queria ouvir o
Ernani, que a filha dele cantava em casa, ao piano: Ernani, Ernani, involami... E dizia isto
levantando-se e cantarolando a meia voz.--No Norte essas cousas chegavam como um eco.
A filha morria por ouvir todas as óperas. Tinha uma voz muito mimosa a filha. E gosto,
muito gosto. Ah! ele estava ansioso por voltar ao Rio de Janeiro. Já havia corrido a cidade
toda, com umas saudades. . . Palavra! em alguns lugares teve vontade de chorar. Mas não
embarcaria mais. Enjoara muito a bordo, como todos os outros passageiros, exceto um
inglês. . . Que os levasse o diabo os ingleses! Isto não ficava direito sem irem todos eles
barra afora. Que é que a Inglaterra podia fazer-nos? Se ele encontrasse algumas pessoas de
boa vontade, era obra de uma noite a expulsão de tais godemes... Graças a Deus, tinha
patriotismo, -- e batia no peito,-- o que não admirava porque era de família, descendia de um
antigo capitão mor muito patriota. Sim, não era nenhum pé-rapado. Viesse a ocasião, e ele
havia de mostrar de que pau era a canoa. . . Mas fazia-se tarde, ia dizer que eu não faltaria
ao jantar, e lá me esperava para maior palestra. Levei-o até à porta da sala; ele parou
dizendo que simpatizava muito comigo. Quando casara, estava eu na Europa. Conheceu meu
pai, um homem às direitas, com quem dançara num célebre baile da Praia Grande... Coisas!
coisas! Falaria depois, fazia-se tarde, tinha de ir levar a resposta ao Cotrim. Saiu; fechei-lhe
a porta...
CAPÍTULO XCIII / O JANTAR
QUE SUPLÍCIO que foi o jantar! Felizmente, Sabina fez-me sentar ao pé da filha do
Damasceno, uma D. Eulália, ou mais familiarmente Nhã-loló, moça graciosa, um tanto
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acanhada a princípio, mas só a princípio. Faltava-lhe elegância, mas compensava-a com os
olhos, que eram soberbos e só tinham o defeito de se não arrancarem de mim, exceto quando
desciam ao prato; mas Nhã-loló comia tão pouco, que quase não olhava para o prato. De
noite cantou; a voz era como dizia o pai, "muito mimosa". Não obstante, esquivei-me.
Sabina veio até à porta, e perguntou-me que tal achara a filha do Damasceno.
-- Assim, assim.
--Muito simpática, não é? acudiu ela; falta-lhe um pouco mais de corte. Mas que coração! é
uma pérola. Bem boa noiva para você.
--Não gosto de pérolas.
--Casmurro! Para quando é que você se guarda? para quando estiver a cair de maduro, já sei.
Pois, meu rico, quer você queira quer não, há de casar com Nhã-loló.
E dizia isto a bater-me na face com os dedos, meiga como uma pomba, e ao mesmo tempo
intimativa e resoluta. Santo Deus! seria esse o motivo da reconciliação? Fiquei um pouco
desconsolado com a idéia, mas uma voz misteriosa chamava-me à casa do Lobo Neves;
disse adeus a Sabina e às suas ameaças.
CAPÍTULO XCIV / A CAUSA SECRETA
--COMO ESTÁ a minha querida mamãe? A esta palavra, Virgília amuou-se, como sempre.
Estava ao canto de uma janela, sozinha, a olhar para a lua, e recebeu-me alegremente; mas
quando lhe falei no nosso filho amuou-se. Não gostava de semelhante alusão,
aborreciam-lhe as minhas antecipadas carícias paternais. Eu, para quem ela era já uma
pessoa sagrada, uma âmbula divina, deixava-a estar quieta. Supus a princípio que o embrião,
esse perfil do incógnito, projetando-se na nossa aventura, lhe restituíra a consciência do mal.
Enganava-me. Nunca Virgília me parecera mais expansiva, mais sem reservas, menos
preocupada dos outros e do marido. Não eram remorsos. Imaginei também que a concepção
seria um puro invento, um modo de prender-me a ela, recurso sem longa eficácia, que talvez
começava de oprimi-la. Não era absurda esta hipótese a minha doce Virgília mentia às
vezes, com tanta graça!
Naquela noite descobri a causa verdadeira. Era medo do parto e vexame da gravidez.
Padecera muito quando lhe nasceu o primeiro filho; e essa hora, feita de minutos de vida e
minutos de morte, dava-lhe já imaginariamente os calafrios do patíbulo. Quanto ao vexame,
complicava-se ainda da forçada privação de certos hábitos da vida elegante. Com certeza,
era isso mesmo; dei-lho a entender, repreendendo-a, um pouco em nome dos meus direitos
de pai. Virgília fitou-me; em seguida desviou os olhos e sorriu de um jeito incrédulo.
CAPÍTULO XCV / FLORES DE ANTANHO
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ONDE ESTÃO ELAS, as flores de antanho? Uma tarde, após algumas semanas de gestação,
esborou-se todo o edifício das minhas quimeras paternais. Foi-se o embrião, naquele ponto
em que se não distingue Laplace de uma tartaruga. Tive a notícia por boca do Lobo Neves,
que me deixou na sala e acompanhou o médico à alcova da frustrada mãe. Eu encostei-me à
janela, a olhar para a chácara onde verdejavam as laranjeiras sem flores. Onde iam elas as
flores de antanho?
CAPÍTULO XCVI / A CARTA ANÔNIMA
SENTI TOCAR-ME no ombro; era Lobo Neves. Encaramo-nos alguns instantes, mudos,
inconsoláveis. Indaguei de Virgília, depois ficamos a conversar uma meia hora. No fim
desse tempo, vieram trazer-lhe uma carta; ele leu-a, empalideceu muito, e fechou-a com a
mão trêmula. Creio que lhe vi fazer um gesto, como se quisesse atirar-se sobre mm; mas não
me lembra bem. O que me lembra claramente é que durante os dias seguintes recebeu-me
frio e taciturno. Enfim, Virgília contou-me tudo, daí a dias na Gamboa.
O marido mostrou-lhe a carta, logo que ela se restabeleceu. Era anônima e denunciava-nos.
Não dizia tudo; não falava, por exemplo, das nossas entrevistas externas; limitava-se a
precavê-lo contra a minha intimidade, e acrescentava que a suspeita era pública. Virgília leu
a carta e disse com indignação que era uma calúnia infame.
-- Calúnia? perguntou Lobo Neves.
--Infame.
O marido respirou; mas, tornando à carta, parece que cada palavra dela lhe fazia com o dedo
um sinal negativo, cada letra bradava contra a indignação da mulher. Esse homem, aliás
intrépido, era agora a mais frágil das criaturas. Talvez a imaginação lhe mostrou! ao longe, o
famoso olho da opinião, a fitá-lo sarcasticamente, com um ar de pulha; talvez uma boca
invisível lhe repetiu ao ouvido chufas que ele escutara ou dissera outrora. Instou com a
mulher que lhe confessasse tudo, porque tudo lhe perdoaria. Virgília compreendeu que
estava salva mostrou-se irritada com a insistência, jurou que da minha parte só ouvira
palavras de gracejo e cortesia. A carta havia de ser de algum namorado sem-ventura. E citou
alguns, -- um que a galanteara francamente, durante três semanas, outro que lhe escrevera
uma carta, e ainda outros e outros. Citava-os pelo nome, com circunstâncias, estudando os
olhos do marido, e concluiu dizendo que, para não dar margem à calúnia, tratar-me-ia de
maneira que eu não voltaria lá.
Ouvi tudo isto um pouco turbado, não pelo acréscimo de dissimulação que era preciso
empregar de ora em diante, até afastar-me inteiramente da casa do Lobo Neves, mas pela
tranqüilidade moral de Virgília, pela falta de comoção, de susto, de saudades, e até de
remorsos. Virgília notou a minha preocupação, levantou-me a cabeça, porque eu olhava
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então para o soalho, e disse-me com certa amargura:
--Você não merece os sacrifícios que lhe faço.
Não lhe disse nada; era ocioso ponderar-lhe que um pouco de desespero e terror daria à
nossa situação o sabor cáustico dos primeiros dias; mas se lho dissesse, não é impossível
que ela chegasse lenta e artificiosamente até esse pouco de desespero e terror. Não lhe disse
nada. Ela batia, nervosamente com a ponta do pé no chão; aproximei-me e beijei-a na testa.
Virgília recuou, como se fosse um beijo de defunto.
CAPÍTULO XCVII / ENTRE A BOCA E A TESTA
SINTO QUE o LEITOR estremeceu, -- ou devia estremecer. Naturalmente a última palavra
sugeriu-lhe três ou quatro reflexões. Veja bem o quadro: numa casinha da Gamboa, duas
pessoas que se amam há muito tempo, uma inclinada para a outra, a dar-lhe um beijo na
testa, e a outra a recuar, como se sentisse o contacto de uma boca de cadáver. Há aí, no
breve intervalo, entre a boca e a testa antes do beijo e depois do beijo, há aí largo espaço
para muita cousa a contração de um ressentimento,-- a ruga da desconfiança,--- ou enfim o
nariz pálido e sonolento da saciedade...
CAPÍTULO XCVIII / SUPRIMIDO
SEPARAMO-NOS alegremente. Jantei reconciliado com a situação. A carta anônima
restituía à nossa aventura o sal do mistério e a pimenta do perigo; e afinal foi bem bom que
Virgília não perdesse naquela crise a posse de si mesma. De noite fui ao Teatro de S. Pedro;
representava-se uma grande peça, em que a Estela arrancava lágrimas. Entro; corro os olhos
pelos camarotes; vejo em um deles Damasceno e a família. Trajava a filha com outra
elegância e certo apuro, cousa difícil de explicar, porque o pai ganhava apenas o necessário
para endividar-se; e daí, talvez fosse por isso mesmo.
No intervalo fui visitá-los. Damasceno recebeu-me com muitas palavras, a mulher com
muitos sorrisos. Quanto a Nhã-loló, não tirou mais os olhos de mim. Parecia-me agora mais
bonita que no dia do jantar. Achei-lhe certa suavidade etérea casada ao polido das formas
terrenas: expressão vaga, e condigna de um capítulo em que tudo há de ser vago. Realmente,
não sei como lhes diga que não me senti mal, ao pé da moça, trajando garridamente um
vestido fino, um vestido que me dava cócegas de Tartufo. Ao contemplá-lo, cobrindo casta e
redondamente o joelho, foi que eu fiz uma descoberta subtil, a saber, que a natureza previu a
vestidura humana, condição necessária ao desenvolvimento da nossa espécie. A nudez
habitua, dada a multiplicação das obras e dos cuidados do indivíduo, tenderia a embotar os
sentidos e a retardar os sexos, ao passo que o vestuário, negaceando a natureza, aguça e atrai
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as vontades, ativa-as, reprodu-las, e conseguintemente faz andar a civilização. Abençoado
uso que nos deu Otelo e os paquetes transatlânticos!
Estou com vontade de suprimir este capítulo. O declive é perigoso. Mas enfim eu escrevo as
minhas memórias e não as tuas, leitor pacato. Ao pé da graciosa donzela, parecia-me tomado
de uma sensação dupla e indefinível. Ela exprimia inteiramente a dualidade de Pascal, l'ange
et la bête, com a diferença que o jansenista não admitia a simultaneidade das duas naturezas,
ao passo que elas aí estavam bem juntinhas, -- l'ange, que dizia algumas cousas do céu,--e la
bête, que... Não; decididamente suprimo este capítulo.
CAPITULO XCIX / NA PLATÉIA
NA PLATÉIA achei Lobo Neves, de conversa com alguns amigos, falamos por alto, a frio,
constrangidos um e outro. Mas no intervalo seguinte, prestes a levantar o pano,
encontramo-nos num dos corredores, em que não havia ninguém. Ele veio a mim, com
muita afabilidade e riso, puxou-me a um dos óculos do teatro, e falamos muito,
principalmente ele, que parecia o mais tranqüilo dos homens. Cheguei a perguntar-lhe pela
mulher; respondeu que estava boa, mas torceu logo a conversação para assuntos gerais,
expansivo, quase risonho. Adivinhe quem quiser a causa da diferença eu fujo ao Damasceno
que me espreita ali da porta do camarote.
Não ouvi nada do seguinte ato, nem as palavras dos atores, nem as palmas do público.
Reclinado na cadeira, apanhava de memória os retalhos da conversação do Lobo Neves,
refazia as maneiras dele e concluía que era muito melhor a nova situação. Bastava-nos a
Gamboa. A freqüência da outra casa aguçaria as invejas. Rigorosamente podíamos
dispensar-nos de falar todos os dias; até era melhor metia a saudade de permeio nos amores.
Ao demais, eu galgara os quarenta anos, e não era nada, nem simples eleitor de paróquia.
Urgia fazer alguma cousa, ainda por amor de Virgília, que havia de ufanar-se quando visse
luzir o meu nome. . . Creio que nessa ocasião houve grandes aplausos, mas não juro; eu
pensava em outra cousa.
Multidão cujo amor cobicei até à morte, era assim que eu me vingava às vezes de ti; deixava
burburinhar em volta do meu corpo a gente humana, sem a ouvir, como o Prometeu de
Esquilo fazia aos seus verdugos. Ah! tu cuidavas encadear-me ao rochedo da tua frivolidade,
da tua indiferença, ou da tua agitação? Frágeis cadeias, amiga minha; eu rompia-as de um
gesto de Gulliver. Vulgar cousa é ir considerar no ermo. O voluptuoso, o esquisito, é
insular-se o homem no meio de um mar de gestos e palavras, de nervos e paixões,
decretar-se alheado, inacessíveI, ausente. O mais que podem dizer quando ele torna a
si,--isto é, quando torna aos outros, é que baixa do mundo da lua; mas o mundo da lua, esse
desvão luminoso e recatado do cérebro, que outra cousa é senão a afirmação desdenhosa da
nossa liberdade espiritua1? Vive Deus! Eis um bom fecho de capítulo.
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CAPÍTULO C / O CASO PROVÁVEL
SE ESSE MUNDO não fosse uma região de espíritos desatentos, era escusado lembrar ao
leitor que eu só afirmo certas leis, quando as possuo deveras; em relação a outras
restrinjo-me à admissão da probabilidade. Um exemplo da segunda classe constitui o
presente capítulo, cuja leitura recomendo a todas as pessoas que amam o estudo dos
fenômenos sociais. Segundo parece, e não é improvável, existe entre os fatos da vida pública
e os da vida particular uma certa ação reciproca, regular, e talvez periódica, -- ou para usar
de uma imagem, há alguma cousa semelhante às marés da Praia do Flamengo e de outras
igualmente marulhosas. Com efeito, quando a onda investe a praia, alaga-a muitos palmos a
dentro; mas essa mesma água torna ao mar, com variável força, e vai engrossar a onda que
há de vir, e que terá de tornar como a primeira. Esta é a imagem; vejamos a aplicação.
Deixei dito noutra página que o Lobo Neves, nomeado presidente de província, recusou a
nomeação por motivo da data do decreto que era 13; ato grave, cuja conseqüência foi
separar do ministério o marido de Virgília. Assim, o fato particular da ojeriza de um número
produziu o fenômeno da dissidência política. Resta ver como, tempos depois, um ato
político determinou na vida particular uma cessação de movimento. Não convindo ao
método deste livro descrever imediatamente esse outro fenômeno, limito-me a dizer por ora
que o Lobo Neves, quatro meses depois de nosso encontro no teatro reconciliou-se confuso
ministério; fato que o leitor não deve perder de vista, se quiser penetrar a subtileza do meu
pensamento.
CAPÍTULO CI / A REVOLUÇAO DÁLMATA
FOI VIRGÍLLA quem me deu notícia da viravolta política do marido, certa manhã de
outubro, entre onze e meio-dia; falou-me de reuniões, de conversas, de um discurso...
-- De maneira, que desta vez fica você baronesa, interrompi eu. Ela derreou os cantos da
boca, e moveu a cabeça a um e outro lado; mas esse gesto de indiferença era desmentido por
alguma cousa menos definível, menos clara, uma expressão de gosto e de esperança. Não sei
porque, imaginei que a carta imperial da nomeação podia atraí-la à virtude, não digo pela
virtude em si mesma, mas por gratidão ao marido. Que ela amava cordialmente a nobreza.
Um dos maiores desgostos de nossa vida foi o aparecimento de certo pelintra de
legação,--da legação da Dalmácia, suponhamos, --, o conde B. V., que a namorou durante
três meses. Esse homem, vero fidalgo de raça, transtornara um pouco a cabeça de Virgília,
que, além do mais, possuía a vocação diplomática. Não chego a alcançar o que seria de
mim, se não rebentasse na Dalmácia uma revolução, que derrocou o governo e purificou as
embaixadas. Foi sangrenta a revolução, dolorosa, formidável; os jornais, a cada navio que
chegava da Europa, transcreviam os horrores, mediam o sangue, contavam as cabeças; toda
a gente fremia de indignação e piedade. . . Eu não, eu abençoava interiormente essa tragédia,
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que me tirara uma pedrinha do sapato. E depois a Dalmácia era tão longe!
CAPÍTULO CII / DE REPOUSO
MAS ESTE MESMO homem, que se alegrou com a partida do outro, praticou daí a
tempos... Não, não hei de contá-lo nesta página; fique esse capítulo para repouso do meu
vexame: Uma ação grosseira, baixa, sem explicação possível. . . Repito, não contarei o caso
nesta página.
CAPÍTULO CIII / DISTRAÇÃO
NÃO, SENHOR DOUTOR, isto não se faz. Perdoe-me, isto não se faz.
Tinha razão D. Plácida. Nenhum cavalheiro chega uma hora mais tarde ao lugar em que o
espera a sua dama. Entrei esbaforido; Virgília tinha ido embora. D. Plácida contou-me que
ela esperara muito, que se irritara, que chorara, que jurara votar-me ao desprezo, e outras
mais cousas que a nossa caseira dizia com lágrimas na voz, pedindo-me que não
desamparasse Iaiá, que era ser muito injusto com uma moça que me sacrificara tudo.
Expliquei-lhe então que um equívoco... E não era, cuido que foi simples distração. Um dito,
uma conversa, uma anedota, qualquer cousa; simples distração.
Coitada de D. Plácida! Estava aflita deveras. Andava de um lado para outro, abanando a
cabeça, suspirando com estrépito, espiando pela rótula. Coitada de D. Plácida! Com que arte
conchegava as roupas, bafejava as faces, acalentava as manhas do nosso amor! que
imaginação fértil em tornar as horas mais aprazíveis e breves! Flores, doces, -- os bons
doces de outros dias, -- e muito riso, muito afago, riso e afago que cresciam com o tempo,
como se ela quisesse fixar a nossa aventura, ou restituir-lhe a primeira flor. Nada esquecia a
nossa confidente e caseira; nada, nem a mentira, porque a um e outro referia suspiros e
saudades que não presenciara; nada, nem a calúnia, porque uma vez chegou a atribuir-me
uma paixão nova.--Você sabe que não posso gostar de outra mulher, foi a minha resposta,
quando Virgília me falou em semelhante cousa. sem nenhum protesto ou admoestação,
dissipou o aleive de d. Plácida, que ficou triste.
--Está bem, disse-lhe eu depois de um quarto de hora; Virgília há de reconhecer que não tive
culpa nenhuma. . . Quer você levar-lhe uma carta agora mesmo?
-- Ela há de estar bem triste, coitadinha! Olhe, eu não desejo a morte de ninguém; mas, se o
senhor doutor algum dia chegar a casar com Iaiá, então sim, é que há de ver o anjo que ela
é!
Lembra-me que desviei o rosto e baixei os olhos ao chão. Recomendo este gesto às pessoas
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que não tiverem uma palavra pronta para responder, ou ainda às que recearem encarar a
pupila de outros olhos. Em tais casos, alguns preferem recitar uma oitava dos Lusíadas,
outros adotam o recurso de assobiar a Norma; eu atenho-me ao gesto indicado; é mais
simples, exige menos esforço.
Três dias depois, estava tudo explicado. Suponho que Virgília ficou um pouco admirada,
quando lhe pedi desculpas das lágrimas que derramara naquela triste ocasião. Nem me
lembra se interiormente as atribuí a D. Plácida. Com efeito, podia acontecer que D. Plácida
chorasse, ao vê-la desapontada, e, por um fenômeno da visão, as lágrimas que tinha nos
próprios olhos lhe parecessem cair dos olhos de Virgília. Fosse como fosse, tudo estava
explicado, mas não perdoado, e menos ainda esquecido. Virgília dizia-me uma porção de
cousas duras, ameaçava-me com a separação, enfim louvava o marido. Esse sim, era um
homem digno, muito superior a mim, delicado, um primor de cortesia e afeição; é o que ela
dizia, enquanto eu, sentado, com os braços fincados nos joelhos, olhava para o chão, onde
uma mosca arrastava uma formiga que lhe mordia o pé. Pobre mosca! pobre formiga!
Mas você não diz nada, nada? perguntou Virgília, parando diante de mim.
Que hei de dizer? Já expliquei tudo; você teima em zangar-se; que hei de dizer? Sabe que
me parece? Parece-me que você está enfastiada, que se aborrece, que quer acabar...
-- Justamente!
Foi dali pôr o chapéu, com a mão trêmula, raivosa. . . -- Adeus, D. Plácida; bradou ela para
dentro. Depois foi até à porta, correu o fecho, ia sair; agarrei-a pela cintura. -- Está bom, está
bom, disse-lhe. Virgília ainda forcejou por sair. Eu retive-a, pedi-lhe que ficasse, que
esquecesse; ela afastou-se da porta e foi cair no canapé. Sentei-me ao pé dela, disse-lhe
muitas cousas meigas, outras humildes, outras graciosas. Não afirmo se os nossos lábios
chegaram à distancia de um fio de cambraia ou ainda menos; é matéria controversa.
Lembra-me, sim, que na agitação caiu um brinco de Virgília, que eu inclinei-me a
apanhá-lo, e que a mosca de há pouco trepou ao brinco, levando sempre a formiga no pé.
Então eu, com a delicadeza nativa de um homem do nosso século, pus na palma da mão
aquele casal de mortificados; calculei toda a distância que ia da minha mão ao planeta
Saturno, e perguntei a mim mesmo que interesse podia haver num episódio tão mofino. Se
concluis daí que eu era um bárbaro, enganas-te, porque eu pedi um grampo a Virgília, a fim
de separar os dous insetos; mas a mosca farejou a minha intenção, abriu as asas e foi-se
embora. Pobre mosca! pobre formiga! E Deus viu que isto era bom, como se diz na
Escritura.
CAPÍTULO CIV / ERA ELE
RESTITUÍ o grampo a Virgília, que o repregou nos cabelos, e preparou-se para sair. Era
tarde; tinham dado três horas. Tudo estava esquecido e perdoado. D. Plácida, que espreitava
a ocasião idônea para a saída, fecha subitamente a janela e exclama:
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--Virgem Nossa Senhora! aí vem o marido de Iaiá!
O momento de terror foi curto, mas completo. Virgília fez-se da cor das rendas do vestido,
correu até a porta da alcova; D. Plácida, que fechara a rótula, queria fechar também a porta
de dentro; eu dispus-me a esperar o Lobo Neves. Esse curto instante passou. Virgília tornou
a si, empurrou-me para a alcova, disse a D. Plácida que voltasse à janela; a confidente
obedeceu.
Era ele. D. Plácida abriu-lhe a porta com muitas exclamações de pasmo: O senhor por aqui!
honrando a casa de sua velha! Entre, faça favor. Adivinhe quem está cá. . . Não tem que
adivinhar, não veio por outra cousa.... Apareça, Iaiá.
Virgília, que estava a um canto, atirou-se ao marido. Eu espreitava-os pelo buraco da
fechadura. O Lobo Neves entrou lentamente, pálido, frio, quieto, sem explosão, sem
arrebatamento, e circulou um olhar em volta da sala.
Que é isto? Exclamou Virgília. Você por aqui?
Ia passando, vi D. Plácida à janela, e vim cumprimentá-la.
Muito obrigada, acudiu esta. E digam que as velhas não valem alguma cousa... Olhai,
gentes! Iaiá parece estar com ciúmes. E acariciando-a muito: -- Este anjinho é que nunca se
esqueceu da velha Plácida. Coitadinha! É mesmo a cara da mãe... Sente-se, senhor doutor...
Não me demoro.
Você vai para casa? Disse Virgília. Vamos juntos.
Vou.
Dê cá o meu chapéu, D. Plácida.
Está aqui.
D. Plácida foi buscar um espelho, abriu-o diante dela. Virgília punha o chapéu, atava as
fitas, arranjava os cabelos, falando ao marido, que não respondia nada. A nossa boa velha
tagarelava demais, era um modo de disfarçar as tremuras do corpo. Virgília, dominado o
primeiro instante, tornara à posse de si mesma.
Pronta! Disse ela. Adeus, D. Plácida; não se esqueça de aparecer, ouviu? A outra prometeu
que sim, e abriu-lhe a porta.
CAPÍTULO CV / EQUIVALÊNCIA DAS JANELAS
D. PLÁCIDA fechou a porta e caiu numa cadeira. Eu deixei imediatamente a alcova, e dei
dous passos para sair à rua, com o fim de arrancar Virgília ao marido; foi o que disse, e em
bem que o disse, porque D. Plácida deteve-me por um braço. Tempo houve em que cheguei
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a supor que não dissera aquilo senão para que ela me detivesse; mas a simples reflexão basta
para mostrar que, depois dos dez minutos da alcova, o gesto mais genuíno e cordial não
podia ser senão esse. E isto por aquela famosa lei da equivalência das janelas, que eu tive a
satisfação de descobrir e formular, no capítulo LI. Era preciso arejar a consciência. A alcova
foi uma janela fechada; eu abri outra com o gesto de sair, e respirei.
CAPÍTULO CVI / JOGO PERIGOSO
RESPIREI e sentei-me. D. Plácida atroava a sala com exclamações e lástimas. Eu ouvia,
sem lhe dizer cousa nenhuma; refletia comigo se não era melhor Ter fechado Virgília na
alcova e ficado na sala; mas adverti logo que seria pior; confirmaria a suspeita, chegaria o
fogo à pólvora, e uma cena de sangue... Foi muito melhor assim. Mas depois? Que ia
acontecer em casa de Virgília? Matá-la-ia o marido? Espancá-la-ia? Encerrá-la-ia?
Expulsá-la-ia? Estas interrogações percorriam lentamente o meu cérebro, como os pontinhos
e vírgulas escuras percorrem o campo visual dos olhos enfermos ou cansados. Iam e
vinham, com o seu aspecto seco e trágico, e eu não podia agarrar um deles e dizer: és tu, tu e
não outro.
De repente vejo um vulto negro; era D. Plácida, que fora dentro, enfiara a mantinha, e vinha
oferecer-se-me para ir à casa de Lobo Neves. Ponderei que era arriscado, porque ele
desconfiaria da visita tão próxima.
Sossegue, interrompeu ela; eu saberei arranjar as cousas. Se ele estiver em casa não entro.
-- Saiu; eu fiquei a ruminar o sucesso e as conseqüências possíveis. Ao cabo, parecia-me
jogar um jogo perigoso, e perguntava a mim mesmo se não era tempo de levantar e
espairecer. Sentia-me tomado de uma saudade do casamento, de um desejo de canalizar a
vida. Por que não? Meu coração tinha ainda que explorar; não me sentia incapaz de um
amor casto, severo e puro. Em verdade, as aventuras são a parte torrencial e vertiginosa da
vida, isto é, a exceção; eu estava enfarado delas; não sei até se me pungia alfum remorso.
Mal pensei naquilo, deixei-me ir atrás da imaginação; vi-me logo casado, ao pé de uma
mulher adorável, diante de um baby, que dormia no regaço da ama, todos nós no fundo de
uma chácara sombria e verde, a espiarmos através da chácara uma nesga do céu azul,
extremamente azul...
CAPÍTULO CVII / BILHETE
NÃO HOUVE NADA, mas ele suspeita alguma cousa; está muito sério e não fala; agora
saiu. Sorriu uma vez somente, para Nhonhô, depois de o fitar muito tempo, carrancudo. Não
me tratou mal nem bem. Não sei o que vai acontecer; Deus queira que isto passe. Muita
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cautela, por ora, muita cautela.
CAPÍTULO CVIII / QUE SE NÃO ENTENDE
EIS AÍ O DRAMA, eis aí a ponta da orelha trágica de Shakespeare. Esse retalhinho de
papel, garatujado em partes, machucado das mãos, era um documento de análise, que eu não
farei neste capítulo, nem no outro, nem talvez em todo o resto do livro. Poderia eu tirar ao
leitor o gosto de notar por si mesmo a frieza, a perspicácia e o ânimo dessas poucas linhas
traçadas à pressa; e por trás delas a tempestade de outro cérebro, a raiva dissimulada, o
desespero que se constrange o medita, porque tem de resolver-se na lama ou no sangue, ou
nas lágrimas?
Quanto a mim, se vos disser que li o bilhete três ou quatro vezes, naquele dia, acreditai-o,
que é verdade; se vos disser mais que o reli no dia seguinte, antes e depois do almoço,
podeis crê-lo, é a realidade pura. Mas se vos disser a comoção que tive, duvidai um pouco
da asserção, e não a aceiteis sem provas. Nem então, nem ainda agora cheguei a discernir o
que experimentei. Era medo, e não era medo; era dó e não era dó; era vaidade e não era
vaidade; enfim, era amor sem amor, isto é, sem delírio; e tudo isso dava uma combinação
assaz complexa e vaga, uma cousa que Não podereis entender, como eu não entendi.
Suponhamos que não disse nada.
CAPÍTULO CIX / O FILÓSOFO
SABIDO QUE RELI a carta, antes e depois do almoço, sabido fica que almocei, e só resta
dizer que essa refeição foi das mais parcas da minha vida: um ovo, uma fatia de pão, uma
xícara de chá. Não me esqueceu esta circunstância mínima; no meio de tanta cousa
importante obliterada escapou esse almoço. A razão principal poderia se justamente o meu
desastre; mas não foi; a principal razão foi a reflexão que me fez o Quincas Borba, cuja
visita recebi naquele dia. Disse-me ele que a frugalidade não era necessária para entender o
Humanitismo, e menos ainda praticá-lo; que esta filosofia acomodava-se facilmente com os
prazeres da vida, inclusive a mesa, o espetáculo e os amores; e que, ao contrário, a
frugalidade podia indicar certa tendência para o ascetismo, o que era a expressão acabada de
tolice humana.
--Veja S. João, continuou ele; mantinha-se de gafanhotos, no deserto, em vez de engordar
tranqüilamente na cidade, e fazer emagrecer o farisaísmo na sinagoga.
Deus me livre de contar a história do Quincas Borba, que aliás ouvi toda naquela triste
ocasião, uma história longa, complicada mas interessante. E se não conto a história,
dispenso-me outrossim de descrever-lhe a figura, aliás mui diversa da que me apareceu no
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Passeio Público. Calo-me; digo somente que se a principal característica do homem não são
as feições, mas os vestuários, ele não era o Quincas Borba; era um desembargador sem beca,
um general sem farda, um negociante sem deficit. Notei-lhe a perfeição da sobrecasaca, a
alvura da camisa, o asseio das botas. A mesma voz, roufenha outrora, parecia restituída à
primitiva sonoridade. Quanto à gesticulação, sem que houvesse perdido a viveza de outro
tempo, não tinha já a desordem, sujeitava-se a um certo método. Mas eu não quero
descrevê-lo Se falasse, por exemplo, no botão de ouro que trazia ao peito, e na qualidade do
couro das botas, iniciaria uma descrição, que omito por brevidade. Contentem-se de saber
que as botas eram de verniz. Saibam mais que ele herdara alguns pares de contos de réis de
um velho tio de Barbacena.
Meu espírito, (permitam-me aqui uma comparação de criança!) meu espírito era naquela
ocasião uma espécie de peteca. A narração do Quincas Borba dava-lhe uma palmada, ele
subia- quando ia a cair, o bilhete de Virgília dava-lhe outra palmada, e ele era de novo
arremessado aos ares, descia, e o episódio do Passeio Público recebia-o com outra palmada,
igualmente rija e eficaz. Cuido que não nasci para situações complexas. Esse puxar e
empuxar de cousas opostas desequilibrava-me; tinha vontade de embrulhar o Quincas Borba
e Lobo Neves e o bilhete de Virgília na mesma filosofia, e mandá-los de presente a
Aristóteles. Contudo, era instrutiva a narração do nosso filósofo; admirava-lhe sobretudo o
talento de observação com que descrevia a gestação e o crescimento do vício, as lutas
interiores, as capitulações vagarosas, o uso da lama.
--Olhe, observou ele; a primeira noite que passei, na escada de S. Francisco, dormi-a inteira,
como se fosse a mais fina pluma. Por quê? Porque fui gradualmente da cama de esteira ao
catre de pau do quarto próprio ao corpo da guarda do corpo da guarda à rua...
Quis expor-me finalmente a filosofia; pedi-lhe que não.-- Estou muito preocupado hoje e
não poderia atendê-lo; venha depois; estou sempre em casa. Quincas Borba sorriu de um
modo malicioso; talvez soubesse da minha aventura, mas não acrescentou nada. Só me disse
estas últimas palavras à porta:
--Venha para o Humanitismo; ele é o grande regaço dos espíritos, o mar eterno em que
mergulhei para arrancar de lá a verdade. Os gregos faziam-na sair de um poço. Que
concepção mesquinha! Um poço! Mas é por isso mesmo que nunca atinaram com ela.
Gregos, subgregos, antigregos, toda a longa série dos homens tem-se debruçado sobre o
poço, para ver sair a verdade, que não está lá. Gastaram cordas e caçambas; alguns mais
afoutos desceram ao fundo e trouxeram um sapo. Eu fui diretamente ao mar. Venha para o
Humanitismo.
CAPÍTULO CX / 31
UMA SEMANA depois, Lobo Neves foi nomeado presidente de província. Agarrei-me à
esperança da recusa, se o decreto viesse outra vez datado de 13; trouxe, porém, a data de 31,
e esta simples transposição de algarismos eliminou deles a substância diabólica. Que
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profundas que são as molas da vida!
CAPÍTULO CXI / O MURO
NÃO SENDO meu costume dissimular ou esconder nada, contarei nesta página o caso do
muro. Eles estavam prestes a embarcar. Entrando em casa de D. Plácida, vi um papelinho
dobrado sobre a mesa; era um bilhete de Virgília; dizia que me esperava à noite, na chácara,
sem falta. E concluía: "O muro é baixo do lado do beco".
Fiz um gesto de desagrado. A carta pareceu-me descomunalmente audaciosa, mal pensada e
até ridícula. Não era só convidar o escândalo, era convidá-lo de parceria com a risota.
Imaginei-me a saltar o muro, embora baixo e do lado do beco; e, quando ia a galgá-lo,
via-me agarrado por um pedestre de polícia, que me levava ao corpo da guarda. O muro é
baixo! E que tinha que fosse baixo? Naturalmente Virgília não soube o que fez; era possível
que já estivesse arrependida. Olhei para o papel, um pedaço de papel amarrotado, mas
inflexível. Tive comichões de o rasgar, em trinta mil pedaços, e atirá-los ao vento, como o
último despojo da minha aventura; mas recuei a tempo; o amor-próprio, o vexame da fuga, a
idéia do medo... Não havia remédio senão ir.
--Diga-lhe que vou.
--Aonde? perguntou D. Plácida.
--Onde ela disse que me espera.
--Não me disse nada.
--Neste papel.
D. Plácida arregalou os olhos:--Mas esse papel, achei-o hoje de manhã, nesta sua gaveta, e
pensei que...
Tive uma sensação esquisita. Reli o papel, mirei-o, remirei-o; era, em verdade, um antigo
bilhete de Virgília, recebido no começo dos nossos amores, uma certa entrevista na chácara,
que me levou efetivamente a saltar o muro, um muro baixo e discreto. Guardei o papel e...
Tive uma sensação esquisita.
CAPÍTULO CXII / A OPINIÃO
MAS ESTAVA ESCRITO que esse dia devia ser o dos lances dúbios. Poucas horas depois,
encontrei Lobo Neves, na Rua do Ouvidor, falamos da presidência e da política. Ele
aproveitou o primeiro conhecido que nos passou à ilharga, e deixou-me, depois de muitos
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cumprimentos. Lembra-me que estava retraído, mas de um retraimento que forcejava por
dissimular. Pareceu-me então (e peço perdão à crítica, se este meu juízo for temerário!)
pareceu-me que ele tinha medo--não medo de mim, nem de si, nem do código, nem da
consciência; tinha medo da opinião. Supus que esse tribunal anônimo e invisível, em que
cada membro acusa e julga, era o limite posto à vontade do Lobo Neves. Talvez já não
amasse a mulher e, assim, pode ser que o coração fosse estranho à indulgência dos seus
últimos atos. Cuido (e de novo insto pela boa vontade da crítica!) cuido que ele estaria
pronto a separar-se da mulher, como o leitor se terá separado de muitas relações pessoais;
mas a opinião, essa opinião que lhe arrastaria a vida por todas as ruas, que abriria minucioso
inquérito acerca do caso, que coligiria uma a uma todas as circunstâncias, antecedências,
induções, provas, que as relataria na palestra das chácaras desocupadas, essa terrível
opinião, tão curiosa das alcovas, obstou à dispersão da família. Ao mesmo tempo tornou
impossível o desforço, que seria a divulgação. Ele não podia mostrar-se ressentido comigo,
sem igualmente buscar a separação conjugal; teve então de simular a mesma ignorância de
outrora, e, por dedução, iguais sentimentos.
Que lhe custasse creio; naqueles dias, principalmente, vi-o de modo que devia custar-lhe
muito. Mas o tempo (e é outro ponto em que eu espero a indulgência dos homens
pensadores!), o tempo caleja a sensibilidade, e oblitera a memória das cousas; era de supor
que os anos lhe despontassem os espinhos, que a distância dos fatos apagasse os respectivos
contornos, que uma sombra de dúvida retrospectiva cobrisse a nudez da realidade; enfim,
que a opinião se ocupasse um pouco com outras aventuras. O filho, crescendo, buscaria
satisfazer as ambições do pai, seria o herdeiro de todos os seus afetos. Isso, e a atividade
externa, e o prestígio público, e a velhice depois, a doença, o declínio, a morte, um responso,
uma notícia biográfica, e estava fechado o livro da vida, sem nenhuma página de sangue.
CAPÍTULO CXIII / A SOLDA
A CONCLUSÃO, se há alguma no capítulo anterior, é que a opinião é uma boa solda das
instituições domésticas. Não é impossível que eu desenvolva este pensamento, antes de
acabar o livro, mas também não é impossível que o deixe como está. De um ou de outro
modo é uma boa solda a opinião, e tanto na ordem doméstica, como na política. Alguns
metafísicos biliosos têm chegado ao extremo de a darem como simples produto da gente
chocha ou medíocre; mas é evidente que, ainda quando um conceito tão extremado não
trouxesse em si mesmo a resposta, bastava considerar os efeitos salutares da opinião, para
concluir que ela é a obra superfina da flor dos homens, a saber, do maior número.
CAPÍTULO CXIV / FIM DE UM DIÁLOGO
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--SIM, É AMANHÃ. Você vai a bordo?
--Está douda? É impossível.
--Então, adeus!
--Adeus!
--Não se esqueça de D. Plácida. Vá vê-la algumas vezes. Coitada! Foi ontem despedir-se de
nós; chorou muito, disse que eu não a veria mais. . . E uma boa criatura, não é?
--Certamente.
--Se tivermos de escrever, ela receberá as cartas. Agora até daqui a...
--Talvez dous anos?
--Qual! ele diz que é só até fazer as eleições.
--Sim? então até breve. Olhe que estão olhando para nós.
--Quem?
--Ali no sofá. Separemo-nos.
--Custa-me muito.
--Mas é preciso; adeus, Virgília!
--Até breve. Adeus!
CAPÍTULO CXV / O ALMOÇO
NÃO A VI PARTIR; mas à hora marcada senti alguma cousa que não era dor nem prazer,
uma cousa mista, alívio e saudade, tudo misturado, em iguais doses. Não se irrite o leitor
com esta confissão. Eu bem sei que, para titilar-lhe os nervos da fantasia, devia padecer um
grande desespero, derramar algumas lágrimas, e não almoçar. Seria romanesco; mas não
seria biográfico. A realidade pura é que eu almocei, como nos demais dias, acudindo ao
coração com as lembranças da minha aventura, e ao estômago com os acepipes de M.
Prudhon...
...Velhos do meu tempo, acaso vos lembrais desse mestre cozinheiro do Hotel Pharoux, um
sujeito que, segundo dizia o dono da casa, havia servido nos famosos Véry e Véfour, de
Paris, e mais nos palácios do Conde Molé e do Duque de la Rochefoucauld? Era insigne.
Entrou no Rio de Janeiro com a polca. . . A polca, M. Prudhon, o Tivoli, o baile dos
estrangeiros, o Cassino, eis algumas das melhores recordações daquele tempo; mas
sobretudo os acepipes do mestre eram deliciosos.
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Eram, e naquela manhã parece que o diabo do homem adivinhara a nossa catástrofe. Jamais
o engenho e a arte lhe foram tão propícios. Que requinte de temperos! que tenrura de carnes!
que rebuscado de formas! Comia-se com a boca, com os olhos, com o nariz. Não guardei a
conta desse dia; sei que foi cara. Ai dor! era-me preciso enterrar magnificamente os meus
amores. Eles lá iam, mar em fora no espaço e no tempo, e eu ficava-me ali numa ponta de
mesa, com os meus quarenta e tantos anos, tão vadios e tão vazios; ficava-me para os não
ver nunca mais, porque ela poderia tornar e tornou mas o eflúvio da manhã quem é que o
pediu ao crepúsculo da tarde?
CAPÍTULO CXVI / FILOSOFIA DAS FOLHAS VELHAS
FIQUEI TÃO TRISTE com o fim do último capítulo que estava capaz de não escrever este,
descansar um pouco, purgar o espírito da melancolia que o empacha, e continuar depois.
Mas não, não quero perder tempo.
A partida de Virgília deu-me uma amostra da viuvez. Nos primeiros dias meti-me em casa, a
fisgar moscas, como Domiciano, se não mente o Suetônio, mas a fisgá-las de um modo
particular: com os olhos. Fisgava-as uma a uma, no fundo de uma sala grande, estirado na
rede, com um livro aberto entre as mãos. Era tudo: saudades, ambições, um pouco de tédio,
e muito devaneio solto. Meu tio cônego morreu nesse intervalo; item, dous primos. Não me
dei por abalado levei-os ao cemitério, como quem leva dinheiro a um banco. Que digo?
como quem leva cartas ao correio: selei as cartas, meti-as na caixinha, e deixei ao carteiro o
cuidado de as entregar em mão própria. Foi também por esse tempo que nasceu minha
sobrinha Venância, filha do Cotrim. Morriam uns, nasciam outros: eu continuava às moscas.
Outras vezes agitava-me. Ia às gavetas, entornava as cartas antigas, dos amigos, dos
parentes, das namoradas, (até as de Marcela), e abria-as todas, lia-as uma a uma, e
recompunha o pretérito... Leitor ignaro, se não guardas as cartas da juventude, não
conhecerás um dia a filosofia das folhas velhas, não gostarás o prazer de ver-te, ao longe, na
penumbra, com um chapéu de três bicos, botas de sete léguas e longas barbas assírias, a
bailar ao som de uma gaita anacreôntica. Guarda as tuas cartas da juventude!
Ou, se te não apraz o chapéu de três bicos, empregarei a locução de um velho marujo,
familiar da casa de Cotrim; direi que, se guardares as cartas da juventude, acharás ocasião de
"cantar uma saudade." Parece que os nossos marujos dão este nome às cantigas de terra,
entoadas no alto mar. Como expressão poética, é o que se pode exigir mais triste.
CAPÍTULO CXVII / O HUMANITISMO
DUAS FORÇAS, porém, além de uma terceira, compeliam-me a tornar à vida agitada do
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costume: Sabina e Quincas Borba. Minha irmã encaminhou a candidatura conjugal de
Nhã-loló de um modo verdadeiramente impetuoso. Quando dei por mim estava com a moça
quase nos braços. Quanto ao Quincas Borba, expôs-me enfim o Humanitismo, sistema de
filosofia destinado a arruinar todos os demais sistemas.
--Hamanitas, dizia ele, o princípio das cousas, não é outro senão o mesmo homem repartido
por todos os homens. Conta três fases Humanitas: a estática, anterior a toda a criação; a
expansiva, começo das cousas; a dispersiva, aparecimento do homem; e contará mais uma, a
contrativa, absolção do homem e das cousas. A expansão, iniciando o universo, sugeriu a
Humanitas o desejo de o gozar, e daí a dispersão, que não é mais do que a multiplicação
personificada da substância original.
Como me não aparecesse assaz clara esta exposição, Quincas Borba desenvolveu-a de um
modo profundo, fazendo notar as grandes linhas do sistema. Explicou-me que, por um lado,
o Humanitismo ligava-se ao Bramanismo, a saber, na distribuição dos homens pelas
diferentes partes do corpo de Humanitas; mas aquilo que na religião indiana tinha apenas
uma estreita significação teológica e política, era no Humanitismo a grande lei do valor
pessoal. Assim, descender do peito ou dos rins de Humanitas, isto é, ser um forte, não era o
mesmo que descender dos cabelos ou da ponta do nariz. Daí a necessidade de cultivar e
temperar o músculo. Hércules não foi senão um símbolo antecipado do Humanitismo. Neste
ponto Quincas Borba ponderou que o paganismo poderia ter chegado à verdade, se não
houvesse amesquinhado com a parte galante dos seus mitos. Nada disso acontecerá com o
Humanitismo. Nesta igreja nova não há aventuras fáceis, nem quedas, nem tristezas, nem
alegrias pueris. O amor, por exemplo, é um sacerdócio, a reprodução um ritual. Como a vida
é o maior benefício do universo, e não há mendigo que não prefira a miséria à morte (o que
é um delicioso influxo de Humanitas), segue-se que a transmissão da vida, longe de ser uma
ocasião de galanteio, é a hora suprema da missa espiritual. Porquanto, verdadeiramente há
só uma desgraça: é não nascer.
--Imagina, por exemplo, que eu não tinha nascido, continuou o Quincas Borba; é positivo
que não teria agora o prazer de conversar contigo, comer esta batata, ir ao teatro, e para tudo
dizer numa só palavra: viver. Nota que eu não faço do homem um simples veículo de
Humanitas; não, ele é ao mesmo tempo veículo, cocheiro e passageiro; ele é o próprio
Humanitas reduzido; daí a necessidade de adorar-se a si próprio. Queres uma prova da
superioridade do meu sistema? Contempla a inveja. Não há moralista grego ou turco, cristão
ou muçulmano, que não troveje contra o sentimento da inveja. O acordo é universal, desde
os campos da Iduméia até o alto da Tijuca. Ora bem; abre mão dos velhos preconceitos,
esquece as retóricas rafadas, e estuda a inveja, esse sentimento tão subtil e tão nobre. Sendo
cada homem uma redução de Humanitas, é claro que nenhum homem é fundamentalmente
oposto a outro homem, quaisquer que sejam as aparências contrárias. Assim, por exemplo, o
algoz que executa o condenado pode excitar o vão clamor dos poetas; mas substancialmente
é Humanitas que corrige em Humanitas uma infração da lei de Humanitas. O mesmo direi
do indivíduo que estripa a outro; é uma manifestação da força de Humanitas. Nada obsta (e
há exemplos) que ele seja igualmente estripado. Se entendeste bem, facilmente
compreenderás que a inveja não é senão uma admiração que luta, e sendo a luta a grande
função do gênero humano, todos os sentimentos belicosos são os mais adequados à sua
felicidade. Daí vem que a inveja é uma virtude.
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Para que negá-lo? eu estava estupefacto. A clareza da exposição, a lógica dos princípios, o
rigor das conseqüências, tudo isso parecia superiormente grande, e foi-me preciso suspender
a conversa por alguns minutos, enquanto digeria a filosofia nova. Quincas Borba mal podia
encobrir a satisfação do triunfo. Tinha uma asa de frango no prato, e trincava-a com
filosófica serenidade. Eu fiz-lhe ainda algumas objeções, mas tão frouxas, que ele não
gastou muito tempo em destruí-las.
--Para entender bem o meu sistema, concluiu ele, importa não esquecer nunca o princípio
universal, repartido e resumido em cada homem. Olha: a guerra, que parece uma
calamidade, é uma operação conveniente, como se disséssemos o estalar dos dedos de
Humanitas; a fome (e ele chupava filosoficamente a asa do frango), a fome é uma prova a
que Humanitas submete a própria víscera. Mas eu não quero outro documento da
sublimidade do meu sistema, senão este mesmo frango. Nutriu-se de milho, que foi plantado
por um africano, suponhamos, importado de Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi
vendido; um navio o trouxe, um navio construído de madeira cortada no mato por dez ou
doze homens, levado por velas, que oito ou dez homens teceram, sem contar a cordoalha e
outras partes do aparelho náutico. Assim, este frango, que eu almocei agora mesmo, é o
resultado de uma multidão de esforços e lutas, executados com o único fim de dar mate ao
meu apetite.
Entre o queijo e o café, demonstrou-me Quincas Borba que o seu sistema era a destruição da
dor. A dor, segundo o Humanitismo, é uma pura ilusão. Quando a criança é ameaçada por
um pau, antes mesmo de ter sido espancada, fecha os olhos e treme; essa predisposição é
que constitui a base da ilusão humana, herdada e transmitida. Não basta certamente a adoção
do sistema para acabar logo com a dor, mas é indispensável, o resto é a natural evolução das
cousas. Uma vez que o homem se compenetre bem de que ele é o próprio Humanitas, não
tem mais do que remontar o pensamento à substância original para obstar qualquer sensação
dolorosa. A evolução, porém, é tão profunda, que mal se lhe podem assinar alguns milhares
de anos.
Quincas Borba leu-me daí a dias a sua grande obra. Eram quatro volumes manuscritos, de
cem páginas cada um, com letra miúda e citações latinas. O último volume compunha-se de
um tratado político, fundado no Humanitismo; era talvez a parte mais enfadonha do sistema,
posto que concebida com um formidável rigor de lógica Reorganizada a sociedade pelo
método dele, nem por isso ficavam eliminadas a guerra, a insurreição, o simples murro, a
facada anônima, a miséria, a fome, as doenças; mas sendo esses supostos flagelos
verdadeiros equívocos do entendimento, porque não passariam de movimentos externos da
substância interior, destinados a não influir sobre o homem, senão como simples quebra da
monotonia universal, claro estava que a sua existência não impediria a felicidade humana.
Mas ainda quando tais flagelos (o que era radicalmente falso) correspondessem no futuro à
concepção acanhada de antigos tempos, nem por isso ficava destruído o sistema, e por dous
motivos: 1.° porque sendo Humanitas a substância criadora e absoluta, cada indivíduo
deveria achar a maior delícia do mundo em sacrificar-se ao princípio de que descende; 2.°
porque, ainda assim, não diminuiria o poder espiritual do homem sobre a Terra, inventada
unicamente para seu recreio dele, como as estrelas, as brisas, as tâmaras e o ruibarbo.
Pangloss, dizia-me ele ao fechar o livro, não era tão tolo como o pintou Voltaire.
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CAPÍTULO CXVIII / A TERCEIRA FORÇA
A TERCEIRA FORÇA que me chamava ao bulício era o gosto de luzir, e, sobretudo, a
incapacidade de viver só. A multidão atraía-me, o aplauso namorava-me. Se a idéia do
emplasto me tem aparecido nesse tempo, quem sabe? não teria morrido logo e estaria
célebre. Mas o emplasto não veio. Veio o desejo de agitar-me em alguma cousa, com
alguma cousa e por alguma cousa.
CAPÍTULO CXIX / PARÊNTESIS
QUERO DEIXAR AQUI, entre parêntesis, meia dúzia de máximas das muitas que escrevi
por esse tempo. São bocejos de enfado; podem servir de epígrafe a discursos sem assunto:
* * *
Suporta-se com paciência a cólica do próximo.
* * *
Matamos o tempo; o tempo nos enterra.
* * *
Um cocheiro filósofo costumava dizer que o gosto da carruagem seria diminuto, se todos
andassem de carruagem.
* * *
Crê em ti; mas nem sempre duvides dos outros.
* * *
Não se compreende que um botocudo fure o beiço para enfeitá-lo com um pedaço de pau.
Esta reflexão é de um joalheiro.
* * *
Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens, que de um terceiro
andar.
CAPÍTULO CXX / COMPELLE INTRARE
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--NÃO, SENHOR, agora quer você queira, quer não, há de casar, disse-me Sabina. Que belo
futuro! Um solteirão sem filhos.
Sem filhos! A idéia de ter filhos deu-me um sobressalto; percorreu-me outra vez o fluido
misterioso. Sim, cumpria ser pai. A vida celibata podia ter certas vantagens próprias, mas
seriam tênues, e compradas a troco da solidão. Sem filhos! Não; impossível. Dispus-me a
aceitar tudo, ainda a aliança do Damasceno. Sem filhos! Não; impossível. Dispus-me a
aceitar tudo, ainda a aliança do Damasceno. Sem filhos! Como já então depositasse grande
confiança em Quincas Borba, fui Ter com ele e expus-lhe os movimentos internos da minha
paternidade. O filósofo ouviu-me com alvoroço; declarou-me que Humanitas se agitava em
meu seio; animou-me ao casamento, ponderou que eram mais alguns convivas que batiam à
porta, etc. Compelle intrare, como dizia Jesus. E não me deixou sem provar que o apólogo
evangélico não era mais do que um prenúncio do Humanitismo, erradamente interpretado
pelos padres.
CAPÍTULO CXXI / MORRO ABAIXO
No FIM de três meses, ia tudo à maravilha. O fluido, Sabina, os olhos da moça, os desejos
do pai, eram outros tantos impulsos que me levavam ao matrimônio. A lembrança de
Virgília aparecia de quando em quando, à porta, e com ela um diabo negro que me metia à
cara um espelho, no qual eu via ao longe Virgília desfeita em lágrimas mas outro diabo
vinha, cor-de-rosa, com outro espelho, em que se refletia a figura de Nhã-loló, terna,
luminosa, angélica.
Não falo dos anos. Não os sentia; acrescentarei até que os deitara fora, certo domingo, em
que fui à missa na capela do Livramento Como o Damasceno morava nos Cajueiros, eu
acompanhava-os muitas vezes à missa. O morro estava ainda nu de habitações, salvo o
velho palacete do alto, onde era a capela. Pois um domingo, ao descer com Nhã-loló pelo
braço, não sei que fenômeno se deu que fui deixando aqui dous anos, ali quatro, logo adiante
cinco, de maneira que, quando cheguei abaixo, estava com vinte anos apenas, tão lépidos
como tinham sido.
Agora, se querem saber em que circunstância se deu o fenômeno, basta-lhes ler este capítulo
até o fim. Vínhamos da missa, ela, o pai e eu. No meio do morro achamos um grupo de
homens. Damasceno que vinha ao pé de nós, percebeu o que era e adiantou-se alvoroçado;
nós fomos atrás dele. E vimos isto: homens de todas as idades tamanhos e cores, uns em
mangas de camisa, outros de jaqueta, outros metidos em sobrecasacas esfrangalhadas;
atitudes diversas uns de cócaras, outros com as mãos apoiadas nos joelhos, estes sentados
em pedras, aqueles encostados ao muro, e todos com os olhos fixos no centro, e as almas
debruçadas das pupilas.
--Que é? perguntou-me Nhã-loló.
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Fiz-lhe sinal que se calasse; abri subtilmente caminho, e todos me foram cedendo espaço,
sem que positivamente ninguém me visse. O centro tinha-lhes atado os olhos. Era uma briga
de galos. Vi os donos contendores, dous galos de esporão agudo, olho de fogo e bico afiado.
Ambos agitavam as cristas em sangue, o peito de um e de outro estava desplumado e rubro;
invadia-os o cansaço. Mas lutavam ainda, assim, olhos fitos nos olhos, bico abaixo, bico
acima, golpe deste golpe daquele, vibrantes e raivosos. Damasceno não sabia mais nada; o
espetáculo eliminou para ele todo o universo. Em vão lhe disse que era tempo de descer; ele
não respondia, não ouvia, concentrara-se no duelo. A briga de galos era uma de suas
paixões.
Foi nessa ocasião que Nhã-loló me puxou brandamente pelo braço dizendo que nos
fôssemos embora. Aceitei o conselho e vim com ela por ali abaixo. Já disse que o morro era
então desabitado; disse-lhes também que vínhamos da missa, e não lhes tendo dito que
chovia, era claro que fazia bom tempo, um sol delicioso. E forte. Tão forte que eu abri logo
o guarda-sol, segurei-o pelo centro do cabo, e inclinei-o por modo que ajuntei uma página à
filosofia do Quincas Borba: Humanitas osculou Humanitas. . . Foi assim que os anos me
vieram caindo pelo morro abaixo.
Ao sopé detivemo-nos alguns minutos, à espera de Damasceno; ele veio daí a pouco
rodeado dos apostadores, a comentar com eles a briga. Um destes, tesoureiro das apostas,
distribuía um velho maço de notas de dez tostões, que os vencedores recebiam duplamente
alegres. Quanto aos galos vinham sobraçados pelo respectivo dono. Um deles trazia a crista
tão comida e ensangüentada, que vi logo nele o vencido; mas era engano,-- o vencido era o
outro, que não trazia crista nenhuma. Ambos tinham o bico aberto, respirando a custo,
esfalfados. Os apostadores, ao contrário, vinham alegres, sem embargo das fortes comoções
da luta; biografavam os contendores, relembravam as proezas de ambos. Eu fui andando,
vexado; Nhã-loló vexadíssima.
CAPÍTULO CXXII / UMA INTENÇÃO MUI FINA
O QUE VEXAVA a Nhã-loló era o pai. A facilidade com que ele se metera com os
apostadores punha em relevo antigos costumes e afinidades sociais, e Nhã-loló chegara a
temer que tal sogro me parecesse indigno. Era notável a diferença que ela fazia de si mesma;
estudava-se e estudava-me. A vida elegante e polida atraía-a, principalmente porque lhe
parecia o meio mais seguro de ajustar as nossas pessoas. Nhã-loló observava, imitava,
adivinhava, ao mesmo tempo dava-se ao esforço de mascarar a inferioridade da família.
Naquele dia, porém, a manifestação do pai foi tamanha que a entristeceu grandemente. Eu
busquei então diverti-la do assunto, dizendo-lhe muitas chanças e motes de bom-tom; vãos
esforços, que não a alegravam mais. Era tão profundo o abatimento, tão expressivo o
desânimo, que cheguei a atribuir a Nhã-loló a intenção positiva de separar, no meu espírito,
a sua causa da causa do pai. Este sentimento pareceu-me de grande elevação; era uma
afinidade mais entre nós.
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"Não há remédio, disse eu comigo, vou arrancar esta flor a este pântano".
CAPÍTULO CXXIII / O VERDADEIRO COTRIM
NÃO OBSTANTE OS meus quarenta e tantos anos, como eu amasse a harmonia da família,
entendi não tratar o casamento sem primeiro falar ao Cotrim. Ele ouviu-me e respondeu-me
seriamente que não tinha opinião em negócio de parentes seus. Podiam supor-lhe algum
interesse, se acaso louvasse as raras prendas de Nhã-loló; por isso calava-se. Mais: estava
certo de que a sobrinha nutria por mim verdadeira paixão, mas se ela o consultasse, o seu
conselho seria negativo. Não era levado por nenhum ódio; apreciava as minhas boas
qualidades,-- não se fartava de as elogiar, como era de justiça; e pelo que respeita a
Nhã-loló, não chegaria jamais a negar que era noiva excelente; mas daí a aconselhar o
casamento ia um abismo.
-- Lavo inteiramente as mãos, concluiu ele.
-- Mas você achava outro dia que eu devia casar quanto antes.
-- Isso é outro negócio. Acho que é indispensável casar, principalmente tendo ambições
políticas. Saiba que na política o celibato é uma remora. Agora, quanto à noiva, não posso
ter voto, não quero não devo, não é de minha honra. Parece-me que Sabina foi além,
fazendo-lhe certas confidências, segundo me disse; mas em todo caso ela não é tia carnal de
Nhã-loló, como eu. Olhe... mas não...não digo...
--Diga.
--Não; não digo nada.
Talvez pareça excessivo o escrúpulo do Cotrim, a quem não souber que ele possuía um
caráter ferozmente honrado. Eu mesmo fui injusto com ele durante os anos que se seguiram
ao inventário de meu pai. Reconheço que era um modelo. Argüíam-no de avareza, e cuide
que tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de uma virtude e as virtudes devem
ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o deficit. Como era muito seco de maneiras
tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular
era o de mandar com freqüência escravos ao calabouço donde eles desciam a escorrer
sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo
longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco
mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole
original de um homem o que é puro efeito de relações sociais. A prova de que o Cotrim
tinha sentimentos pios encontrava-se no seu amor aos filhos, e na dor que padeceu quando
lhe morreu Sara, dali a alguns meses; prova irrefutável, acho eu, e não única. Era tesoureiro
de uma confraria, e irmão de várias irmandades, e até irmão remido de uma destas, o que
não se coaduna muito com a reputação da avareza; verdade é que o benefício não caíra no
chão: a irmandade (de que ele fora juiz mandara-lhe tirar o retrato a óleo. Não era perfeito,
decerto; tinha por exemplo, o sestro de mandar para os jornais a notícia de um ou outro
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benefício que praticava,--sestro repreensível ou não louvável concordo; mas ele
desculpava-se dizendo que as boas ações eram contagiosas, quando públicas; razão a que se
não pode negar algum peso. Creio mesmo (e nisto faço o seu maior elogio) que ele não
praticava, de quando em quando, esses benefícios senão com o fim de espertar a filantropia
dos outros; e se tal era o intuito, força é confessar que a publicidade tornava-se uma
condição sine qua non. Em suma, poderia dever algumas atenções, mas não devia um real a
ninguém.
CAPÍTULO CXXIV / VÁ DE INTERMÉDIO
QUE HÁ entre a vida e a morte? Uma curta ponte. Não obstante, se eu não compusesse este
capítulo, padeceria o leitor um forte abalo, assaz danoso ao efeito do livro. Saltar de um
retrato a um epitáfio, pode ser real e comum; o leitor, entretanto, não se refugia no livro,
senão para escapar à vida. Não digo que este pensamento seja meu; digo que há nele uma
dose de verdade, e que, ao menos, a forma é pinturesca. E repito: não é meu.
CAPÍTULO CXXV / EPITÁFIO
AQUI JAZ
D. EULALIA DAMASCENA DE BRITO
MORTA
AOS DEZENOVE ANOS DE IDADE
ORAI POR ELA!
CAPÍTULO CXXVI / DESCONSOLAÇÃO
O EPITÁFIO diz tudo. Vale mais do que se lhes narrasse a moléstia de Nhã-loló, a morte, o
desespero da família, o enterro. Ficam sabendo que morreu; acrescentarei que foi por
ocasião da primeira entrada da febre amarela. Não digo mais nada, a não ser que a
acompanhei até o último jazigo, e me despedi triste, mas sem lágrimas. Concluí que talvez
não a amasse deveras.
Vejam agora a que excessos pode levar uma inadvertência; doeu-me um pouco a cegueira da
epidemia que, matando à direita e à esquerda, levou também uma jovem dama, que tinha de
ser minha mulher; não cheguei a entender a necessidade da epidemia, menos ainda daquela
morte. Creio até que esta me pareceu ainda mais absurda que todas as outras mortes.
Quincas Borba, porém, explicou-me que epidemias eram úteis à espécie, embora desastrosas
para uma certa porção de indivíduos; fez-me notar que, por mais horrendo que fosse o
espetáculo, havia uma vantagem de muito peso: a sobrevivência do maior número. Chegou a
perguntar-me se, no meio do luto geral, não sentia eu algum secreto encanto em ter escapado
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às garras da peste; mas esta pergunta era tão insensata, que ficou sem resposta.
Se não contei a morte, não conto igualmente a missa do sétimo dia. A tristeza do
Damasceno era profunda; esse pobre homem parecia uma ruína. Quinze dias depois estive
com ele; continuava inconsolável, e dizia que a dor grande com que Deus o castigara fora
ainda aumentada com a que lhe infligiram os homens. Não me disse mais nada. Três
semanas depois tornou ao assunto, e então confessou-me que, no meio do desastre
irreparável, quisera ter a consolação da presença dos amigos. Doze pessoas apenas, e três
quartas partes amigos do Cotrim, acompanharam à cova o cadáver de sua querida filha. E
ele fizera expedir oitenta convites. Ponderei-lhe que as perdas eram tão gerais que bem se
podia desculpar essa desatenção aparente. Damasceno abanava a cabeça de um modo
incrédulo e triste.
--Qual! gemia ele, desampararam-me.
Cotrim, que estava presente:
--Vieram os que deveras se interessam por você e por nós. Os oitenta viriam por
formalidade, falariam da inércia do governo, das panacéias dos boticários, do preço das
casas, ou uns dos outros..
Damasceno ouviu calado, abanou outra vez a cabeça, e suspirou:
--Mas viessem!
CAPÍTULO CXXVII / FORMALIDADE
GRANDE COUSA é haver recebido do Céu uma partícula da sabedoria o dom de achar as
relações das cousas, a faculdade de as comparar e o talento de concluir! Eu tive essa
distinção psíquica, eu a agradeço ainda agora do fundo do meu sepulcro.
De fato, o homem vulgar que ouvisse a última palavra do Damasceno não se lembraria dela,
quando, tempos depois, houvesse de olhar para uma gravura representando seis damas
turcas. Pois eu lembrei-me. Eram seis damas de Constantinopla, -- modernas,-- em trajos de
rua, cara tapada, não com um espesso pano que as cobrisse deveras, mas com um véu
tenuíssimo, que simulava descobrir somente os olhos e na realidade descobria a cara inteira.
E eu achei graça a essa esperteza da faceirice muçulmana, que assim esconde o rosto,-- e
cumpre o uso,-- mas não o esconde,-- e divulga a beleza. Aparentemente, nada há entre as
damas turcas e o Damasceno; mas se tu és um espírito profundo e penetrante (e duvido
muito que me negues isso), compreenderás que, tanto num como noutro caso, surge aí a
orelha de uma rígida e meiga companheira do homem social...
Amável Formalidade, tu és, sim, o bordão da vida, o bálsamo dos corações, a medianeira
entre os homens, o vínculo da terra e do céu; tu enxugas as lágrimas de um pai, tu captas a
indulgência de um Profeta. Se a dor adormece, e a consciência se acomoda, a quem senão a
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ti, devem esse imenso benefício? A estima que passa de chapéu na cabeça não diz nada à
alma; mas a indiferença que corteja deixa-lhe uma deleitosa impressão. A razão é que, ao
contrário de uma velha fórmula absurda, não é a letra que mata; a letra dá vida o espírito é
que é objeto de controvérsia , de dúvida , de interpretação e conseguintemente de luta e de
morte. Vive tu, amável Formalidade para sossego do Damasceno e glória de Muamede.
CAPÍTULO CXXVIII / NA CÂMARA
E NOTAI BEM que eu vi a gravura turca, dous anos depois das palavras de Damasceno, e
vi-a na Câmara dos Deputados, em meio de grande burburinho, enquanto um deputado
discutia um parecer da comissão do orçamento, sendo eu também deputado. Para quem há
lido este livro é escusado encarecer a minha satisfação, e para os outros é igualmente inútil.
Era deputado, e vi a gravura turca, recostado na minha cadeira, entre um colega, que contava
uma anedota, e outro, que tirava a lápis, nas costas de uma sobrecarta, o perfil de orador. O
orador era o Lobo Neves. A onda da vida trouxe-nos à mesma praia, como duas botelhas de
náufragos, ele contendo o seu ressentimento, eu devendo conter o meu remorso; e emprego
esta forma suspensiva, dubitativa ou condicional, para o fim de dizer que efetivamente não
continha nada, a não ser a ambição de ser ministro.
CAPÍTULO CXXIX / SEM REMORSOS
NÃO TINHA remorsos. Se possuísse os aparelhos próprios, incluía neste livro uma página
de química, porque havia de decompor o remorso até os mais simples elementos, com o fim
de saber de um modo positivo e concludente por que razão Aquiles passeia à roda de Tróia o
cadáver do adversário, e lady Macbeth passeia à volta da sala a sua mancha de sangue. Mas
eu não tenho aparelhos químicos, como não tinha remorsos, tinha vontade de ser ministro de
Estado. Contudo, se hei de acabar este capítulo, direi que não quisera ser Aquiles nem lady
Macbeth; e que, a ser alguma cousa, antes Aquiles, antes passear ovante o cadáver do que a
mancha; ouvem-se no fim as súplicas de Príamo, e ganha-se uma bonita reputação militar e
literária. Eu não ouvia as súplicas de Príamo, mas o discurso do Lobo Neves, e não tinha
remorsos.
CAPÍTULO CXXX / PARA INTERCALAR NO CAP. CXXIX
A PRIMEIRA VEZ que pude falar a Virgília, depois da presidência, foi num baile em 1855.
Trazia um soberbo vestido de gorgorão azul, e ostentava às luzes o mesmo par de ombros de
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outro tempo. Não era a frescura da primeira idade; ao contrário; mas ainda estava formosa
de uma formosura outoniça, realçada pela noite. Lembra-me que falamos muito, sem aludir
a cousa nenhuma do passado. Subentendia-se tudo. Um dito remoto, vago, ou então um
olhar, e mais nada. Pouco depois retirou-se; eu fui vê-la descer as escadas, e não sei por que
fenômeno de ventriloquismo cerebral (perdoem-me os filólogos essa frase bárbara)
murmurei comigo esta palavra profundamente retrospectiva:
"Magnífica!"
Convém intercalar este capítulo entre a primeira oração e a segunda do capítulo CXXIX.
CAPÍTULO CXXXI / DE UMA CALÔNIA
COMO EU ACABAVA de dizer aquilo, pelo processo ventríloquo-cerebral,-- o que era
simples opinião e não remorso, -- senti que alguém me punha a mão no ombro. Voltei-me;
era um antigo companheiro, oficial de marinha, jovial, um pouco despejado de maneiras. Ele
sorriu maliciosamente, e disse-me:
--Seu maganão! Recordações do passado, hein?
--Viva o passado!
--Você naturalmente foi reintegrado no emprego.
--Salta, pelintra! disse eu, ameaçando-o com o dedo.
Confesso que este diálogo era uma indiscrição,-- principalmente a última réplica. E com
tanto maior prazer o confesso, quanto que as mulheres é que têm fama de indiscretas, e não
quero acabar o livro sem retificar essa noção do espírito humano. Em pontos de aventura
amorosa, achei homens que sorriam, ou negavam a custo de um modo frio, monossilábico,
etc., ao passo que as parceiras não davam por si, e jurariam aos Santos Evangelhos que era
tudo uma calúnia. A razão desta diferença é que a mulher (salva a hipótese do capítulo CI e
outras) entrega-se por amor, ou seja o amor paixão de Stendhal, ou o puramente físico de
algumas damas romanas, por exemplo, ou polinésias, lapônias, cafres, e pode ser que outras
raças civilizadas; mas o homem,--falo do homem de uma sociedade culta e elegante,--o
homem conjuga a sua vaidade ao outro sentimento. Além disso (e refiro-me sempre aos
casos defesos) a mulher, quando ama outro homem, parece-lhe que mente a um dever, e
portanto tem de dissimular com arte maior, tem de refinar a aleivosia; ao passo que o
homem, sentindo-se causa da infração e vencedor de outro homem, fica legitimamente
orgulhoso, e logo passa a outro sentimento menos ríspido e menos secreto,-- essa boa
fatuidade, que é a transpiração luminosa do mérito.
Mas seja ou não verdadeira a minha explicação, basta-me deixar escrito nesta página, para
uso dos séculos, que a indiscrição das mulheres é uma burla inventada pelos homens; em
amor, pelo menos, elas são um verdadeiro sepulcro. Perdem-se muita vez por desastradas,
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por inquietas, por não saberem resistir aos gestos, aos olhares; e é por isso que uma grande
dama e fino espírito, a rainha de Navarra, empregou algures esta metáfora para dizer que
toda a aventura amorosa vinha descobrir-se por força, mais tarde ou mais cedo "Não há
cachorrinho tão adestrado, que alfim lhe não ouçamos o latir".
CAPÍTULO CXXXII / QUE NÃO É SÉRIO
CITANDO o dito da rainha de Navarra, ocorre-me que entre o nosso povo, quando uma
pessoa vê outra pessoa arrufada, costuma perguntar-lhe: "Gentes, quem matou seus
cachorrinhos?" como se dissesse: --"quem lhe levou os amores, as aventuras secretas, etc."
Mas este capítulo não é sério.
CAPÍTULO CXXXIII / O PRINCÍPI0 DE HELVETIUS
ESTÁVAMOS no ponto em que o oficial de marinha me arrancou a confissão dos amores
de Virgília, e aqui emendo eu o princípio de Helvetius, -- ou, por outra, explico-o. O meu
interesse era calar; confirmar a suspeita de uma cousa antiga fora provocar algum ódio
sopitado, dar origem a um escândalo, quando menos adquirir a reputação de indiscreto. Era
esse o interesse; e entendendo-se o princípio de Helvetius de um modo superficial, isso é o
que devia ter feito Mas eu já dei o motivo da indiscrição masculina; antes daquele interesse
de segurança, havia outro, o do desvanecimento, que é mais íntimo, mais imediato: o
primeiro era reflexivo, supunha um silogismo anterior; o segundo era espontâneo, instintivo,
vinha das entranhas do sujeito; finalmente, o primeiro tinha o efeito remoto, o segundo
próximo. Conclusão: o princípio de Helvetius é verdadeiro no meu caso; -- a diferença é que
não era o interesse aparente, mas o recôndito.
CAPÍTULO CXXXIV / CINQUENTA ANOS
NÃO LHES DISSE ainda,-- mas digo-o agora,-- que quando Virgília descia a escada, e o
oficial de marinha me tocava no ombro, tinha eu cinqüenta anos. Era portanto a minha vida
que descia pela escada abaixo,-- ou a melhor parte, ao menos, uma parte cheia de prazeres,
de agitações, de sustos,-- capeada de dissimulação e duplicidade,-- mas enfim a melhor, se
devemos falar a linguagem usual. Se, porém, empregarmos outra mais sublime, a melhor
parte foi a restante, como eu terei a honra de lhes dizer nas poucas páginas deste livro.
Cinqüenta anos! Não era preciso confessá-lo. Já se vai sentindo que o meu estilo não é tão
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lesto como nos primeiros dias. Naquela ocasião, cessado o diálogo com o oficial de marinha,
que enfiou a capa e saiu, confesso que fiquei um pouco triste. Voltei à sala, lembrou-me
dançar uma polca, embriagar-me das luzes, das flores, dos cristais, dos olhos bonitos, e do
burburinho surdo e ligeiro das conversas particulares. E não me arrependo; remocei. Mas,
meia hora depois, quando me retirei do baile, às quatro da manhã, o que é que fui achar no
fundo do carro? Os meus cinqüenta anos. Lá estavam eles os teimosos, não tolhidos de frio,
nem reumáticos,-- mas cochilando a sua fadiga, um pouco cobiçosos de cama e de repouso.
Então, -- e vejam até que ponto pode ir a imaginação de um homem, com sono,-- então
pareceu-me ouvir de um morcego escarapitado no tejadilho: Sr. Brás Cubas, a
rejuvenescência estava na sala, nos cristais, nas luzes, nas sedas,-- enfim, nos outros.
CAPÍTULO CXXXV / OBLIVION
E AGORA SINTO que, se alguma dama tem seguido estas páginas, fecha o livro e não lê as
restantes. Para ela extinguiu-se o interesse da minha vida, que era o amor. Cinqüenta anos!
Não é ainda a invalidez, mas já não é a frescura. Venham mais dez, e eu entenderei o que
um inglês dizia, entenderei que "cousa é não achar já quem se lembre de meus pais, e de que
modo me há de encarar o próprio ESQUECIMENTO."
Vai em versaletes esse nome. OBLIVION! Justo é que se dêem todas as honras a um
personagem tão desprezado e tão digno, conviva da última hora, mas certo. Sabe-o a dama
que luziu na aurora do atual reinado, e mais dolorosamente a que ostentou suas graças em
flor sob o Ministério Paraná, porque esta acha-se mais perto do triunfo, e sente já que outras
lhe tomaram o carro. Então, se é digna de si mesma, não teima em espertar a lembrança
morta ou expirante; não busca no olhar de hoje a mesma saudação do olhar de ontem,
quando eram outros os que encetavam a marcha da vida, de alma alegre e pé veloz. Tempora
mutantur. Compreende que este turbilhão é assim mesmo, leva as folhas do mato e os
farrapos do caminho, sem exceção nem piedade; e se tiver um pouco de filosofia, não
inveja, mas lastima as que lhe tomaram o carro, porque também elas hão de ser apeadas pelo
estribeiro OBLIVION. Espetáculo, cujo fim é divertir o planeta Saturno, que anda muito
aborrecido.
CAPÍTULO CXXXVI / INUTlLIDADE
MAS, OU MUITO me engano, ou acabo de escrever um capítulo inútil
CAPÍTULO CXXXVII / A BARRETINA
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E DAÍ, NÃO; ele resume as reflexões que fiz no dia seguinte ao Quincas Borba,
acrescentando que me sentia acabrunhado, e mil outras cousas tristes. Mas esse filósofo,
com o elevado tino de que dispunha, bradou-me que eu ia escorregando na ladeira fatal da
melancolia.
--Meu caro Brás Cubas, não te deixes vencer desses vapores. Que diacho! é preciso ser
homem! ser forte! lutar! vencer! brilhar! influir! dominar! Cinqüenta anos é a idade da
ciência e do governo. Animo, Brás Cubas; não me sejas palerma. Que tens tu com essa
sucessão de ruína a ruína ou de flor a flor? Trata de saborear a vida; e fica sabendo que a
pior filosofia é a do choramigas que se deita à margem do rio para o fim de lastimar o curso
incessante das águas. O ofício delas é não parar nunca; acomoda-te com a lei, e trata de
aproveitá-la.
Vê-se nas menores cousas o que vale a autoridade de um grande filósofo. As palavras do
Quincas Borba tiveram o condão de sacudir o torpor moral e mental em que andava. Vamos
lá; façamo-nos governo, é tempo. Eu não havia intervindo até então nos grandes debates.
Cortejava a pasta por meio de rapapés, chás, comissões e votos; e a pasta não vinha. Urgia
apoderar-me da tribuna.
Comecei devagar. Três dias depois, discutindo-se o orçamento da justiça, aproveitei o ensejo
para perguntar modestamente ao ministro se não julgava útil diminuir a barretina da guarda
nacional. Não tinha vasto alcance o objeto da pergunta, mas ainda assim demonstrei que não
era indigno das cogitações de um homem de Estado; e citei Filopêmen, que ordenou a
substituição dos broquéis de suas tropas, que eram pequenos, por outros maiores, e bem
assim as lanças, que eram demasiado leves; fato que a história não achou que desmentisse a
gravidade de suas páginas. O tamanho das nossas barretinas estava pedindo um corte
profundo, não só por serem deselegantes, mas também por serem anti-higiênicas. Nas
paradas, ao sol, o excesso de calor produzido por elas podia ser fatal. Sendo certo que um
dos preceitos de Hipócrates era trazer a cabeça fresca, parecia cruel obrigar um cidadão, por
simples consideração de uniforme, a arriscar a saúde e a vida, e conseqüentemente o futuro
da família. A câmara e o governo deviam lembrar-se que a guarda nacional era o anteparo
da liberdade e da independência, e que o cidadão, chamado a um serviço gratuito, freqüente
e penoso, tinha direito a que se lhe diminuísse o ônus, decretando um uniforme leve e
maneiro. Acrescia que a barretina, por seu peso, abatia a cabeça dos cidadãos, e a pátria
precisava de cidadãos cuja fronte pudesse levantar-se altiva e serena diante do poder; e
concluí com esta idéia: O chorão, que inclina os seus galhos para a terra, é árvore de
cemitério; a palmeira, erecta e firme, é árvore do deserto, das praças e dos jardins.
Vária foi a impressão deste discurso. Quanto à forma, ao rapto eloqüente, à parte literária e
filosófica, a opinião foi só uma; disseram-me todos que era completo, e que de uma
barretina ninguém ainda conseguira tirar tantas idéias. Mas a parte política foi considerada
por muitos deplorável; alguns achavam o meu discurso um desastre parlamentar; enfim,
vieram dizer-me que outros me davam já em oposição, entrando nesse número os
oposicionistas da câmara, que chegaram a insinuar a conveniência de uma moção de
desconfiança. Repeli energicamente tal interpretação, que não era só errônea, mas caluniosa,
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à vista da notoriedade com que eu sustentava o gabinete; acrescentei que a necessidade de
diminuir a barretina não era tamanha que não pudesse esperar alguns anos; e que; em todo
caso, eu transigiria na extensão do corte, contentando-me com três quartos de polegada ou
menos; enfim dado mesmo que a minha idéia não fosse adotada, bastava-me tê-la iniciado
no parlamento.
Quincas Borba, porém, não fez restrição alguma. Não sou homem político, disse-me ele ao
jantar; não sei se andaste bem ou mal; sei que fizeste um excelente discurso. E então notou
as partes mais salientes, as belas imagens, os argumentos fortes, com esse comedimento de
louvor que tão bem fica a um grande filósofo; depois, tomou o assunto à sua conta, e
impugnou a barretina com tal força, com tamanha lucidez, que acabou convencendo-me
efetivamente do seu perigo.
CAPÍTULO CXXXVIII / A UM CRÍTICO
Meu caro crítico,
Algumas páginas atrás, dizendo eu que tinha cinqüenta anos, acrescentei: "Já se vai sentindo
que o meu estilo não é tão lesto como nos primeiros dias". Talvez aches esta frase
incompreensível, sabendo-se o meu atual estado; mas eu chamo a tua atenção para a
subtileza daquele pensamento. o que eu quero dizer não é que esteja agora mais velho do
que quando comecei o livro. A morte não envelhece. Quero dizer, sim, que em cada fase da
narração da minha vida experimento a sensação correspondente. Valha-me Deus! é preciso
explicar tudo.
CAPÍTULO CXXXIX / DE COMO NÃO FUI MINISTRO
D'ESTADO
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CAPÍTULO CXL / QUE EXPLICA O ANTERIOR
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HÁ COUSAS que melhor se dizem calando; tal é a matéria do capítulo anterior. Podem
entendê-lo os ambiciosos malogrados Se a paixão do poder é a mais forte de todas, como
alguns inculcam, imaginem o desespero, a dor, o abatimento do dia em que perdi a cadeira
da Câmara dos Deputados. Iam-se-me as esperanças todas; terminava a carreira política. E
notem que o Quincas Borba, por induções filosóficas que fez, achou que a minha ambição
não era a paixão verdadeira do poder, mas um capricho, um desejo de folgar. Na opinião
dele, este sentimento, não sendo mais profundo que o outro, amofina muito mais, porque
orça pelo amor que as mulheres têm às rendas e toucados. Um Cromwell ou um Bonaparte,
acrescentava ele, por isso mesmo que os queima a paixão do poder, lá chegam à fina força
ou pela escada da direita, ou pela da esquerda. Não era assim o meu sentimento; este, não
tendo em si a mesma força, não tem a mesma certeza do resultado; e daí a maior aflição, o
maior desencanto, a maior tristeza. O meu sentimento, segundo o Humanitismo.
--Vai para o diabo com o teu Humanitismo, interrompi-o, estou farto de filosofias que me
não levam a cousa nenhuma.
A dureza da interrupção, tratando-se de tamanho filósofo, equivalia a um desacato; mas ele
próprio desculpou a irritação com que lhe falei. Trouxeram-nos café; era uma hora da tarde,
estávamos na minha sala de estudo, uma bela sala, que dava para o fundo da chácara, bons
livros, objetos d'arte, um Voltaire entre eles, um Voltaire de bronze, que nessa ocasião
parecia acentuar o risinho de sarcasmo, com que me olhava, o ladrão, cadeiras excelentes;
fora, o sol, um grande sol, que o Quincas Borba, não sei se por chalaça ou poesia, chamou
um dos ministros da natureza; corria um vento fresco, o céu estava azul. De cada janela,--
eram três -- pendia uma gaiola com pássaros, que chilreavam as suas óperas rústicas. Tudo
tinha a aparência de uma conspiração das cousas contra o homem: e, conquanto eu estivesse
na minha sala, olhando para a minha chácara, sentado na minha cadeira, ouvindo os meus
pássaros, ao pé dos meus livros, alumiado pelo meu sol, não chegava a curar-me das
saudades daquela outra cadeira, que não era minha.
CAPÍTULO CXLI / OS CÃES
--MAS, ENFIM, que pretendes fazer agora? perguntou-me Quincas Borba, indo pôr a xícara
vazia no parapeito de uma das janelas.
--Não sei, vou meter-me na Tijuca, fugir aos homens. Estou envergonhado, aborrecido.
Tantos sonhos, meu caro Borba, tantos sonhos, e não sou nada.
--Nada! interrompeu-me Quincas Borba com um gesto de indignação.
Para distrair-me, convidou-me a sair, saímos para os lados do Engenho Velho. Fomos a pé,
filosofando as cousas. Nunca me há de esquecer o benefício desse passeio. A palavra
daquele grande homem era o cordial da sabedoria. Disse-me ele que eu não podia fugir ao
combate; se me fechavam a tribuna, cumpria-me abrir um jornal. Chegou a usar uma
expressão menos elevada, mostrando assim que a língua filosófica podia uma ou outra vez,
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retemperar-se no calão do povo. Funda um jornal, disse-me ele, e "desmancha toda esta
igrejinha".
--Magnífica idéia! Vou fundar um jornal, vou escachá-los, vou . . .
--Lutar. Podes escachá-los ou não, o essencial é que lutes. Vida é luta. Vida sem luta é um
mar morto no centro do organismo universal.
Daí a pouco demos com uma briga de cães, fato que aos olhos de um homem vulgar não
teria valor. Quincas Borba fez-me parar e observar os cães. Eram dous. Notou que ao pé
deles estava um osso, motivo da guerra, e não deixou de chamar a minha atenção para a
circunstância de que o osso não tinha carne. Um simples osso nu. Os cães mordiam-se,
rosnavam, com o furor nos olhos. . . Quincas Borba meteu a bengala debaixo do braço, e
parecia em êxtase.
--Que belo que isto é! dizia ele de quando em quando. Quis arrancá-lo dali, mas não pude;
ele estava arraigado ao chão, e só continuou a andar, quando a briga cessou inteiramente, e
um dos cães, mordido e vencido, foi levar a sua fome a outra parte. Notei que ficara
sinceramente alegre, posto contivesse a alegria, segundo convinha a um grande filósofo.
Fez-me observar a beleza do espetáculo, relembrou o objeto da luta, concluiu que os cães
tinham fome mas a privação do alimento era nada para os efeitos gerais da filosofia. Nem
deixou de recordar que em algumas partes do globo o espetáculo mais é grandioso: as
criaturas humanas é que disputam aos cães os ossos e outros manjares menos apetecíveis
luta que se complica muito, porque entra em ação a inteligência do homem, com todo o
acúmulo de sagacidade que lhe deram os séculos, etc.
CAPÍTULO CXLII / O PEDIDO SECRETO
QUANTA COUSA num minuete! como dizia o outro. Quanta cousa numa briga de cães!
Mas eu não era um discípulo servil ou medroso que deixasse de fazer uma ou outra objeção
adequada. Andando, disse-lhe que tinha uma dúvida; não estava bem certo da vantagem de
disputar a comida aos cães. Ele respondeu-me com excepcional brandura:
--Disputá-la aos outros homens é mais lógico, porque a condição dos contendores é a
mesma, e leva o osso o que for mais forte. Mas por que não será um espetáculo grandioso
disputá-lo aos cães? Voluntariamente, comem-se gafanhotos, como o Precursor, ou cousa
pior, como Ezequiel; logo, o ruim é comível; resta saber se é mais digno do homem
disputá-lo, por virtude de uma necessidade natural, ou preferi-lo, para obedecer a uma
exaltação religiosa, isto é, modificável, ao passo que a fome é eterna, como a vida e como a
morte.
Estávamos à porta de casa; deram-me uma carta, dizendo que vinha de uma senhora.
Entramos, e o Quincas Borba, com a discrição própria de um filósofo, foi ler a lombada dos
livros de uma estante, enquanto eu lia a carta, que era de Virgília:
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Meu bom amigo,
D. Plácida está muito mal. Peço-lhe o favor de fazer alguma cousa por ela; mora no Beco
das Escadinhas; veja se alcança metê-la na Misericórdia.
Sua amiga sincera,
Não era a letra fina e correta de Virgília, mas grossa e desigual; o V da assinatura não
passava de um rabisco sem intenção alfabética de maneira que, se a carta aparecesse, era
mui difícil atribuir-lhe a autoria. Virei e revirei o papel. Pobre D. Plácida! Mas eu tinha-lhe
deixado os cinco contos da Praia de Botafogo, e não podia compreender que...
--Vais compreender, disse Quincas Borba, tirando um livro da estante.
--O quê? perguntei espantado.
--Vais compreender que eu só te disse a verdade. Pascal é um dos meus avôs espirituais; e,
conquanto a minha filosofia valha mais que a dele, não posso negar que era um grande
homem. Ora, que diz ele nesta página?--E, chapéu na cabeça, bengala sobraçada apontava o
lugar com o dedo.--Que diz ele? Diz que o homem tem "uma grande vantagem sobre o resto
do universo: sabe que morre, ao passo que o universo ignora-o absolutamente". Vês? Logo o
homem que disputa o osso a um cão tem sobre este a grande vantagem de saber que tem
fome; e é isto que torna grandiosa a luta, como eu dizia. "Sabe que morre" é uma expressão
profunda; creio todavia que é mais profunda a minha expressão: sabe que tem fome.
Porquanto o fato da morte limita, por assim dizer, o entendimento humano; a consciência da
extinção dura um breve instante e acaba para nunca mais, ao passo que a fome tem a
vantagem de voltar, de prolongar o estado consciente. Parece-me (se não vai nisso alguma
imodéstia) que a fórmula de Pascal é inferior à minha, sem todavia deixar de ser um grande
pensamento, e Pascal um grande homem.
CAPÍTULO CXLIII / NÃO VOU
ENQUANTO ELE restituía o livro à estante, relia eu o bilhete. Ao jantar, vendo que eu
falava pouco, mastigava sem acabar de engolir, fitava o canto da sala, a ponta da mesa, um
prato, uma cadeira, uma mosca invisível, disse-me ele: --Tens alguma cousa; aposto que foi
aquela carta?--Foi. Realmente, sentia-me aborrecido, incomodado com o pedido de Virgília.
Tinha dado a D. Plácida cinco contos de réis; duvido muito que ninguém fosse mais
generoso do que eu, nem tanto. Cinco contos! E que fizera deles? Naturalmente botou-os
fora, comeu-os em grandes festas, e agora toca para a Misericórdia, e eu que a leve!
Morre-se em qualquer parte. Acresce que eu não sabia ou não me lembrava do tal Beco das
Escadinhas; mas, pelo nome, parecia-me algum recanto estreito e escuro da cidade. Tinha de
lá ir, chamar a atenção dos vizinhos, bater à porta, etc. Que maçada! Não vou.
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CAPÍTULO CXLIV / UTILIDADE RELATIVA
MAS A NOITE, que é boa conselheira, ponderou que a cortesia mandava obedecer aos
desejos da minha antiga dama.
--Letras vencidas, urge pagá-las, disse eu ao levantar-me.
Depois do almoço fui à casa de D. Plácida; achei um molho de ossos, envolto em molambos,
estendido sobre um catre velho e nauseabundo; dei-lhe algum dinheiro. No dia seguinte fi-la
transportar para a Misericórdia, onde ela morreu uma semana depois. Minto: amanheceu
morta; saiu da vida às escondidas, tal qual entrara. Outra vez perguntei, a mim mesmo,
como no capítulo LXXV, se era para isto que o sacristão da Sé e a doceira trouxeram Dona
Plácida à luz, num momento de simpatia específica. Mas adverti logo que, se não fosse D.
Plácida, talvez os meus amores com Virgília tivessem sido interrompidos, ou imediatamente
quebrados, em plena efervescência; tal foi, portanto, a utilidade da vida de D. Plácida.
Utilidade relativa, convenho; mas que diacho há absoluto nesse mundo?
CAPÍTULO CXLV / SIMPLES REPETIÇÃO
QUANTO AOS CINCO contos, não vale a pena dizer que um carteiro da vizinhança
fingiu-se enamorado de D. Plácida, logrou espertar-lhe os sentidos, ou a vaidade, e casou
com ela; no fim de alguns meses inventou um negócio, vendeu as apólices e fugiu com o
dinheiro. Não vale a pena. É o caso dos cães do Quincas Borba. Simples repetição de um
capítulo.
CAPÍTULO CXLVI / O PROGRAMA
URGIA FUNDAR O jornal. Redigi o programa, que era uma aplicação política do
Humanitismo; somente, como o Quincas Borba não houvesse ainda publicado o livro (que
aperfeiçoava de ano em ano), assentamos de lhe não fazer nenhuma referência. Quincas
Borba exigiu apenas uma declaração, autógrafa e reservada, de que alguns princípios novos
aplicados à política eram tirados do livro dele, ainda inédito.
Era a fina flor dos programas; prometia curar a sociedade, destruir os abusos, defender os
sãos princípios de liberdade e conservação; fazia um apelo ao comércio e à lavoura; citava
Guizot e Ledru Rollin, e acabava com esta ameaça, que o Quincas Borba achou mesquinha e
local: "A nova doutrina que professamos há de inevitavelmente derribar o atual ministério".
Confesso que, nas circunstâncias políticas da ocasião, o programa pareceu-me uma
obra-prima. A ameaça do fim, que o Quincas Borba achou mesquinha, demonstrei-lhe que
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era saturada do mais puro Humanitismo, e ele mesmo o confessou depois. Porquanto, o
Humanitismo não excluía nada; as guerras de Napoleão e uma contenda de cabras eram,
segundo a nossa doutrina, a mesma sublimidade, com a diferença que os soldados de
Napoleão sabiam que morriam, cousa que aparentemente não acontece às cabras. Ora, eu
não fazia mais do que aplicar às circunstâncias a nossa fórmula filosófica: Humanitas queria
substituir Humanitas para consolação de Humanitas.
--Tu és o meu discípulo amado, o meu califa, bradou Quincas Borba, com uma nota de
ternura, que até então lhe não ouvira. Posso dizer como o grande Muamede: nem que
venham agora contra mim o Sol e a Lua, não recuarei das minhas idéias. Crê, meu caro Brás
Cubas, que esta é a verdade eterna, anterior aos mundos, posterior aos séculos.
CAPÍTULO CXLVII / O DESATINO
MANDEI LOGO para a imprensa uma notícia discreta, dizendo que provavelmente
começaria a publicação de um jornal oposicionista, daí a algumas semanas, redigido pelo
Dr. Brás Cubas. Quincas Borba, a quem li a notícia, pegou da pena, e acrescentou ao meu
nome com uma fraternidade verdadeiramente humanística, esta frase: "um dos mais
gloriosos membros da passada câmara".
No dia seguinte entra-me em casa o Cotrim. Vinha um pouco transtornado, mas
dissimulava, afetando sossego e até alegria. Vira a notícia do jornal, e achou que devia,
como amigo e parente, dissuadir-me de semelhante idéia. Era um erro, um erro fatal.
Mostrou que eu ia colocar-me numa situação difícil, e de certa maneira trancar as portas do
parlamento. O ministério, não só lhe parecia excelente, o que aliás podia não ser a minha
opinião, mas com certeza viveria muito, e que podia eu ganhar com indispô-lo contra mim?
Sabia que alguns dos ministros me eram afeiçoados; não era impossível uma vaga, e...
Interrompi-o nesse ponto, para lhe dizer que meditara muito o passo que ia dar, e não podia
recuar uma linha. Cheguei a propor-lhe a leitura do programa, mas ele recusou
energicamente, dizendo que não queria ter a mínima parte no meu desatino.
-- É um verdadeiro desatino, repetiu ele; pense ainda alguns dias, e verá que é um desatino.
A mesma cousa disse Sabina, à noite, no teatro. Deixou a filha no camorote, com o Cotrim,
e trouxe-me ao corredor.
-- Mano Brás, que é que você vai fazer? perguntou-me aflita. Que idéia é essa de provocar o
governo, sem necessidade, quando podia . . .
Expliquei-lhe que não me convinha mendigar uma cadeira no parlamento; que a minha idéia
era derribar o ministério, por não me parecer adequado à situação -- e a certa fórmula
filosófica; afiancei que empregaria sempre uma linguagem cortês, embora enérgica. A
violência não era especiaria do meu paladar. Sabina bateu com o leque na ponta dos dedos,
abanou a cabeça, e tornou ao assunto com um ar de súplica e ameaça, alternadamente; eu
disse-lhe que não, que não, e que não. Desenganada, lançou-me em rosto preferi os
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conselhos de pessoas estranhas e invejosas aos dela e do marido. -- Pois siga o que lhe
parecer, concluiu; nós cumprimos a nossa obrigação.--Deu-me as costas e voltou ao
camarote.
CAPÍTULO CXLVIII / O PROBLEMA INSOLÚVEL
PUBLIQUEI o jornal. Vinte e quatro horas depois, aparecia em outros uma declaração do
Cotrim, dizendo, em substância, que "posto não militasse em nenhum dos partidos em que
se dividia a pátria, achava conveniente deixar bem claro que não tinha influência nem parte
direta ou indireta na folha de seu cunhado, o Dr. Brás Cubas, cujas idéias e procedimento
político inteiramente reprovava. O atual ministério (como aliás qualquer outro composto de
iguais capacidades) parecia-lhe destinado a promover a felicidade pública".
Não podia acabar de crer nos meus olhos. Esfreguei-os uma e duas vezes, e reli a declaração
inoportuna, insólita e enigmática. Se ele nada tinha com os partidos, que lhe importava um
incidente tão vulgar como a publicação de uma folha? Nem todos os cidadãos que acham
bom ou mau um ministério fazem declarações tais pela imprensa, nem são obrigados a
fazê-las. Realmente, era um mistério a intrusão do Cotrim neste negócio, não menos que a
sua agressão pessoal. Nossas relações até então tinham sido Ihanas e benévolas; não me
lembrava nenhum dissentimento, nenhuma sombra, nada, depois da reconciliação. Ao
contrário, as recordações eram de verdadeiros obséquios; assim, por exemplo, sendo eu
deputado, pude obter-lhe uns fornecimentos para o arsenal de marinha, fornecimentos que
ele continuava a fazer com a maior pontualidade, e dos quais me dizia algumas semanas
antes, que no fim de mais três anos, podiam dar-lhe uns duzentos contos. Pois a lembrança
de tamanho obséquio não teve força para obstar que ele viesse a público enxovalhar o
cunhado? Devia ser mui poderoso e motivo da declaração, que o fazia cometer ao mesmo
tempo um destempero e uma ingratidão; confesso que era um problema insolúvel...
CAPÍTULO CXLIX / TEORIA DO BENEFÍCIO
...TÃO INSOLÚVEL que o Quincas Borba não pôde dar com ele, apesar de estudá-lo
longamente e com boa vontade.-- Ora adeus! concluiu; nem todos os problemas valem cinco
minutos de atenção.
Quanto à censura de ingratidão, Quincas Borba rejeitou-a inteiramente, não como
improvável, mas como absurda, por não obedecer às conclusões de uma boa filosofia
humanística.
--Não me podes negar um fato, disse ele; é que o prazer do beneficiador é sempre maior que
o do beneficiado. Que é o benefício? é um ato que faz cessar certa privação do beneficiado.
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Uma vez produzido o efeito essencial, isto é, uma vez cessada a privação, torna o organismo
ao estado anterior, ao estado indiferente. Supõe que tens apertado em demasia o cós das
calças; para fazer cessar o incômodo, desabotoas o cós, respiras, saboreias um instante de
gozo, o organismo torna à indiferença, e não te lembras dos teus dedos que praticaram o ato.
Não havendo nada que perdure, é natural que a memória se esvaeça, porque ela não é uma
planta aérea, precisa de chão. A esperança de outros favores, é certo, conserva sempre no
beneficiado a lembrança do primeiro; mas este fato, aliás um dos mais sublimes que a
filosofia pode achar em seu caminho, explica-se pela memória da privação, ou, usando de
outra fórmula, pela privação continuada na memória, que repercute a dor passada e
aconselha a precaução do remédio oportuno. Não digo que, ainda sem esta circunstância,
não aconteça, algumas vezes, persistir a memória do obséquio, acompanhada de certa
afeição mais ou menos intensa; mas são verdadeiras aberrações, sem nenhum valor aos
olhos de um filósofo.
--Mas, repliquei eu, se nenhuma razão há para que perdure a memória do obséquio no
obsequiado, menos há de haver em relação ao obsequiador. Quisera que me explicasses este
ponto.
--Não se explica o que é de sua natureza evidente, retorquiu o Quincas Borba; mas eu direi
alguma cousa mais. A persistência do benefício na memória de quem o exerce explica-se
pela natureza mesma do benefício e seus efeitos. Primeiramente há o sentimento de uma boa
ação, e dedutivamente a consciência de que somos capazes de boas ações; em segundo
lugar, recebe-se uma convicção de superioridade sobre outra criatura, superioridade no
estado e nos meios; e esta é uma das cousas mais legitimamente agradáveis, segundo as
melhores opiniões, ao organismo humano. Erasmo, que no seu Elogio da Sandice escreveu
algumas cousas boas, chamou a atenção para a complacência com que dous burros se coçam
um ao outro. Estou longe de rejeitar essa observação de Erasmo; mas direi o que ele não
disse, a saber que se um dos burros coçar melhor o outro esse há de ter nos olhos algum
indício especial de satisfação. Por que é que uma mulher bonita olha muitas vezes para o
espelho, senão porque se acha bonita, e porque isso lhe dá certa superioridade sobre uma
multidão de outras mulheres menos bonitas ou absolutamente feias? A consciência é a
mesma cousa; remira-se a miúdo, quando se acha bela. Nem o remorso é outra cousa mais
do que o trejeito de uma consciência que se vê hedionda. Não esqueças que, sendo tudo uma
simples irradiação de Humanitas, o benefício e seus efeitos são fenômenos perfeitamente
admiráveis.
CAPÍTULO CL / ROTAÇÃO E TRANSLAÇÃO
HÁ EM CADA EMPRESA, afeição ou idade um ciclo inteiro da vida humana. O primeiro
número do meu jornal encheu-me a alma de uma vasta aurora, coroou-me de verduras,
restituiu-me a lepidez da mocidade. Seis meses depois batia a hora da velhice, e daí a duas
semanas a da morte, que foi clandestina, como a de D. Plácida. No dia em que o jornal
amanheceu morto, respirei como um homem que vem de longo caminho. De modo que, se
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eu disser que a vida humana nutre de si mesma outras vidas, mais ou menos efêmeras como
o corpo alimenta os seus parasitas creio não dizer uma cousa inteiramente absurda. Mas,
para não arriscar essa figura menos nítida e adequada, prefiro uma imagem astronômica: o
homem executa à roda do grande mistério um movimento duplo de rotação e translação; tem
os seus dias, desiguais como os de Júpiter, e deles compõe o seu ano mais ou menos longo.
No momento em que eu terminava o meu movimento de rotação concluía Lobo Neves o seu
movimento de translação. Morria com o pé na escada ministerial. Correu ao menos durante
algumas semanas, que ele ia ser ministro, e pois que o boato me encheu de muita irritação e
inveja, não é impossível que a notícia da morte me deixasse alguma tranqüilidade, alívio, e
um ou dous minutos de prazer. Prazer é muito, mas é verdade; juro aos séculos que é a pura
verdade.
Fui ao enterro. Na sala mortuária achei Virgília, ao pé do féretro a soluçar. Quando levantou
a cabeça, vi que chorava deveras. Ao sair o enterro, abraçou-se ao caixão, aflita; vieram
tirá-la e levá-la para dentro. Digo-vos que as lágrimas eram verdadeiras. Eu fui ao cemitério;
e, para dizer tudo, não tinha muita vontade de falar; levava uma pedra na garganta ou na
consciência. No cemitério, principalmente quando deixei cair a pá de cal sobre o caixão, no
fundo da cova, o baque surdo da cal deu-me um estremecimento passageiro, é certo, mas
desagradável; e depois a tarde tinha o peso e a cor do chumbo; o cemitério, as roupas
pretas...
CAPÍTULO CLI / FILOSOFIA DOS EPITÁFIOS
SAÍ, AFASTANDO-ME dos grupos, e fingindo ler os epitáfios. E, aliás, gosto dos epitáfios;
eles são, entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e secreto egoísmo que induz o
homem a arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra que passou. Daí vem, talvez, a
tristeza inconsolável dos que sabem os seus mortos na vala comum; parece-lhes que a
podridão anônima os alcança a eles mesmos.
CAPÍTULO CLII / A MOEDA DE VESPASIANO
TINHAM IDO TODOS; só o meu carro esperava pelo dono. Acendi um charuto; afastei-me
do cemitério. Não podia sacudir dos olhos a cerimônia do enterro nem dos ouvidos os
soluços de Virgília. Os soluços, principalmente, tinham o som vago e misterioso de um
problema. Virgília traíra o marido, com sinceridade, e agora chorava-o com sinceridade. Eis
uma combinação difícil que não pude fazer em todo o trajeto; em casa, porém, apeando-me
do carro, suspeitei que a combinação era possível, e até fácil. Meiga Natura! A taxa da dor é
como a moeda de Vespasiano; não cheira à origem, e tanto se colhe do mal como do bem. A
moral repreenderá, porventura, a minha cúmplice; é o que te não importa, implacável amiga,
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uma vez que lhe recebeste pontualmente as lágrimas. Meiga, três vezes Meiga Natura!
CAPÍTULO CLIII / O ALIENISTA
COMEÇO A FICAR patético e prefiro dormir. Dormi, sonhei que era nababo, e acordei com
a idéia de ser nababo. Eu gostava, às vezes, de imaginar esses contrastes de região, estado e
credo. Alguns dias antes tinha pensado na hipótese de uma revolução social, religiosa e
política, que transferisse o arcebispo de Cantuária a simples coletor de Petrópolis, e fiz
longos cálculos para saber se o coletor eliminaria o arcebispo, ou se o arcebispo rejeitaria o
coletor, ou que porção de arcebispo pode jazer num coletor, ou que soma de coletor pode
combinar com um arcebispo, etc. Questões insolúveis, aparentemente, mas na realidade
perfeitamente solúveis, desde que se atenda que pode haver num arcebispo dous
arcebispos,-- o da bula e o outro. Está dito, vou ser nababo.
Era um simples gracejo; disse-o, todavia, ao Quincas Borba, que olhou para mim com certa
cautela e pena, levando a sua bondade a comunicar-me que eu estava doudo. Ri-me a
princípio; mas a nobre convicção do filósofo incutiu-me certo medo. A única objeção contra
a palavra do Quincas Borba é que não me sentia doudo, mas não tendo geralmente os
doudos outro conceito de si mesmos, tal objeção ficava sem valor. E vede se há algum
fundamento na crença popular de que os filósofos são homens alheios às cousas mínimas.
No dia seguinte, mandou-me o Quincas Borba um alienista. Conhecia-o, fiquei aterrado.
Ele, porém houve-se com a maior delicadeza e habilidade, despedindo-se tão alegremente
que me animou a perguntar-lhe se deveras me não achava doudo.
--Não, disse ele sorrindo; raros homens terão tanto juízo como o senhor.
--Então o Quincas Borba enganou-se?
--Redondamente. E depois:--Ao contrário, se é amigo dele... peço-lhe que o distraia... que...
--Justos céus! Parece-lhe?... Um homem de tamanho espírito, um filósofo!
--Não importa, a loucura entra em todas as casas.
Imaginem a minha aflição. O alienista, vendo o efeito de suas palavras, reconheceu que eu
era amigo do Quincas Borba, e tratou de diminuir a gravidade da advertência. Observou que
podia não ser nada, e acrescentou até que um grãozinho de sandice, longe de fazer mal, dava
certo pico à vida. Como eu rejeitasse com horror esta opinião, o alienista sorriu e disse-me
uma cousa tão extraordinária, tão extraordinária, que não merece menos de um capítulo.
CAPÍTULO CLIV / OS NAVIOS DO PIREU
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--HÁ DE LEMBRAR-SE, disse-me o alienista, daquele famoso maníaco ateniense, que
supunha que todos os navios entrados no Pireu eram de sua propriedade. Não passava de um
pobretão, que talvez não tivesse, para dormir, a cuba de Diógenes; mas a posse imaginária
dos navios valia por todas as dracmas da Hélade. Ora bem, há em todos nós um maníaco de
Atenas; e quem jurar que não possuiu alguma vez, mentalmente, dous ou três patachos, pelo
menos, pode crer que jura falso.
--Também o senhor? perguntei-lhe.
--Também eu.
--Também eu?
--Também o senhor; e o seu criado, não menos se é seu criado esse homem que ali está
sacudindo os tapetes à janela.
De fato, era um dos meus criados que batia os tapetes, enquanto nós falávamos no jardim, ao
lado. O alienista notou então que ele escancarara as janelas todas deste longo tempo, que
alçara as cortinas, que devassara o mais possível a sala, ricamente alfaiada, para que a
vissem de fora, e concluiu: --Este seu criado tem a mania do ateniense: crê que os navios são
dele; uma hora de ilusão que lhe dá a maior felicidade da Terra.
CAPÍTULO CLV / REFLEXÃO CORDIAL
--SE O ALIENISTA tem razão, disse eu comigo, não haverá muito que lastimar o Quincas
Borba; é uma questão de mais ou de menos. Contudo, é justo cuidar dele, e evitar que lhe
entrem no cérebro maníacos de outras paragens.
CAPÍTULO CLVI / ORGULHO DA SERVILIDADE
QUINCAS BORBA divergiu do alienista em relação ao meu criado.-- Pode-se, por imagem,
disse ele, atribuir ao teu criado a mania do ateniense, mas imagens não são idéias nem
observações tomadas à natureza. O que o teu criado tem é um sentimento nobre e
perfeitamente regido pelas leis do Humanitismo: é o orgulho da servilidade. A intenção dele
é mostrar que não é criado de qualquer.--Depois chamou a minha atenção para os cocheiros
de casa grande, mais empertigados que o amo, para os criados de hotel, cuja solicitude
obedece às variações sociais da freguesia, etc. E concluiu que era tudo a expressão daquele
sentimento delicado e nobre, -- prova cabal de que muitas vezes o homem, ainda a engraxar
botas, é sublime.
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CAPÍTULO CLVII / FASE BRILHANTE
--SUBLIME és tu, bradei eu, lançando-lhe os braços ao pescoço.
Com efeito, era impossível crer que um homem tão profundo chegasse à demência; foi o que
lhe disse após o meu abraço, denunciando-lhe a suspeita do alienista. Não posso descrever a
impressão que lhe fez a denúncia; lembra-me que ele estremeceu e ficou muito pálido.
Foi por esse tempo que eu me reconciliei outra vez com o Cotrim, sem chegar a saber a
causa do dissentimento. Reconciliação oportuna, porque a solidão pesava-me, e a vida era
para mim a pior das fadigas, que é a fadiga sem trabalho. Pouco depois fui convidado por
ele a filiar-me numa Ordem Terceira; o que eu não fiz sem consultar o Quincas Borba:
--Vai, se queres, disse-me este, mas temporariamente. Eu trato de anexar à minha filosofia
uma parte dogmática e litúrgica. O Humanitismo há de ser também uma religião, a do
futuro, a única verdadeira. O cristianismo é bom para as mulheres e os mendigos, e as outras
religiões não valem mais do que essa: orçam todas pela mesma vulgaridade ou fraqueza. O
paraíso cristão é um digno êmulo do paraíso muçulmano; e quanto ao nirvana de Buda não
passa de uma concepção de paralíticos. Verás o que é a religião humanística. A absorção
final, a fase contrativa, é a reconstituição da substância, não o seu aniquilamento, etc. Vai
aonde te chamam; não esqueças, porém, que és o meu califa.
E vede agora a minha modéstia; filiei-me na Ordem Terceira de ***, exerci ali alguns
cargos, foi essa a fase mais brilhante da minha vida. Não obstante, calo-me, não digo nada,
não conto os meus serviços, o que fiz aos pobres e aos enfermos, nem as recompensas que
recebi, nada, não digo absolutamente nada.
Talvez a economia social pudesse ganhar alguma cousa, se eu mostrasse como todo e
qualquer prêmio estranho vale pouco ao lado do prêmio subjetivo e imediato; mas seria
romper o silêncio que jurei guardar neste ponto. Demais, os fenômenos da consciência são
de difícil análise; por outro lado, se contasse um, teria de contar todos os que a ele se
prendessem, e acabava fazendo um capítulo de psicologia. Afirmo somente que foi a fase
mais brilhante da minha vida. Os quadros eram tristes; tinham a monotonia da desgraça, que
é tão aborrecida como a do gozo, e talvez pior. Mas a alegria que se dá à alma dos doentes e
dos pobres, é recompensa de algum valor: e não me digam que é negativa, por só recebê-la o
obsequiado. Não eu recebia-a de um modo reflexo, e ainda assim grande, tão grande que me
dava excelente idéia de mim mesmo.
CAPÍTUI.O CLVIII / DOUS ENCONTROS
No FIM de alguns anos, três ou quatro, estava enfarado do ofício, e deixei-o, não sem um
donativo importante, que me deu direito ao retrato na sacristia. Não acabarei, porém, o
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capítulo sem dizer que vi morrer no hospital da Ordem, adivinhem quem?.. . a linda
Marcela; e vi-a morrer no mesmo dia em que, visitando um cortiço, para distribuir esmolas,
achei... Agora é que não são capazes de adivinhar. . . achei a flor da moita, Eugênia, a filha
de D. Eusébia e do Vilaça, tão coxa como a deixara, e ainda mais triste.
Esta, ao reconhecer-me, ficou pálida, e baixou os olhos; mas foi obra de um instante. Ergueu
logo a cabeça, e fitou-me com muita dignidade. Compreendi que não receberia esmolas da
minha algibeira, e estendi-lhe a mão, como faria à esposa de um capitalista. Cortejou-me e
fechou-se no cubículo. Nunca mais a vi; não soube nada da vida dela, nem se a mãe era
morta, nem que desastre a trouxera a tamanha miséria. Sei que continuava coxa e triste. Foi
com esta impressão profunda que cheguei ao hospital, onde Marcela entrara na véspera, e
onde a vi expirar meia hora depois, feia, magra, decrépita . . .
CAPÍTULO CLIX / SEMIDEMÊNCIA
COMPREENDI que estava velho, e precisava de uma força; mas o Quincas Borba partira
seis meses antes para Minas Gerais, e levou consigo a melhor das filosofias. Voltou quatro
meses depois, e entrou-me em casa, certa manhã, quase no estado em que eu o vira no
Passeio Público. A diferença é que o olhar era outro. Vinha demente. Contou-me que, para o
fim de aperfeiçoar o Humanitismo queimara o manuscrito todo e ia recomeçá-lo. A parte
dogmática ficava completa, embora não escrita; era a verdadeira religião do futuro.
--Juras por Humanitas? perguntou-me.
--Sabes que sim.
A voz mal podia sair-me do peito, e aliás não tinha descoberto toda a cruel verdade. Quincas
Borba não só estava louco, mas sabia que estava louco, e esse resto de consciência, como
uma frouxa lamparina no meio das trevas, complicava muito o horror da situação. Sabia-o, e
não se irritava contra o mal; ao contrário, dizia-me que era ainda uma prova de Humanitas,
que assim brincava consigo mesmo. Recitava-me longos capítulos do livro, e antífonas, e
litanias espirituais; chegou até a reproduzir uma dança sacra que inventara para as
cerimônias do Humanitismo. A graça lúgubre com que ele levantava e sacudia as pernas era
singularmente fantástica. Outras vezes amuava-se a um canto, com os olhos fitos no ar, uns
olhos em que, de longe em longe, fulgurava um raio persistente da razão, triste como uma
lágrima...
Morreu pouco tempo depois, em minha casa, jurando e repetindo sempre que a dor era uma
ilusão, e que Pangloss, o caluniado Pangloss, não era tão tolo como o supôs Voltaire.
CAPÍTULO CLX / DAS NEGATIVAS
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ENTRE A MORTE do Quincas Borba e a minha, mediram os sucessos narrados na primeira
parte do livro. O principal deles foi a invenção do emplasto Brás Cubas, que morreu
comigo, por causa da moléstia que apanhei. Divino emplasto, tu me darias o primeiro lugar
entre os homens, acima da ciência e da riqueza, porque eras a genuína e direta inspiração do
Céu. O caso determinou o contrário; e aí vos ficais eternamente hipocondríacos.
Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplast6o, não fui
ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas,
coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a
morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas cousas e
outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente
que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério,
achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: --
Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.
FIM
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