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FILOSOFIA "philiasofia@yahoo.com.br"



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CONVITE À FILOSOFIA-AS CIÊNCIAS

Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.

Unidade 7
As ciências

Capítulo 1
A atitude científica

O senso comum

O Sol é menor do que a Terra. Quem duvidará disso se, diariamente, vemos um pequeno círculo avermelhado percorrer o céu, indo de leste para oeste?

O Sol se move em torno da Terra, que permanece imóvel. Quem duvidará disso, se diariamente vemos o Sol nascer, percorrer o céu e se pôr? A aurora não é o seu começo e o crepúsculo, seu fim?

As cores existem em si mesmas. Quem duvidará disso, se passamos a vida vendo rosas vermelhas, amarelas e brancas, o azul do céu, o verde das árvores, o alaranjado da laranja e da tangerina?

Cada gênero e espécie de animal já surgiram tais como os conhecemos. Alguém poderia imaginar um peixe tornar-se réptil ou um pássaro? Para os que são religiosos, os livros sagrados não ensinam que a divindade criou de uma só vez todos os animais, num só dia?

A família é uma realidade natural criada pela Natureza para garantir a sobrevivência humana e para atender à afetividade natural dos humanos, que sentem a necessidade de viver juntos. Quem duvidará disso, se vemos, no mundo inteiro, no passado e no presente, a família existindo naturalmente e sendo a célula primeira da sociedade?

A raça é uma realidade natural ou biológica produzida pela diferença dos climas, da alimentação, da geografia e da reprodução sexual. Quem duvidará disso, se vemos que os africanos são negros, os asiáticos são amarelos de olhos puxados, os índios são vermelhos e os europeus, brancos? Se formos religiosos, saberemos que os negros descendem de Caim, marcado por Deus, e de Cam, o filho desobediente de Noé.

Certezas como essas formam nossa vida e o senso comum de nossa sociedade, transmitido de geração em geração, e, muitas vezes, transformando-se em crença religiosa, em doutrina inquestionável.

A astronomia, porém, demonstra que o Sol é muitas vezes maior do que a Terra e, desde Copérnico, que é a Terra que se move em torno dele. A física óptica demonstra que as cores são ondas luminosas de comprimentos diferentes, obtidas pela refração e reflexão, ou decomposição, da luz branca. A biologia demonstra que os gêneros e as espécies de animais se formaram lentamente, no curso de milhões de anos, a partir de modificações de microorganismos extremamente simples.

Historiadores e antropólogos mostram que o que entendemos por família (pai, mãe, filhos; esposa, marido, irmãos) é uma instituição social recentíssima – data do século XV – e própria da Europa ocidental, não existindo na Antiguidade, nem nas sociedades africanas, asiáticas e americanas pré-colombianas. Mostram também que não é um fato natural, mas uma criação sociocultural, exigida por condições históricas determinadas.

Sociólogos e antropólogos mostram que a idéia de raça também é recente – data do século XVIII -, sendo usada por pensadores que procuravam uma explicação para as diferenças físicas e culturais entre os europeus e os povos conhecidos a partir do século XIV, com as viagens de Marco Pólo, e do século XV, com as grandes navegações e as descobertas de continentes ultramarinos.

Ao que parece, há uma grande diferença entre nossas certezas cotidianas e o conhecimento científico. Como e por que ela existe?

Características do senso comum

Um breve exame de nossos saberes cotidianos e do senso comum de nossa sociedade revela que possuem algumas características que lhes são próprias:

● são subjetivos, isto é, exprimem sentimentos e opiniões individuais e de grupos, variando de uma pessoa para outra, ou de um grupo para outro, dependendo das condições em que vivemos. Assim, por exemplo, se eu for artista, verei a beleza da árvore; se eu for marceneira, a qualidade da madeira; se estiver passeando sob o Sol, a sombra para descansar; se for bóia-fria, os frutos que devo colher para ganhar o meu dia. Se eu for hindu, uma vaca será sagrada para mim; se for dona de um frigorífico, estarei interessada na qualidade e na quantidade de carne que poderei vender;

● são qualitativos, isto é, as coisas são julgadas por nós como grandes ou pequenas, doces ou azedas, pesadas ou leves, novas ou velhas, belas ou feias, quentes ou frias, úteis ou inúteis, desejáveis ou indesejáveis, coloridas ou sem cor, com sabor, odor, próximas ou distantes, etc.;

● são heterogêneos, isto é, referem-se a fatos que julgamos diferentes, porque os percebemos como diversos entre si. Por exemplo, um corpo que cai e uma pena que flutua no ar são acontecimentos diferentes; sonhar com água é diferente de sonhar com uma escada, etc.;

● são individualizadores por serem qualitativos e heterogêneos, isto é, cada coisa ou cada fato nos aparece como um indivíduo ou como um ser autônomo: a seda é macia, a pedra é rugosa, o algodão é áspero, o mel é doce, o fogo é quente, o mármore é frio, a madeira é dura, etc.;

● mas também são generalizadores, pois tendem a reunir numa só opinião ou numa só idéia coisas e fatos julgados semelhantes: falamos dos animais, das plantas, dos seres humanos, dos astros, dos gatos, das mulheres, das crianças, das esculturas, das pinturas, das bebidas, dos remédios, etc.;

● em decorrência das generalizações, tendem a estabelecer relações de causa e efeito entre as coisas ou entre os fatos: “onde há fumaça, há fogo”; “quem tudo quer, tudo perde”; “dize-me com quem andas e te direi quem és”; a posição dos astros determina o destino das pessoas; mulher menstruada não deve tomar banho frio; ingerir sal quando se tem tontura é bom para a pressão; mulher assanhada quem ser estuprada; menino de rua é delinqüente, etc.;

● não se surpreendem e nem se admiram com a regularidade, constância, repetição e diferença das coisas, mas, ao contrário, a admiração e o espanto se dirigem para o que é imaginado como único, extraordinário, maravilhoso ou miraculoso. Justamente por isso, em nossa sociedade, a propaganda e a moda estão sempre inventando o “extraordinário”, o “nunca visto”;

● pelo mesmo motivo e não por compreenderem o que seja investigação científica, tendem a identificá-la com a magia, considerando que ambas lidam com o misterioso, o oculto, o incompreensível. Essa imagem da ciência como magia aparece, por exemplo, no cinema, quando os filmes mostram os laboratórios científicos repletos de objetos incompreensíveis, com luzes que acendem e apagam, tubos de onde saem fumaças coloridas, exatamente como são mostradas as cavernas ocultas dos magos. Essa mesma identificação entre ciência e magia aparece num programa da televisão brasileira, o Fantástico, que, como o nome indica, mostra aos telespectadores resultados científicos como se fossem espantosa obra de magia, assim como exibem magos ocultistas como se fossem cientistas;

● costumam projetar nas coisas ou no mundo sentimentos de angústia e de medo diante do desconhecido. Assim, durante a Idade Média, as pessoas viam o demônio em toda a parte e, hoje, enxergam discos voadores no espaço;

● por serem subjetivos, generalizadores, expressões de sentimentos de medo e angústia, e de incompreensão quanto ao trabalho científico, nossas certezas cotidianas e o senso comum de nossa sociedade ou de nosso grupo social cristalizam-se em preconceitos com os quais passamos a interpretar toda a realidade que nos cerca e todos os acontecimentos.

A atitude científica

O que distingue a atitude científica da atitude costumeira ou do senso comum? Antes de qualquer coisa, a ciência desconfia da veracidade de nossas certezas, de nossa adesão imediata às coisas, da ausência de crítica e da falta de curiosidade. Por isso, ali onde vemos coisas, fatos e acontecimentos, a atitude científica vê problemas e obstáculos, aparências que precisam ser explicadas e, em certos casos, afastadas.

Sob quase todos os aspectos, podemos dizer que o conhecimento científico opõe-se ponto por ponto às características do senso comum:

● é objetivo, isto é, procura as estruturas universais e necessárias das coisas investigadas;

● é quantitativo, isto é, busca medidas, padrões, critérios de comparação e avaliação para coisas que parecem ser diferentes. Assim, por exemplo, as diferenças de cor são explicadas por diferenças de um mesmo padrão ou critério de medida, o comprimento das ondas luminosas; as diferenças de intensidade dos sons, pelo comprimento das ondas sonoras; as diferenças de tamanho, pelas diferenças de perspectiva e de ângulos de visão, etc.;

● é homogêneo, isto é, busca as leis gerais de funcionamento dos fenômenos, que são as mesmas para fatos que nos parecem diferentes. Por exemplo, a lei universal da gravitação demonstra que a queda de uma pedra e a flutuação de uma pluma obedecem à mesma lei de atração e repulsão no interior do campo gravitacional; a estrela da manhã e a estrela da tarde são o mesmo planeta, Vênus, visto em posições diferentes com relação ao Sol, em decorrência do movimento da Terra; sonhar com água e com uma escada é ter o mesmo tipo de sonho, qual seja, a realização dos desejos sexuais reprimidos, etc.;

● é generalizador, pois reúne individualidades, percebidas como diferentes, sob as mesmas leis, os mesmos padrões ou critérios de medida, mostrando que possuem a mesma estrutura. Assim, por exemplo, a química mostra que a enorme variedade de corpos se reduz a um número limitado de corpos simples que se combinam de maneiras variadas, de modo que o número de elementos é infinitamente menor do que a variedade empírica dos compostos;

● são diferenciadores, pois não reúnem nem generalizam por semelhanças aparentes, mas distinguem os que parecem iguais, desde que obedeçam a estruturas diferentes. Lembremos aqui um exemplo que usamos no capítulo sobre a linguagem, quando mostramos que a palavra queijo parece ser a mesma coisa que a palavra inglesa cheese e a palavra francesa fromage, quando, na realidade, são muito diferentes, porque se referem a estruturas alimentares diferentes;

● só estabelecem relações causais depois de investigar a natureza ou estrutura do fato estudado e suas relações com outros semelhantes ou diferentes. Assim, por exemplo, um corpo não cai porque é pesado, mas o peso de um corpo depende do campo gravitacional onde se encontra – é por isso que, nas naves espaciais, onde a gravidade é igual a zero, todos os corpos flutuam, independentemente do peso ou do tamanho; um corpo tem uma certa cor não porque é colorido, mas porque, dependendo de sua composição química e física, reflete a luz de uma determinada maneira, etc.;

● surpreende-se com a regularidade, a constância, a freqüência, a repetição e a diferença das coisas e procura mostrar que o maravilhoso, o extraordinário ou o “milagroso” é um caso particular do que é regular, normal, freqüente. Um eclipse, um terremoto, um furacão, embora excepcionais, obedecem às leis da física. Procura, assim, apresentar explicações racionais, claras, simples e verdadeiras para os fatos, opondo-se ao espetacular, ao mágico e ao fantástico;

● distingue-se da magia. A magia admite uma participação ou simpatia secreta entre coisas diferentes, que agem umas sobre as outras por meio de qualidades ocultas e considera o psiquismo humano uma força capaz de ligar-se a psiquismos superiores (planetários, astrais, angélicos, demoníacos) para provocar efeitos inesperados nas coisas e nas pessoas. A atitude científica, ao contrário, opera um desencantamento ou desenfeitiçamento do mundo, mostrando que nele não agem forças secretas, mas causas e relações racionais que podem ser conhecidas e que tais conhecimentos podem ser transmitidos a todos;

● afirma que, pelo conhecimento, o homem pode libertar-se do medo e das superstições, deixando de projetá-los no mundo e nos outros;

● procura renovar-se e modificar-se continuamente, evitando a transformação das teorias em doutrinas, e destas em preconceitos sociais. O fato científico resulta de um trabalho paciente e lento de investigação e de pesquisa racional, aberto a mudanças, não sendo nem um mistério incompreensível nem uma doutrina geral sobre o mundo.

Os fatos ou objetos científicos não são dados empíricos espontâneos de nossa experiência cotidiana, mas são construídos pelo trabalho da investigação científica. Esta é um conjunto de atividades intelectuais, experimentais e técnicas, realizadas com base em métodos que permitem e garantem:

● separar os elementos subjetivos e objetivos de um fenômeno;

● construir o fenômeno como um objeto do conhecimento, controlável, verificável, interpretável e capaz de ser retificado e corrigido por novas elaborações;

● demonstrar e provar os resultados obtidos durante a investigação, graças ao rigor das relações definidas entre os fatos estudados; a demonstração deve ser feita não só para verificar a validade dos resultados obtidos, mas também para prever racionalmente novos fatos como efeitos dos já estudados;

● relacionar com outros fatos um fato isolado, integrando-o numa explicação racional unificada, pois somente essa integração transforma o fenômeno em objeto científico, isto é, em fato explicado por uma teoria;

● formular uma teoria geral sobre o conjunto dos fenômenos observados e dos fatos investigados, isto é, formular um conjunto sistemático de conceitos que expliquem e interpretem as causas e os efeitos, as relações de dependência, identidade e diferença entre todos os objetos que constituem o campo investigado.

Delimitar ou definir os fatos a investigar, separando-os de outros semelhantes ou diferentes; estabelecer os procedimentos metodológicos para observação, experimentação e verificação dos fatos; construir instrumentos técnicos e condições de laboratório específicas para a pesquisa; elaborar um conjunto sistemático de conceitos que formem a teoria geral dos fenômenos estudados, que controlem e guiem o andamento da pesquisa, além de ampliá-la com novas investigações, e permitam a previsão de fatos novos a partir dos já conhecidos: esses são os pré-requisitos para a constituição de uma ciência e as exigências da própria ciência.

A ciência distingue-se do senso comum porque este é uma opinião baseada em hábitos, preconceitos, tradições cristalizadas, enquanto a primeira baseia-se em pesquisas, investigações metódicas e sistemáticas e na exigência de que as teorias sejam internamente coerentes e digam a verdade sobre a realidade. A ciência é conhecimento que resulta de um trabalho racional.

O que é uma teoria científica?

É um sistema ordenado e coerente de proposições ou enunciados baseados em um pequeno número de princípios, cuja finalidade é descrever, explicar e prever do modo mais completo possível um conjunto de fenômenos, oferecendo suas leis necessárias. A teoria científica permite que uma multiplicidade empírica de fatos aparentemente muito diferentes sejam compreendidos como semelhantes e submetidos às mesmas leis; e, vice-versa, permite compreender por que fatos aparentemente semelhantes são diferentes e submetidos a leis diferentes.

Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.

Unidade 7
As ciências

Capítulo 2
A ciência na História

As três principais concepções de ciência

Historicamente, três têm sido as principais concepções de ciência ou de ideais de cientificidade: o racionalista, cujo modelo de objetividade é a matemática; o empirista, que toma o modelo de objetividade da medicina grega e da história natural do século XVII; e o construtivista, cujo modelo de objetividade advém da idéia de razão como conhecimento aproximativo.

A concepção racionalista – que se estende dos gregos até o final do século XVII – afirma que a ciência é um conhecimento racional dedutivo e demonstrativo como a matemática, portanto, capaz de provar a verdade necessária e universal de seus enunciados e resultados, sem deixar qualquer dúvida possível. Uma ciência é a unidade sistemática de axiomas, postulados e definições, que determinam a natureza e as propriedades de seu objeto, e de demonstrações, que provam as relações de causalidade que regem o objeto investigado.

O objeto científico é uma representação intelectual universal, necessária e verdadeira das coisas representadas e corresponde à própria realidade, porque esta é racional e inteligível em si mesma. As experiências científicas são realizadas apenas para verificar e confirmar as demonstrações teóricas e não para produzir o conhecimento do objeto, pois este é conhecido exclusivamente pelo pensamento. O objeto científico é matemático, porque a realidade possui uma estrutura matemática, ou como disse Galileu, “o grande livro da Natureza está escrito em caracteres matemáticos”.

A concepção empirista – que vai da medicina grega e Aristóteles até o final do século XIX – afirma que a ciência é uma interpretação dos fatos baseada em observações e experimentos que permitem estabelecer induções e que, ao serem completadas, oferecem a definição do objeto, suas propriedades e suas leis de funcionamento. A teoria científica resulta das observações e dos experimentos, de modo que a experiência não tem simplesmente o papel de verificar e confirmar conceitos, mas tem a função de produzi-los. Eis por que, nesta concepção, sempre houve grande cuidado para estabelecer métodos experimentais rigorosos, pois deles dependia a formulação da teoria e a definição da objetividade investigada.

Essas duas concepções de cientificidade possuíam o mesmo pressuposto, embora o realizassem de maneiras diferentes. Ambas consideravam que a teoria científica era uma explicação e uma representação verdadeira da própria realidade, tal como esta é em si mesma. A ciência era uma espécie de raio-X da realidade. A concepção racionalista era hipotético-dedutiva, isto é, definia o objeto e suas leis e disso deduzia propriedades, efeitos posteriores, previsões. A concepção empirista era hipotético-indutiva, isto é, apresentava suposições sobre o objeto, realizava observações e experimentos e chegava à definição dos fatos, às suas leis, suas propriedades, seus efeitos posteriores e previsões.

A concepção construtivista – iniciada no século passado – considera a ciência uma construção de modelos explicativos para a realidade e não uma representação da própria realidade. O cientista combina dois procedimentos – um, vindo do racionalismo, e outro, vindo do empirismo – e a eles acrescenta um terceiro, vindo da idéia de conhecimento aproximativo e corrigível.

Como o racionalista, o cientista construtivista exige que o método lhe permita e lhe garanta estabelecer axiomas, postulados, definições e deduções sobre o objeto científico. Como o empirista, o construtivista exige que a experimentação guie e modifique axiomas, postulados, definições e demonstrações. No entanto, porque considera o objeto uma construção lógico-intelectual e uma construção experimental feita em laboratório, o cientista não espera que seu trabalho apresente a realidade em si mesma, mas ofereça estruturas e modelos de funcionamento da realidade, explicando os fenômenos observados. Não espera, portanto, apresentar uma verdade absoluta e sim uma verdade aproximada que pode ser corrigida, modificada, abandonada por outra mais adequada aos fenômenos. São três as exigências de seu ideal de cientificidade:

1. que haja coerência (isto é, que não haja contradições) entre os princípios que orientam a teoria;

2. que os modelos dos objetos (ou estruturas dos fenômenos) sejam construídos com base na observação e na experimentação;

3. que os resultados obtidos possam não só alterar os modelos construídos, mas também alterar os próprios princípios da teoria, corrigindo-a.

Diferenças entre a ciência antiga e a moderna

Quando apresentamos os ideais de cientificidade, dissemos que tanto o ideal racionalista quanto o empirista se iniciaram com os gregos. Isso, porém, não significa que a concepção antiga e a moderna (século XVII) de ciência sejam idênticas.

Tomemos um exemplo que nos ajude a perceber algumas das diferenças entre antigos e modernos.

Aristóteles escreveu uma Física. O objeto físico ou natural, diz Aristóteles, possui duas características principais: em primeiro lugar, existe e opera independentemente da presença, da vontade e da ação humanas; em segundo lugar, é um ser em movimento, isto é, em devir, sofrendo alterações qualitativas, quantitativas e locais; nasce, vive e morre ou desaparece. A Física estuda, portanto, os seres naturais submetidos à mudança.

O mundo, escreve Aristóteles, divide-se em duas grandes regiões naturais, cuja diferença é dada pelo tipo de substância, de matéria e de forma dos seres de cada uma delas. A região celeste, formada de Sete Céus ou Sete Esferas, onde estão os astros, tem como substância o éter, matéria sutil e diáfana, forma universal que não sofre mudanças qualitativas nem quantitativas, mas apenas a mudança ou movimento local, realizando eternamente o mais perfeito dos movimentos, o circular. A segunda região é a sublunar ou terrestre - nosso mundo -, constituída por quatro substâncias ou elementos – terra, água, ar e fogo -, de cujas combinações surgem todos os seres. São substâncias fortemente materiais e, portanto (como vimos no estudo da metafísica aristotélica), fortemente potenciais ou virtuais, transformando-se sem cessar. A região sublunar é o mundo das mudanças de forma, ou da passagem contínua de uma forma a outra, para atualizar o que está em potência na matéria.

Os seres físicos não se movem da mesma maneira (não se transformam nem se deslocam da mesma maneira). Seus movimentos e mudanças dependem da qualidade de suas matérias e da quantidade em que cada um dos quatro elementos materiais existe combinado com os outros num corpo.

Deixemos de lado todas as modalidades de movimentos estudadas por Aristóteles e examinemos apenas uma: o movimento local. Os corpos, diz o filósofo, procuram atualizar suas potências materiais, atualizando-se em formas diferentes. Cada modalidade de matéria realiza sua forma perfeita de maneira diferente das outras.

No caso do movimento local, a matéria define lugares naturais, isto é, locais onde ela se atualiza ou se realiza melhor do que em outros. Assim, os corpos pesados (nos quais predomina o elemento terra) têm como lugar natural o centro da Terra e por isso o movimento local natural dos pesados é a queda. Os corpos leves (nos quais predomina o elemento fogo) têm como lugar natural o céu e por isso seu movimento local natural é subir. Os corpos não inteiramente leves (nos quais predomina o elemento ar) buscam seu lugar natural no espaço rarefeito e por isso seu movimento local natural é flutuar. Enfim, os corpos não totalmente pesados (nos quais predomina o elemento água) buscam seu lugar natural no líquido e por isso seu movimento local natural é boiar nas águas.

Além dos movimentos naturais, os corpos podem ser submetidos a movimentos violentos, isto é, àqueles que contrariam sua natureza e os impedem de alcançar seu lugar natural. Por exemplo, quando o arqueiro lança uma flecha, imprime nela um movimento violento, pois força-a a permanecer no ar, embora seu lugar natural seja a terra e seu movimento natural seja a queda.

Este pequeno resumo da Física aristotélica nos mostra algumas características marcantes da ciência antiga:

● é uma ciência baseada nas qualidades percebidas nos corpos (leve, pesado, líquido, sólido, etc.);

● é uma ciência baseada em distinções qualitativas do espaço (alto, baixo, longe, perto, celeste, sublunar);

● é uma ciência baseada na metafísica da identidade e da mudança (perfeição imóvel, imperfeição móvel);

● é uma ciência que estabelece leis diferentes para os corpos segundo sua matéria e sua forma, ou segundo sua substância;

● como conseqüência das características anteriores, é uma ciência que concebe a realidade natural como um modelo hierárquico no qual os seres possuem um lugar natural de acordo com sua perfeição, hierarquizando-se em graus que vão dos inferiores aos superiores.

Quando comparamos a física de Aristóteles com a moderna, isto é, a que foi elaborada por Galileu e Newton, podemos notar as grandes diferenças:

● para a física moderna, o espaço é aquele definido pela geometria, portanto, homogêneo, sem distinções qualitativas entre alto, baixo, frente, atrás, longe, perto. É um espaço onde todos os pontos são reversíveis ou equivalentes, de modo que não há “lugares naturais” qualitativamente diferenciados;

● os objetos físicos investigados pelo cientista começam por ser purificados de todas as qualidades sensoriais – cor, tamanho, odor, peso, matéria, forma, líquido, sólido, leve, grande, pequeno, etc. -, isto é, de todas as qualidades sensíveis, porque estas são meramente subjetivas. O objeto é definido por propriedades objetivas gerais, válidas para todos os seres físicos: massa, volume, figura. Torna-se irrelevante o tipo de matéria, de forma ou de substância de um corpo, pois todos se comportam fisicamente da mesma maneira. Torna-se inútil a distinção entre um mundo celeste e um mundo sublunar, pois astros e corpos terrestres obedecem às mesmas leis universais da física;

● a física estuda o movimento não como alteração qualitativa e quantitativa dos corpos, mas como deslocamento espacial que altera a massa, o volume e a velocidade dos corpos. O movimento e o repouso são as propriedades físicas objetivas de todos os corpos da Natureza e todos eles obedecem às mesmas leis – aquelas que Galileu formulou com base no princípio da inércia (um corpo se mantém em movimento indefinidamente, a menos que encontre um outro que lhe faça obstáculo ou que o desvie de seu trajeto); e aquelas formuladas por Newton, com base no princípio universal da gravitação (a toda ação corresponde uma reação que lhe é igual e contrária). Não há diferença entre movimento natural e movimento violento, pois todo e qualquer movimento obedece às mesmas leis;

● a Natureza é um complexo de corpos formados por proporções diferentes de movimento e de repouso, articulados por relações de causa e efeito, sem finalidade, pois a idéia de finalidade só existe para os seres humanos dotados de razão e vontade. Os corpos não se movem, portanto, em busca de perfeição, mas porque a causa eficiente do movimento os faz moverem-se. A física é uma mecânica universal.

A física da Natureza se torna geométrica, experimental, quantitativa, causal ou mecânica (relações entre a causa eficiente e seus efeitos) e suas leis têm valor universal, independentemente das qualidades sensíveis das coisas. Terra, mar e ar obedecem às mesmas leis naturais. A Natureza é a mesma em toda parte e para todos os seres, não existindo hierarquias ou graus de imperfeição-perfeição, inferioridade-superioridade.

Há, ainda, uma outra diferença profunda entre a ciência antiga e a moderna. A primeira era uma ciência teorética, isto é, apenas contemplava os seres naturais, sem jamais imaginar intervir neles ou sobre eles. A técnica era um saber empírico, ligado a práticas necessárias à vida e nada tinha a oferecer à ciência nem a receber dela. Numa sociedade escravista, que deixava tarefas, trabalhos e serviços aos escravos, a técnica era vista como uma forma menor de conhecimento.

Duas afirmações mostram a diferença dos modernos em relação aos antigos: a afirmação do filósofo inglês Francis Bacon, para quem “saber é poder”, e a afirmação de Descartes, para quem “a ciência deve tornar-nos senhores da Natureza”. A ciência moderna nasce vinculada à idéia de intervir na Natureza, de conhecê-la para apropriar-se dela, para controlá-la e dominá-la. A ciência não é apenas contemplação da verdade, mas é sobretudo o exercício do poderio humano sobre a Natureza. Numa sociedade em que o capitalismo está surgindo e, para acumular o capital, deve ampliar a capacidade do trabalho humano para modificar e explorar a Natureza, a nova ciência será inseparável da técnica.

Na verdade, é mais correto falar em tecnologia do que em técnica. De fato, a técnica é um conhecimento empírico, que, graças à observação, elabora um conjunto de receitas e práticas para agir sobre as coisas. A tecnologia, porém, é um saber teórico que se aplica praticamente.

Por exemplo, um relógio de sol é um objeto técnico que serve para marcar horas seguindo o movimento solar no céu. Um cronômetro, porém, é um objeto tecnológico: por um lado, sua construção pressupõe conhecimentos teóricos sobre as leis do movimento (as leis do pêndulo) e, por outro lado, seu uso altera a percepção empírica e comum dos objetos, pois serve para medir aquilo que nossa percepção não consegue perceber. Uma lente de aumento é um objeto técnico, mas o telescópio e o microscópio são objetos tecnológicos, pois sua construção pressupõe o conhecimento das leis científicas definidas pela óptica. Em outras palavras, um objeto é tecnológico quando sua construção pressupõe um saber científico e quando seu uso interfere nos resultados das pesquisas científicas. A ciência moderna tornou-se inseparável da tecnologia.

As mudanças científicas

Vimos até aqui duas grandes mudanças na ciência. A primeira delas se refere à passagem do racionalismo e empirismo ao construtivismo, isto é, de um ideal de cientificidade baseado na idéia de que a ciência é uma representação da realidade tal como ela é em si mesma, a um ideal de cientificidade baseado na idéia de que o objeto científico é um modelo construído e não uma representação do real, uma aproximação sobre o modo de funcionamento da realidade, mas não o conhecimento absoluto dela. A segunda mudança refere-se à passagem da ciência antiga – teorética, qualitativa – à ciência moderna – tecnológica, quantitativa. Por que houve tais mudanças no pensamento científico?

Durante certo tempo, julgou-se que a ciência (como a sociedade) evolui e progride. Evolução e progresso são duas idéias muito recentes – datam dos séculos XVIII e XIX -, mas muito aceitas pelas pessoas. Basta ver o lema da bandeira brasileira para perceber como as pessoas acham natural falar em “Ordem e Progresso”.

As noções de evolução e de progresso partem da suposição de que o tempo é uma linha reta contínua e homogênea (como a imagem do rio, que vimos ao estudar a metafísica). O tempo seria uma sucessão contínua de instantes, momentos, fases, períodos, épocas, que iriam se somando uns aos outros, acumulando-se de tal modo que o que acontece depois é o resultado melhorado do que aconteceu antes. Contínuo e cumulativo, o tempo seria um aperfeiçoamento de todos os seres (naturais e humanos).

Evolução e progresso são a crença na superioridade do presente em relação ao passado e do futuro em relação ao presente. Assim, os europeus civilizados seriam superiores aos africanos e aos índios, a física galileana-newtoniana seria superior à aristotélica, a física quântica seria superior à de Galileu e de Newton.

Evoluir significa: tornar-se superior e melhor do que se era antes. Progredir significa: ir num rumo cada vez melhor na direção de uma finalidade superior.

Evolução e progresso também supõem o tempo como uma série linear de momentos ligados por relações de causa e efeito, em que o passado é causa e o presente, efeito, vindo a tornar-se causa do futuro. Vemos essa idéia aparecer quando, por exemplo, os manuais de História apresentam as “influências” que um acontecimento anterior teria tido sobre um outro, posterior.

Evoluir e progredir pressupõem uma concepção de História semelhante à que a biologia apresenta quando fala em germe, semente ou larva. O germe, a semente ou a larva são entes que contêm neles mesmos tudo o que lhes acontecerá, isto é, o futuro já está contido no ponto inicial de um ser, cuja história ou cujo tempo nada mais é do que o desdobrar ou o desenvolver pleno daquilo que ele já era potencialmente.

Essa idéia encontra-se presente, por exemplo, na distinção entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Quando digo que um país é ou está desenvolvido, digo que sei que alcançou a finalidade à qual estava destinado desde que surgiu. Quando digo que um país é ou está subdesenvolvido, estou dizendo que a finalidade – que é a mesma para ele e para o desenvolvido – ainda não foi, mas deverá ser alcançada em algum momento do tempo. Não por acaso, as expressões desenvolvido e subdesenvolvido foram usadas para substituir duas outras, tidas como ofensivas e agressivas: países adiantados e países atrasados, isto é, países evoluídos e não evoluídos, países com progresso e sem progresso.

Em resumo, evolução e progresso pressupõem: continuidade temporal, acumulação causal dos acontecimentos, superioridade do futuro e do presente com relação ao passado, existência de uma finalidade a ser alcançada.

Supunha-se que as mudanças científicas indicavam evolução ou progresso dos conhecimentos humanos.

Desmentindo a evolução e o progresso científicos

A Filosofia das Ciências, estudando as mudanças científicas, impôs um desmentido às idéias de evolução e progresso. Isso não quer dizer que a Filosofia das Ciências viesse a falar em atraso e regressão científica, pois essas duas noções são idênticas às de evolução e progresso, apenas com o sinal trocado (em vez de caminhar causal e continuamente para frente, caminhar-se-ia causal e continuamente para trás). O que a Filosofia das Ciências compreendeu foi que as elaborações científicas e os ideais de cientificidade são diferentes e descontínuos.

Quando, por exemplo, comparamos a geometria clássica ou geometria euclidiana (que opera com o espaço plano) e a geometria contemporânea ou topológica (que opera com o espaço tridimensional), vemos que não se trata de duas etapas ou de duas fases sucessivas da mesma ciência geométrica, e sim de duas geometrias diferentes, com princípios, conceitos, objetos, demonstrações completamente diferentes. Não houve evolução e progresso de uma para outra, pois são duas geometrias diversas e não geometrias sucessivas.

Quando comparamos as físicas de Aristóteles, Galileu-Newton e Einstein, não estamos diante de uma mesma física, que teria evoluído ou progredido, mas diante de três físicas diferentes, baseadas em princípios, conceitos, demonstrações, experimentações e tecnologias completamente diferentes. Em cada uma delas, a idéia de Natureza é diferente; em cada uma delas os métodos empregados são diferentes; em cada uma delas o que se deseja conhecer é diferente.

Quando comparamos a biologia genética de Mendel e a genética formulada pela bioquímica (baseada na descoberta de enzimas, de proteínas do ADN ou código genético), também não encontramos evolução e progresso, mas diferença e descontinuidade. Assim, por exemplo, o modelo explicativo que orientava o trabalho de Mendel era o da relação sexual como um encontro entre duas entidades diferentes – o espermatozóide e o óvulo -, enquanto o modelo que orienta a genética contemporânea é o da cibernética e da teoria da informação.

Quando comparamos a ciência da linguagem do século XIX (que era baseada nos estudos de filologia, isto é, nos estudos da origem e da história das palavras) com a lingüística contemporânea (que, como vimos no capítulo dedicado à linguagem, estuda estruturas), vemos duas ciências diferentes. E o mesmo pode ser dito de todas as ciências.

Verificou-se, portanto, uma descontinuidade e uma diferença temporal entre as teorias científicas como conseqüência não de uma forma mais evoluída, mais progressiva ou melhor de fazer ciência, e sim como resultado de diferentes maneiras de conhecer e construir os objetos científicos, de elaborar os métodos e inventar tecnologias. O filósofo Gaston Bachelard criou a expressão ruptura epistemológica[i] para explicar essa descontinuidade no conhecimento científico.

Rupturas epistemológicas e revoluções científicas

Um cientista ou um grupo de cientistas começam a estudar um fenômeno empregando teorias, métodos e tecnologias disponíveis em seu campo de trabalho. Pouco a pouco, descobrem que os conceitos, os procedimentos, os instrumentos existentes não explicam o que estão observando nem levam aos resultados que estão buscando. Encontram, diz Bachelard, um “obstáculo epistemológico”.

Para superar o obstáculo epistemológico, o cientista ou grupo de cientistas precisam ter a coragem de dizer: Não. Precisam dizer não à teoria existente e aos métodos e tecnologias existentes, realizando a ruptura epistemológica. Esta conduz à elaboração de novas teorias, novos métodos e tecnologias, que afetam todo o campo de conhecimentos existentes.

Uma nova concepção científica emerge, levando tanto a incorporar nela os conhecimentos anteriores, quanto a afastá-los inteiramente. O filósofo da ciência Khun designa esses momentos de ruptura epistemológica e de criação de novas teorias com a expressão revolução científica, como, por exemplo, a revolução copernicana, que substituiu a explicação geocêntrica pela heliocêntrica.

Segundo Khun, um campo científico é criado quando métodos, tecnologias, formas de observação e experimentação, conceitos e demonstrações formam um todo sistemático, uma teoria que permite o conhecimento de inúmeros fenômenos. A teoria se torna um modelo de conhecimento ou um paradigma científico. Em tempos normais, um cientista, diante de um fato ou de um fenômeno ainda não estudado, usa o modelo ou o paradigma científico existente. Uma revolução científica acontece quando o cientista descobre que os paradigmas disponíveis não conseguem explicar um fenômeno ou um fato novo, sendo necessário produzir um outro paradigma, até então inexistente e cuja necessidade não era sentida pelos investigadores.

A ciência, portanto, não caminha numa via linear contínua e progressiva, mas por saltos ou revoluções.

Assim, quando a idéia de próton-elétron-nêutron entra na física, a de vírus entra na biologia, a de enzima entra na química ou a de fonema entra na lingüística, os paradigmas existentes são incapazes de alcançar, compreender e explicar esses objetos ou fenômenos, exigindo a criação de novos modelos científicos.

Por que, então, temos a ilusão de progresso e de evolução? Por dois motivos principais:

1. do lado do cientista, porque este sente que sabe mais e melhor do que antes, já que o paradigma anterior não lhe permitia conhecer certos objetos ou fenômenos. Como trabalhava com uma tradição científica e a abandonou, tem o sentimento de que o passado estava errado, era inferior ao presente aberto por seu novo trabalho. Não é ele, mas o filósofo da ciência que percebe a ruptura e a descontinuidade e, portanto, a diferença temporal. Do lado do cientista, o progresso é uma vivência subjetiva;

2. do lado dos não-cientistas, porque vivemos sob a ideologia do progresso e da evolução, do “novo” e do “fantástico”. Além disso, vemos os resultados tecnológicos das ciências: naves espaciais, computadores, satélites, fornos de microondas, telefones celulares, cura de doenças julgadas incuráveis, objetos plásticos descartáveis, e esses resultados tecnológicos são apresentados pelos governos, pelas empresas e pela propaganda como “signos do progresso” e não da diferença temporal. Do lado dos não-cientistas, o progresso é uma crença ideológica.

Há, porém, uma razão mais profunda para nossa crença no progresso. Desde a Antiguidade, conhecer sempre foi considerado o meio mais precioso e eficaz para combater o medo, a superstição e as crendices. Ora, no caso da modernidade, o vínculo entre ciência e aplicação prática dos conhecimentos (tecnologias) fez surgirem objetos que não só facilitaram a vida humana (meios de transporte, de iluminação, de comunicação, de cultivo do solo, etc.), mas aumentaram a esperança de vida (remédios, cirurgias, etc.). Do ponto de vista dos resultados práticos, sentimos que estamos em melhores condições que os antigos e por isso falamos em evolução e progresso.

Do ponto de vista das próprias teorias científicas, porém, a noção de progresso não possui fundamento, como explicamos acima.

Falsificação X revolução

Vimos que a ciência contemporânea é construtivista, julgando que fatos e fenômenos novos podem exigir a elaboração de novos métodos, novas tecnologias e novas teorias.

Alguns filósofos da ciência, entre os quais Karl Popper, afirmaram que a reelaboração científica decorre do fato de ter havido uma mudança no conceito filosófico-científico da verdade. Esta, como já vimos, foi considerada durante muitos séculos como a correspondência exata entre uma idéia ou um conceito e a realidade. Vimos também que, no século passado, foi proposta uma teoria da verdade como coerência interna entre conceitos. Na concepção anterior, o falso acontecia quando uma idéia não correspondia à coisa que deveria representar. Na nova concepção, o falso é a perda da coerência de uma teoria, a existência de contradições entre seus princípios ou entre estes e alguns de seus conceitos.

Popper afirma que as mudanças científicas são uma conseqüência da concepção da verdade como coerência teórica. E propõe que uma teoria científica seja avaliada pela possibilidade de ser falsa ou falsificada.

Uma teoria científica é boa, diz Popper, quanto mais estiver aberta a fatos novos que possam tornar falsos os princípios e os conceitos em que se baseava. Assim, o valor de uma teoria não se mede por sua verdade, mas pela possibilidade de ser falsa. A falseabilidade seria o critério de avaliação das teorias científicas e garantiria a idéia de progresso científico, pois é a mesma teoria que vai sendo corrigida por fatos novos que a falsificam.

A maioria dos filósofos da ciência, entre os quais Khun, demonstrou o absurdo da posição de Popper. De fato, dizem eles, jamais houve um único caso em que uma teoria pudesse ser falsificada por fatos científicos. Jamais houve um único caso em que um fato novo garantisse a coerência de uma teoria, bastando impor a ela mudanças totais.

Cada vez que fatos provocaram verdadeiras e grandes mudanças teóricas, essas mudanças não foram feitas no sentido de “melhorar” ou “aprimorar” uma teoria existente, mas no sentido de abandoná-la por uma outra. O papel do fato científico não é o de falsear ou falsificar uma teoria, mas de provocar o surgimento de uma nova teoria verdadeira. É o verdadeiro e não o falso que guia o cientista, seja a verdade entendida como correspondência entre idéia e coisa, seja entendida como coerência interna das idéias.

Classificação das ciências

Ciência, no singular, refere-se a um modo e a um ideal de conhecimento que examinamos até aqui. Ciências, no plural, refere-se às diferentes maneiras de realização do ideal de cientificidade, segundo os diferentes fatos investigados e os diferentes métodos e tecnologias empregados.

A primeira classificação sistemática das ciências de que temos notícia foi a de Aristóteles, à qual já nos referimos no início deste livro. O filósofo grego empregou três critérios para classificar os saberes:

● critério da ausência ou presença da ação humana nos seres investigados, levando à distinção entre as ciências teoréticas (conhecimento dos seres que existem e agem independentemente da ação humana) e ciências práticas (conhecimento de tudo quanto existe como efeito das ações humanas);

● critério da imutabilidade ou permanência e da mutabilidade ou movimento dos seres investigados, levando à distinção entre metafísica (estudo do Ser enquanto Ser, fora de qualquer mudança), física ou ciências da Natureza (estudo dos seres constituídos por matéria e forma e submetidos à mudança ou ao movimento) e matemática (estudo dos seres dotados apenas de forma, sem matéria, imutáveis, mas existindo nos seres naturais e conhecidos por abstração);

● critério da modalidade prática, levando à distinção entre ciências que estudam a práxis (a ação ética, política e econômica, que tem o próprio agente como fim) e as técnicas (a fabricação de objetos artificiais ou a ação que tem como fim a produção de um objeto diferente do agente).

Com pequenas variações, essa classificação foi mantida até o século XVII, quando, então, os conhecimentos se separaram em filosóficos, científicos e técnicos. A partir dessa época, a Filosofia tende a desaparecer nas classificações científicas (é um saber diferente do científico), assim como delas desaparecem as técnicas. Das inúmeras classificações propostas, as mais conhecidas e utilizadas foram feitas por filósofos franceses e alemães do século XIX, baseando-se em três critérios: tipo de objeto estudado, tipo de método empregado, tipo de resultado obtido. Desses critérios e da simplificação feita sobre as várias classificações anteriores, resultou aquela que se costuma usar até hoje:

● ciências matemáticas ou lógico-matemáticas (aritmética, geometria, álgebra, trigonometria, lógica, física pura, astronomia pura, etc.);

● ciências naturais (física, química, biologia, geologia, astronomia, geografia física, paleontologia, etc.);

● ciências humanas ou sociais (psicologia, sociologia, antropologia, geografia humana, economia, lingüística, psicanálise, arqueologia, história, etc.);

● ciências aplicadas (todas as ciências que conduzem à invenção de tecnologias para intervir na Natureza, na vida humana e nas sociedades, como por exemplo, direito, engenharia, medicina, arquitetura, informática, etc.).

Cada uma das ciências subdivide-se em ramos específicos, com nova delimitação do objeto e do método de investigação. Assim, por exemplo, a física subdivide-se em mecânica, acústica, óptica, etc.; a biologia em botânica, zoologia, fisiologia, genética, etc.; a psicologia subdivide-se em psicologia do comportamento, do desenvolvimento, psicologia clínica, psicologia social, etc. E assim sucessivamente, para cada uma das ciências. Por sua vez, os próprios ramos de cada ciência subdividem-se em disciplinas cada vez mais específicas, à medida que seus objetos conduzem a pesquisas cada vez mais detalhadas e especializadas.

A ciência exemplar: a matemática

A matemática nasce de necessidades práticas: contar coisas e medir terrenos. Os primeiros a sistematizar modos de contar foram os orientais e, particularmente, os fenícios, povo comerciante que desenvolveu uma contabilidade, que posteriormente iria transformar-se em aritmética. Os primeiros a sistematizar modos de medir foram os egípcios, que precisavam, após cada cheia do rio Nilo, redistribuir as terras, medindo os terrenos. Criaram a agrimensura, de onde viria a geometria.

Foram os gregos que transformaram a arte de contar e de medir em ciências: a aritmética e a geometria são as duas primeiras ciências matemáticas, definindo o campo matemático como ciência da quantidade e do espaço, tendo por objetos números, figuras, relações e proporções. Após os gregos, foram os pensadores árabes que deram o impulso à matemática, descobrindo, entre coisas, o zero, desconhecido dos antigos.

Embora, no início, as matemáticas estivessem muito próximas da experiência sensorial – os números referiam-se às coisas contadas e as figuras representavam objetos existentes -, pouco a pouco afastaram-se do sensorial, rumando para a atividade pura do pensamento.

Por esse motivo, Platão exigia que a formação filosófica fosse feita através das matemáticas, por serem elas puramente intelectuais, seus objetos verdadeiros sendo conhecidos por meio de princípios e demonstrações universais e necessários. Também Descartes, no século XVII, afirmou que podemos duvidar de todos os nossos conhecimentos e idéias, menos da verdade dos conceitos e demonstrações matemáticos, os únicos que são indubitáveis. Platão e Descartes enfatizaram o caráter puramente intelectual e a priori das ciências matemáticas.

A valorização da matemática decorre de dois aspectos que a caracterizam:

1. a idealidade pura de seus objetos, que não se confundem com as coisas percebidas subjetivamente por nós; os objetos matemáticos são universais e necessários;

2. a precisão e o rigor dos princípios e demonstrações matemáticos, que seguem regras universais e necessárias, de tal modo que a demonstração de um teorema seja a mesma em qualquer época e lugar e a solução de um problema se faça pelos mesmos procedimentos em toda a época e lugar.

A universalidade e a necessidade dos objetos e instrumentos teóricos matemáticos deram à ciência matemática um valor de conhecimento excepcional, fazendo com que se tornasse o modelo principal de todos os conhecimentos científicos, no Ocidente; enfim, a ciência exemplar e perfeita.

Os objetos matemáticos são números e relações, figuras, volumes e proporções. Quantidade, espaço, relações e proporções definem o campo da investigação matemática, cujos instrumentos são axiomas, postulados, definições, demonstrações e operações. Objetos e procedimentos matemáticos foram fixados, pela primeira vez, pelo grego Euclides, numa obra chamada Elementos.

Um axioma é um princípio cuja verdade é indubitável, necessária e evidente por si mesma, não precisando de demonstração e servindo de fundamento às demonstrações. Por exemplo: o todo é maior do que as partes; duas grandezas iguais a uma terceira são iguais entre si; a menor distância entre dois pontos é uma reta. O axioma é um princípio regulador do raciocínio matemático e, por ser universal e evidente, é a priori.

Um postulado é um princípio cuja evidência depende de ser aceito por todos os que realizam uma demonstração matemática. É uma proposição necessária para o encadeamento de demonstrações, embora ela mesma não possa ser demonstrada, mas aceita como verdadeira. Por exemplo: “Por um ponto tomado em um plano, não se pode traçar senão uma paralela a uma reta dada nesse plano”. Os postulados são convenções básicas, aceitas por todos os matemáticos.

Uma definição pode ser nominal ou real. A definição nominal nos dá o nome do objeto matemático, dizendo o que ele é. É analítica, pois o predicado é a explicação do sujeito. Por exemplo: o triângulo é uma figura de três lados; o círculo é uma figura cujos pontos são eqüidistantes do centro. Uma definição real nos diz o que é o objeto designado pelo nome, isto é, oferece a gênese ou o modo de construção do objeto. Por exemplo: o triângulo é uma figura cujos ângulos somados são iguais à soma de dois ângulos retos; o círculo é uma figura formada pelo movimento de rotação de um semi-eixo à volta de um centro fixo.

Demonstrações e operações são procedimentos submetidos a um conjunto de regras que garantem a verdade e a necessidade do que está sendo demonstrado, ou do resultado do cálculo realizado.

A matemática é, por excelência, a ciência hipotético-dedutiva, porque suas demonstrações e cálculos se apóiam sobre um sistema de axiomas e postulados, a partir dos quais se constrói a dedução coerente ou o resultado necessário do cálculo.

Um tema muito discutido na Filosofia das Ciências refere-se à natureza dos objetos e princípios matemáticos.

São eles uma abstração e uma purificação dos dados de nossa experiência sensível? Originam-se da percepção? Ou são realidades ideais, alcançadas exclusivamente pelas operações do pensamento puro? São inteiramente a priori? Existem em si e por si mesmos, de tal modo que nosso pensamento simplesmente os descobre? Ou são construções perfeitas conseguidas pelo pensamento humano? Essas perguntas tornaram-se necessárias por vários motivos.

Em primeiro lugar, porque uma corrente filosófica, iniciada com Pitágoras e Platão, mantida por Galileu, Descartes, Newton e Leibniz, afirma que o mundo é em si mesmo matemático, isto é, a estrutura da realidade é de tipo matemático. Essa concepção garantiu o surgimento da física matemática moderna.

Em segundo lugar, porque o desenvolvimento da álgebra contemporânea e das chamadas geometrias não-euclidianas (ou geometrias imaginárias) deram à matemática uma liberdade de criação teórica sem precedentes, justamente por haver abandonado a idéia de que a estrutura da realidade é matemática. Nesse segundo caso, como já dizia Kant, a matemática é uma pura invenção do espírito humano, uma construção imaginária rigorosa e perfeita, mas sem objetos correspondentes no mundo.

Em terceiro lugar, porque, em nosso século, o avanço da criação e da construção matemáticas foi decisivo para o surgimento da teoria da relatividade, na física, da teoria das valências, na química, e da teoria sobre o ácido desoxirribonucléico, na biologia. Em outras palavras, quanto mais avançou a invenção e a criação matemática, tanto mais ela tornou-se útil para as ciências da Natureza, fazendo com que, agora, tenhamos que indagar: Os objetos matemáticos existem realmente (como queriam Platão, Galileu e Descartes), formando a estrutura do mundo, ou esta é uma pura construção teórica e por isso pode valer-se da construção matemática?

Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.

Unidade 7
As ciências

Capítulo 4
As ciências humanas

São possíveis ciências humanas?

Embora seja evidente que toda e qualquer ciência é humana, porque resulta da atividade humana de conhecimento, a expressão ciências humanas refere-se àquelas ciências que têm o próprio ser humano como objeto. A situação de tais ciências é muito especial. Em primeiro lugar, porque seu objeto é bastante recente: o homem como objeto científico é uma idéia surgida apenas no século XIX. Até então, tudo quanto se referia ao humano era estudado pela Filosofia.

Em segundo lugar, porque surgiram depois que as ciências matemáticas e naturais estavam constituídas e já haviam definido a idéia de cientificidade, de métodos e conhecimentos científicos, de modo que as ciências humanas foram levadas a imitar e copiar o que aquelas ciências haviam estabelecido, tratando o homem como uma coisa natural matematizável e experimentável. Em outras palavras, para ganhar respeitabilidade científica, as disciplinas conhecidas como ciências humanas procuraram estudar seu objeto empregando conceitos, métodos e técnicas propostos pelas ciências da Natureza.

Em terceiro lugar, por terem surgido no período em que prevalecia a concepção empirista e determinista da ciência, também procuraram tratar o objeto humano usando os modelos hipotético-indutivos e experimentais de estilo empirista, e buscavam leis causais necessárias e universais para os fenômenos humanos. Como, entretanto, não era possível realizar uma transposição integral e perfeita dos métodos, das técnicas e das teorias naturais para os estudos dos fatos humanos, as ciências humanas acabaram trabalhando por analogia com as ciências naturais e seus resultados tornaram-se muito contestáveis e pouco científicos.

Essa situação levou muitos cientistas e filósofos a duvidar da possibilidade de ciências que tivessem o homem como objeto. Quais as principais objeções feitas à possibilidade das ciências humanas?

● A ciência lida com fatos observáveis, isto é, com seres e acontecimentos que, nas condições especiais de laboratório, são objetos de experimentação. Como observar-experimentar, por exemplo, a consciência humana individual, que seria o objeto da psicologia? Ou uma sociedade, objeto da sociologia? Ou uma época passada, objeto da história?

● A ciência busca as leis objetivas gerais, universais e necessárias dos fatos. Como estabelecer leis objetivas para o que é essencialmente subjetivo, como o psiquismo humano? Como estabelecer leis universais para algo que é particular, como é o caso de uma sociedade humana? Como estabelecer leis necessárias para o que acontece uma única vez, como é o caso do acontecimento histórico?

● A ciência opera por análise (decomposição de um fato complexo em elementos simples) e síntese (recomposição do fato complexo por seleção dos elementos simples, distinguindo os essenciais dos acidentais). Como analisar e sintetizar o psiquismo humano, uma sociedade, um acontecimento histórico?

● A ciência lida com fatos regidos pela necessidade causal ou pelo princípio do determinismo universal. O homem é dotado de razão, vontade e liberdade, é capaz de criar fins e valores, de escolher entre várias opções possíveis. Como dar uma explicação científica necessária àquilo que, por essência, é contingente, pois é livre e age por liberdade?

● A ciência lida com fatos objetivos, isto é, com os fenômenos, depois que foram purificados de todos os elementos subjetivos, de todas as qualidades sensíveis, de todas as opiniões e todos os sentimentos, de todos os dados afetivos e valorativos. Ora, o humano é justamente o subjetivo, o sensível, o afetivo, o valorativo, o opinativo. Como transformá-lo em objetividade, sem destruir sua principal característica, a subjetividade?

O humano como objeto de investigação

Embora as ciências humanas sejam recentes, a percepção de que os seres humanos são diferentes das coisas naturais é antiga. Sob esse ponto de vista, podemos dizer que, do século XV ao início do século XX, a investigação do humano realizou-se de três maneiras diferentes:

1. Período do humanismo: inicia-se no século XV com a idéia renascentista da dignidade do homem como centro do Universo, prossegue nos séculos XVI e XVII com o estudo do homem como agente moral, político e técnico-artístico, destinado a dominar e controlar a Natureza e a sociedade, chegando ao século XVIII, quando surge a idéia de civilização, isto é, do homem como razão que se aperfeiçoa e progride temporalmente através das instituições sociais e políticas e do desenvolvimento das artes, das técnicas e dos ofícios. O humanismo não separa homem e Natureza, mas considera o homem um ser natural diferente dos demais, manifestando essa diferença como ser racional e livre, agente ético, político, técnico e artístico.

2. Período do positivismo: inicia-se no século XIX com Augusto Comte, para quem a humanidade atravessa três etapas progressivas, indo da superstição religiosa à metafísica e à teologia, para chegar, finalmente, à ciência positiva, ponto final do progresso humano. Comte enfatiza a idéia do homem como um ser social e propõe o estudo científico da sociedade: assim como há uma física da Natureza, deve haver uma física do social, a sociologia, que deve estudar os fatos humanos usando procedimentos, métodos e técnicas empregados pelas ciências da Natureza.

A concepção positivista não termina no século XIX com Comte, mas será uma das correntes mais poderosas e influentes nas ciências humanas em todo o século XX. Assim, por exemplo, a psicologia positivista afirma que seu objeto não é o psiquismo enquanto consciência, mas enquanto comportamento observável que pode ser tratado com o método experimental das ciências naturais. A sociologia positivista (iniciada por Comte e desenvolvida como ciência pelo francês Emile Durkheim) estuda a sociedade como fato, afirmando que o fato social deve ser tratado como uma coisa, à qual são aplicados os procedimentos de análise e síntese criados pelas ciências naturais. Os elementos ou átomos sociais são os indivíduos, obtidos por via da análise; as relações causais entre os indivíduos, recompostas por via da síntese, constituem as instituições sociais (família, trabalho, religião, Estado, etc.).

3. Período do historicismo: desenvolvido no final do século XIX e início do século XX por Dilthey, filósofo e historiador alemão. Essa concepção, herdeira do idealismo alemão (Kant, Fichte, Schelling, Hegel), insiste na diferença profunda entre homem e Natureza e entre ciências naturais e humanas, chamadas por Dilthey de ciências do espírito ou da cultura. Os fatos humanos são históricos, dotados de valor e de sentido, de significação e finalidade e devem ser estudados com essas características que os distinguem dos fatos naturais. As ciências do espírito ou da cultura não podem e não devem usar o método da observação-experimentação, mas devem criar o método da explicação e compreensão do sentido dos fatos humanos, encontrando a causalidade histórica que os governa.

O fato humano é histórico ou temporal: surge no tempo e se transforma no tempo. Em cada época histórica, os fatos psíquicos, sociais, políticos, religiosos, econômicos, técnicos e artísticos possuem as mesmas causas gerais, o mesmo sentido e seguem os mesmos valores, devendo ser compreendidos, simultaneamente, como particularidades históricas ou “visões de mundo” específicas ou autônomas e como etapas ou fases do desenvolvimento geral da humanidade, isto é, de um processo causal universal, que é o progresso.

O historicismo resultou em dois problemas que não puderam ser resolvidos por seus adeptos: o relativismo (numa época em que as ciências humanas buscavam a universalidade de seus conceitos e métodos) e a subordinação a uma filosofia da História (numa época em que as ciências humanas pretendiam separar-se da Filosofia).

Relativismo: as leis científicas são válidas apenas para uma determinada época e cultura, não podendo ser universalizadas. Filosofia da História: os indivíduos humanos e as instituições socioculturais só são compreensíveis se seu estudo científico subordinar-se a uma teoria geral da História que considere cada formação sociocultural seja como “visão de mundo” particular, seja como etapa de um processo histórico universal.

Para escapar dessas conseqüências, o sociólogo alemão Max Weber propôs que as ciências humanas – no caso, a sociologia e a economia – trabalhassem seus objetos como tipos ideais e não como fatos empíricos. O tipo ideal, como o nome indica, oferece construções conceituais puras, que permitem compreender e interpretar fatos particulares observáveis. Assim, por exemplo, o Estado se apresenta como uma forma de dominação social e política sob vários tipos ideais (dominação carismática, dominação pessoal burocrática, etc.), cabendo ao cientista verificar sob qual tipo encontra-se o caso particular investigado.

Fenomenologia, estruturalismo e marxismo

A constituição das ciências humanas como ciências específicas consolidou-se a partir das contribuições de três correntes de pensamento, que, entre os anos 20 e 50 do século passado, provocaram uma ruptura epistemológica e uma revolução científica no campo das humanidades.

A contribuição da fenomenologia

Como vimos em vários momentos deste livro, a fenomenologia introduziu a noção de essência ou significação como um conceito que permite diferenciar internamente uma realidade de outras, encontrando seu sentido, sua forma, suas propriedades e sua origem.

Dessa maneira, a fenomenologia começou por permitir que fosse feita a diferença rigorosa entre a esfera ou região da essência “Natureza” e a esfera ou região da essência “homem”. A seguir, permitiu que a esfera ou região “homem” fosse internamente diferenciada em essências diversas: o psíquico, o social, o histórico, o cultural. Com essa diferenciação, garantia às ciências humanas a validade de seus projetos e campos científicos de investigação: psicologia, sociologia, história, antropologia, lingüística, economia.

Qual a diferença entre a perspectiva positivista e a fenomenológica? Dois exemplos podem ajudar-nos a compreendê-la.

Recusando a perspectiva metafísica, que se referia ao psíquico em termos de alma e de interioridade, a psicologia volta-se para o estudo dos fatos psíquicos diretamente observáveis. Ao radicalizar essa concepção, a psicologia positivista fazia do psiquismo uma soma de elementos físico-químicos, anatômicos e fisiológicos, de sorte que não havia, propriamente falando, um objeto científico denominado “o psíquico”, mas efeitos psíquicos de causas não-psíquicas (físicas, químicas, fisiológicas, anatômicas). Por isso, a psicologia considerava-se uma ciência natural próxima da biologia, tendo como objeto o comportamento como um fato externo, observável e experimental.

Ao contrário, a psicologia como ciência humana do psiquismo tornou-se possível a partir do momento em que um conjunto de fatos internos e externos ligados à consciência (sensação, percepção, motricidade, linguagem, etc.) puderam ser definidos como dotados de significação objetiva própria.

Recusando a perspectiva da filosofia da História, que considerava as sociedades etapas culturais e civilizatórias de um processo histórico universal, a sociologia volta-se para o estudo dos fatos sociais observáveis. Inspirando-se nas ciências naturais, a sociologia positivista fazia da sociedade uma soma de ações individuais e tomava o indivíduo como elemento observável e causa do social, de sorte que não havia a sociedade como um objeto ou uma realidade propriamente dita, mas um efeito de ações psicológicas dos indivíduos. Somente a definição do social como algo essencialmente diferente do psíquico e como não sendo a mera soma de ações individuais permitiu o surgimento da sociologia como ciência propriamente dita.

Em resumo, antes da fenomenologia, cada uma das ciências humanas desfazia seu objeto num agregado de elementos de natureza diversa do todo, estudava as relações causais externas entre esses elementos e as apresentava como explicação e lei de seu objeto de investigação. A fenomenologia garantiu às ciências humanas a existência e a especificidade de seus objetos.

A contribuição do estruturalismo

O estruturalismo permitiu que as ciências humanas criassem métodos específicos para o estudo de seus objetos, livrando-as das explicações mecânicas de causa e efeito, sem que por isso tivessem que abandonar a idéia de lei científica.

A concepção estruturalista veio mostrar que os fatos humanos assumem a forma de estruturas, isto é, de sistemas que criam seus próprios elementos, dando a estes sentido pela posição e pela função que ocupam no todo. As estruturas são totalidades organizadas segundo princípios internos que lhes são próprios e que comandam seus elementos ou partes, seu modo de funcionamento e suas possibilidades de transformação temporal ou histórica. Nelas, o todo não é a soma das partes, nem um conjunto de relações causais entre elementos isoláveis, mas é um princípio ordenador, diferenciador e transformador. Uma estrutura é uma totalidade dotada de sentido.

Já vimos a noção de estrutura quando, nos capítulos dedicados à teoria do conhecimento, nos referimos à teoria da percepção, formulada pela psicologia da Gestalt ou da forma, bem como quando nos referimos à teoria da linguagem, elaborada pela lingüística contemporânea.

Após a psicologia e a lingüística, a primeira das ciências humanas a se transformar profundamente, graças à idéia de estrutura e ao método estrutural, foi a antropologia social. Esta pôde mostrar que, ao contrário do que pensava a antropologia positivista, as chamadas “sociedades primitivas” não são uma etapa atrasada da evolução da história social da humanidade, mas uma forma objetiva de organizar as relações sociais de modo diferente do nosso, constituindo estruturas culturais.

O antropólogo Claude Lévi-Strauss, por exemplo, mostrou que as estruturas dessas sociedades são baseadas no princípio do valor ou da equivalência, que permite a troca e a circulação de certos seres, de maneira a constituir o todo da sociedade, organizando todas as relações sociais: a troca ou circulação das mulheres (estrutura do parentesco como sistema social de alianças), a troca ou circulação de objetos especiais (estrutura do dom como sistema social da guerra e da paz) e troca e circulação da palavra (estrutura da linguagem como sistema do poder religioso e político). O modo como cada um desses sistemas ou estruturas parciais se organiza e se relaciona com os outros define a estrutura geral e específica de uma sociedade “primitiva”, que pode, assim, ser compreendida e explicada cientificamente.

A contribuição do marxismo

O marxismo permitiu compreender que os fatos humanos são instituições sociais e históricas produzidas não pelo espírito e pela vontade livre dos indivíduos, mas pelas condições objetivas nas quais a ação e o pensamento humanos devem realizar-se. Levou a compreender que os fatos humanos mais originários ou primários são as relações dos homens com a Natureza na luta pela sobrevivência e que tais relações são as de trabalho, dando origem às primeiras instituições sociais: família (divisão sexual do trabalho), pastoreio e agricultura (divisão social do trabalho), troca e comércio (distribuição social dos produtos do trabalho).

Assim, as primeiras instituições sociais são econômicas. Para mantê-las, o grupo social cria idéias e sentimentos, valores e símbolos aceitos por todos e que justificam ou legitimam as instituições assim criadas. Também para conservá-las, o grupo social cria instituições de poder que sustentem (pela força, pelas armas ou pelas leis) as relações sociais e as idéias-valores-símbolos produzidos.

Dessa maneira, o marxismo permitiu às ciências humanas compreender as articulações necessárias entre o plano psicológico e o social da existência humana; entre o plano econômico e o das instituições sociais e políticas; entre todas elas e o conjunto de idéias e de práticas que uma sociedade produz.

Graças ao marxismo, as ciências humanas puderam compreender que as mudanças históricas não resultam de ações súbitas e espetaculares de alguns indivíduos ou grupos de indivíduos, mas de lentos processos sociais, econômicos e políticos, baseados na forma assumida pela propriedade dos meios de produção e pelas relações de trabalho. A materialidade da existência econômica comanda as outras esferas da vida social e da espiritualidade e os processos históricos abrangem todas elas.

Enfim, o marxismo trouxe como grande contribuição à sociologia, à ciência política e à história a interpretação dos fenômenos humanos como expressão e resultado de contradições sociais, de lutas e conflitos sóciopolíticos determinados pelas relações econômicas baseadas na exploração do trabalho da maioria pela minoria de uma sociedade.

Em resumo, a fenomenologia permitiu a definição e a delimitação dos objetos das ciências humanas; o estruturalismo permitiu uma metodologia que chega às leis dos fatos humanos, sem que seja necessário imitar ou copiar os procedimentos das ciências naturais; o marxismo permitiu compreender que os fatos humanos são historicamente determinados e que a historicidade, longe de impedir que sejam conhecidos, garante a interpretação racional deles e o conhecimento de suas leis.

Com essas contribuições, que foram incorporadas de maneiras muito diferenciadas pelas várias ciências humanas, os obstáculos epistemológicos foram ultrapassados e foi possível demonstrar que os fenômenos humanos são dotados de sentido e significação, são históricos, possuem leis próprias, são diferentes dos fenômenos naturais e podem ser tratados cientificamente.

Os campos de estudo das ciências humanas

Se tomarmos as ciências humanas de acordo com seus campos de investigação, podemos distribuí-las da seguinte maneira:

Psicologia

● estudo das estruturas, do desenvolvimento das operações da mente humana (consciência, vontade, percepção, linguagem, memória, imaginação, emoções);

● estudo das estruturas e do desenvolvimento dos comportamentos humanos e animais;

● estudo das relações intersubjetivas dos indivíduos em grupo e em sociedade;

● estudo das perturbações (patologias) da mente humana e dos comportamentos humanos e animais.

Sociologia

● estudo das estruturas sociais: origem e forma das sociedades, tipos de organizações sociais, econômicas e políticas;

● estudo das relações sociais e de suas transformações;

● estudo das instituições sociais (origem, forma, sentido).

Economia

● estudo das condições materiais (naturais e sociais) de produção e reprodução da riqueza, de suas formas de distribuição, circulação e consumo;

● estudo das estruturas produtivas – relações de produção e forças produtivas – segundo o critério da divisão social do trabalho, da forma da propriedade, das regras do mercado e dos ciclos econômicos;

● estudo da origem, do desenvolvimento, das crises, das transformações e da reprodução das formas econômicas ou modos de produção.

Antropologia

● estudo das estruturas ou formas culturais em sua singularidade ou particularidade, isto é, como diferentes entre si por seus princípios internos de funcionamento e transformação. A cultura é entendida como modo de vida global de uma sociedade, incluindo: religião, formas de poder, formas de parentesco, formas de comunicação, organização da vida econômica, artes, técnicas, costumes, crenças, formas de pensamento e de comportamento, etc.;

● estudo das comunidades ditas “primitivas”, isto é, tanto das que desconhecem a divisão social em classes e recusam organizar-se sob a forma do mercado e do poder estatal, quanto daquelas que já iniciaram o processo de divisão social e política.

História

● estudo da gênese e do desenvolvimento das formações sociais em seus aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais;

● estudo das transformações das sociedades e comunidades como resultado e expressão de conflitos, lutas, contradições internas às formações sociais;

● estudo das transformações das sociedades e comunidades sob o impacto de acontecimentos políticos (revoluções, guerras civis, conquistas territoriais), econômicos (crises, inovações técnicas, descobertas de novas formas de exploração da riqueza ou procedimentos de produção, mudanças na divisão social do trabalho), sociais (movimentos sociais, movimentos populares, mudanças na estrutura e organização da família, da educação, da moralidade social, etc.) e culturais (mudanças científicas, tecnológicas, artísticas, filosóficas, éticas, religiosas, etc.);

● estudo dos acontecimentos que, em cada caso, determinaram ou determinam a preservação ou a mudança de uma formação social em seus aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais;

● estudo dos diferentes suportes da memória coletiva (documentos, monumentos, pinturas, fotografias, filmes, moedas, lápides funerárias, testemunhos e relatos orais e escritos, etc.).

Lingüística

● estudo das estruturas da linguagem como sistema dotado de princípios internos de funcionamento e transformação;

● estudo das relações entre língua (a estrutura) e fala ou palavra (o uso da língua pelos falantes);

● estudo das relações entre a linguagem e os outros sistemas de signos e símbolos ou outros sistemas de comunicação.

Psicanálise

● estudo da estrutura e do funcionamento do inconsciente e de suas relações com o consciente;

● estudo das patologias ou perturbações inconscientes e suas expressões conscientes (neuroses e psicoses).


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Devemos observar que:

● cada uma das ciências humanas subdivide-se em vários ramos, definidos pela especificidade crescente de seus objetos e métodos. Assim, podemos falar em psicologia social, clínica, do desenvolvimento, da aprendizagem, da criança, do adolescente, etc. Ou em sociologia política, do trabalho, rural, urbana, econômica, etc. Também podemos falar em história econômica, política, oral, social, etc. Ou levar em consideração que a antropologia depende de investigações feitas pela etnografia e pela etnologia ou pela arqueologia, assim como a lingüística trabalha com a fonologia, a fonética, a gramática, a semântica, a sintaxe, etc.;

● embora com campos e métodos específicos, as ciências humanas tendem a apresentar resultados mais completos e satisfatórios quando trabalham interdisciplinarmente, de modo a abranger os múltiplos aspectos simultâneos e sucessivos dos fenômenos estudados;

● os desenvolvimentos da lingüística, da antropologia e da psicanálise suscitaram o aparecimento de uma nova disciplina ou interdisciplina científica: a semiologia, que estuda os diferentes sistemas de signos e símbolos que constituem as múltiplas e diferentes formas de comunicação. O desenvolvimento da semiologia conduziu à idéia de que signos e símbolos são ações e práticas sócio-históricas, isto é, estão referidos às relações sociais e às suas condições históricas, cada sociedade e cada cultura constituindo-se como um sistema que integra e totaliza vários subsistemas de signos e símbolos (linguagem, arte, religião, instituições sociais e políticas, costumes, etc.).

Vários estudiosos propuseram que o método das ciências humanas fosse capaz de descrever e interpretar esses subsistemas e o sistema geral que os unifica. Esse método é a semiótica, tomada como metodologia própria às ciências humanas e capaz de unificá-las.

Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.

Unidade 7
As ciências

Capítulo 5
O ideal científico e a razão instrumental

O ideal científico

O percurso que fizemos no estudo das ciências evidencia a existência de um ideal científico: embora continuidades e rupturas marquem os conhecimentos científicos, a ciência é a confiança que a cultura ocidental deposita na razão como capacidade para conhecer a realidade, mesmo que esta, afinal, tenha que ser inteiramente construída pela própria atividade racional.

A lógica que rege o pensamento científico contemporâneo está centrada na idéia de demonstração e prova, a partir da definição ou construção do objeto do conhecimento por suas propriedades e funções e da posição do sujeito do conhecimento, através das operações de análise, síntese e interpretação. A ciência contemporânea funda-se:

● na distinção entre sujeito e objeto do conhecimento, que permite estabelecer a idéia de objetividade, isto é, de independência dos fenômenos em relação ao sujeito que conhece e age;

● na idéia de método como um conjunto de regras, normas e procedimentos gerais, que servem para definir ou construir o objeto e para o autocontrole do pensamento durante a investigação e, após esta, para a confirmação ou falsificação dos resultados obtidos. A idéia de método tem como pressuposto que o pensamento obedece universalmente a certos princípios internos – identidade, não-contradição, terceiro excluído, razão suficiente – dos quais dependem o conhecimento da verdade e a exclusão do falso. A verdade pode ser compreendida seja como correspondência necessária entre os conceitos e a realidade, seja como coerência interna dos próprios conceitos;

● nas operações de análise e síntese, isto é, de passagem do todo complexo às suas partes constituintes ou de passagem das partes ao todo que as explica e determina. O objeto científico é um fenômeno submetido à análise e à síntese, que descrevem os fatos observados ou constroem a própria entidade objetiva como um campo de relações internas necessárias, isto é, uma estrutura que pode ser conhecida em seus elementos, suas propriedades, suas funções e seus modos de permanência ou de transformação;

● na idéia de lei do fenômeno, isto é, de regularidades e constâncias universais e necessárias, que definem o modo de ser e de comportar-se do objeto, seja este tomado como um campo separado dos demais, seja tomado em suas relações com outros objetos ou campos de realidade. A lei científica define o que é o fato-fenômeno ou o objeto construído pelas operações científicas. Em outras palavras, a lei científica diz como o objeto se constitui, como se comporta, por que e como permanece, por que e como se transforma, sobre quais fenômenos atua e de quais sofre ação. A lei define o objeto segundo um sistema complexo de relações necessárias de causalidade, complementaridade, inclusão e exclusão. A idéia de lei visa a marcar o caráter necessário do objeto e a afastar as idéias de acaso, contingência, indeterminação, oferecendo o objeto como completamente determinado pelo pensamento ou completamente conhecido ou cognoscível;

● no uso de instrumentos tecnológicos e não simplesmente técnicos. Os instrumentos técnicos são prolongamentos de capacidades do corpo humano e destinam-se a aumentá-las na relação do nosso corpo com o mundo. Os instrumentos tecnológicos são ciência cristalizada em objetos materiais, nada possuem em comum com as capacidades e aptidões do corpo humano; visam a intervir nos fenômenos estudados e mesmo a construir o próprio objeto científico; destinam-se a dominar e transformar o mundo e não simplesmente a facilitar a relação do homem com o mundo. A tecnologia confere à ciência precisão e controle dos resultados, aplicação prática e interdisciplinaridade. O caso da biologia genética revela como a tecnologia da física, da química e da cibernética determinaram uma atividade interdisciplinar que resultou em descobertas e mudanças na biologia;

● na criação de uma linguagem específica e própria, distante da linguagem cotidiana e da linguagem literária. A ciência procura afastar os dados qualitativos e perceptivo-emotivos dos objetos ou dos fenômenos, para guardar ou construir apenas seus aspectos quantitativos e relacionais.

A linguagem cotidiana e a literária são conotativas e polissêmicas, isto é, nelas as palavras possuem múltiplos significados simultâneos, subentendidos, ambigüidades e exprimem tanto o sujeito quanto as coisas, ou seja, exprimem as relações vividas entre o sujeito e o mundo qualitativo de sons, cores, formas, odores, valores, sentimentos, etc.

Nas ciências, porém, sons e cores são explicados como variação no comprimento das ondas sonoras e luminosas, observadas e medidas no laboratório. Valores e sentimentos são explicados pelas análises do corpo vivido e da consciência, feitas pela psicologia; pelas análises da estrutura e organização da sociedade, feitas pela sociologia e pela antropologia.

A linguagem científica destaca o objeto das relações com o sujeito, separa-o da experiência vivida cotidiana e constrói uma linguagem puramente denotativa para exprimir sem ambigüidades as leis do objeto. O simbolismo científico rompe com o simbolismo da linguagem cotidiana construindo uma linguagem própria, com símbolos unívocos e denotativos, de significado único e universal. A ciência constrói o algoritmo e fala através dos algoritmos ou de uma combinatória de estilo matemático.

Justamente por serem estes os principais traços do ideal científico, podemos compreender por que existem os problemas epistemológicos examinados nos capítulos precedentes. Em outras palavras, o ideal de cientificidade impõe às idéias critérios e finalidades que, quando impedidos de se concretizarem, forçam rupturas e mudanças teóricas profundas, fazendo desaparecer campos e disciplinas científicos ou levando ao surgimento de objetos, métodos, disciplinas e campos de investigação novos.

Ciência desinteressada e utilitarismo

Desde a Renascença – isto é, desde o humanismo, que colocava o homem no centro do Universo e afirmava seu poder para conhecer e dominar a realidade – duas concepções sobre o valor da ciência estiveram sempre em confronto.

A primeira delas, que chamaremos de ideal do conhecimento desinteressado, afirma que o valor de uma ciência encontra-se na qualidade, no rigor e na exatidão, na coerência e na verdade de uma teoria, independentemente de sua aplicação prática. A teoria científica vale por trazer conhecimentos novos sobre fatos desconhecidos, por ampliar o saber humano sobre a realidade e não por ser aplicável praticamente. Em outras palavras, é por ser verdadeira que a ciência pode ser aplicada na prática, mas o uso da ciência é conseqüência e não causa do conhecimento científico.

A segunda concepção, conhecida como utilitarismo, ao contrário, afirma que o valor de uma ciência encontra-se na quantidade de aplicações práticas que possa permitir. É o uso ou a utilidade imediata dos conhecimentos que prova a verdade de uma teoria científica e lhe confere valor. Os conhecimentos são procurados para resolver problemas práticos e estes determinam não só o aparecimento de uma ciência, mas também suas transformações no decorrer do tempo.

As duas concepções são verdadeiras, mas parciais. Se uma teoria científica fosse elaborada apenas por suas finalidades práticas imediatas, inúmeras pesquisas jamais teriam sido feitas e inúmeros fenômenos jamais teriam sido conhecidos, pois, com freqüência, os conhecimentos teóricos estão mais avançados do que as capacidades técnicas de uma época e, em geral, sua aplicação só é percebida e só é possível muito tempo depois de haver sido elaborada.

No entanto, se uma teoria científica não for capaz de suscitar aplicações, se não for capaz de permitir o surgimento de objetos técnicos e tecnológicos, instrumentos, utensílios, máquinas, medicamentos, de resolver problemas importantes para os seres humanos, então seremos obrigados a dizer que a técnica e a tecnologia são cegas, incertas, arriscadas e perigosas, porque são práticas sem bases teóricas seguras. Na realidade, teoria e prática científicas estão relacionadas na concepção moderna e contemporânea de ciência, mesmo que uma possa estar mais avançada do que a outra.

A distinção e a relação entre ciência pura e ciência aplicada pode solucionar o impasse ou o confronto entre as duas concepções sobre o valor das teorias científicas, garantindo, por um lado, que uma teoria possa e deva ser elaborada sem a preocupação com fins práticos imediatos, embora possa, mais tarde, contribuir para eles; e, por outro lado, garantindo o caráter científico de teorias construídas diretamente com finalidades práticas, as quais podem, por sua vez, suscitar investigações puramente teóricas.

Pode-se dizer que são problemas e dificuldades técnicas e práticas que suscitam o desenvolvimento de conhecimentos teóricos. Sabemos, por exemplo, que o químico Lavoisier decidiu estudar o fenômeno da combustão para resolver problemas econômicos da cidade de Paris, que Galileu e Torricelli investigaram o movimento dos corpos no vácuo para resolver problemas de carregamento de grandes pesos nos portos e para responder a uma pergunta dos construtores de fontes dos jardins da cidade de Florença.

No entanto, o que sempre se verifica é que a explicação científica e a teoria acabam conhecendo muito mais fatos e relações do que o que era necessário para solucionar o problema prático, de tal modo que as pesquisas teóricas vão avançando já sem a preocupação prática, embora comecem a surgir e a suscitar, tempos depois, soluções práticas para problemas novos. Assim, por exemplo, passou-se muito tempo até que a teoria eletromagnética de Hertz levasse às técnicas de radiodifusão.

A ideologia cientificista

O senso comum, ignorando as complexas relações entre as teorias científicas e as técnicas, entre ciência pura e ciência aplicada, entre teoria e prática e entre verdade e utilidade, tende a identificar as ciências com os resultados de suas aplicações. Essa identificação desemboca numa atitude conhecida como cientificismo, isto é, fusão entre ciência e técnica e a ilusão da neutralidade científica.

Examinemos brevemente cada um desses aspectos que constituem a ideologia da ciência na sociedade contemporânea.

O cientificismo

O cientificismo é a crença infundada de que a ciência pode e deve conhecer tudo, que, de fato, conhece tudo e é a explicação causal das leis da realidade tal como esta é em si mesma.

Ao contrário dos cientistas, que não cessam de enfrentar obstáculos epistemológicos, problemas e enigmas, o senso comum cientificista desemboca numa ideologia e numa mitologia da ciência.

Ideologia da ciência: crença no progresso e na evolução dos conhecimentos que, um dia, explicarão totalmente a realidade e permitirão manipulá-la tecnicamente, sem limites para a ação humana.

Mitologia da ciência: crença na ciência como se fosse magia e poderio ilimitado sobre as coisas e os homens, dando-lhe o lugar que muitos costumam dar às religiões, isto é, um conjunto doutrinário de verdades intemporais, absolutas e inquestionáveis.

A ideologia e a mitologia cientificistas encaram a ciência não pelo prisma do trabalho do conhecimento, mas pelo prisma dos resultados (apresentados como espetaculares e miraculosos) e sobretudo como uma forma de poder social e de controle do pensamento humano. Por este motivo, aceitam a ideologia da competência, isto é, a idéia de que há, na sociedade, os que sabem e os que não sabem, que os primeiros são competentes e têm o direito de mandar e de exercer poderes, enquanto os demais são incompetentes, devendo obedecer e ser mandados. Em resumo, a sociedade deve ser dirigida e comandada pelos que “sabem” e os demais devem executar as tarefas que lhes são ordenadas.

A ilusão da neutralidade da ciência

Como a ciência se caracteriza pela separação e pela distinção entre o sujeito do conhecimento e o objeto; como a ciência se caracteriza por retirar dos objetos do conhecimento os elementos subjetivos; como os procedimentos científicos de observação, experimentação e interpretação procuram alcançar o objeto real ou o objeto construído como modelo aproximado do real; e, enfim, como os resultados obtidos por uma ciência não dependem da boa ou má vontade do cientista nem de suas paixões, estamos convencidos de que a ciência é neutra ou imparcial. Diz à razão o que as coisas são em si mesmas. Desinteressadamente.

Essa imagem da neutralidade científica é ilusória.

Quando o cientista escolhe uma certa definição de seu objeto, decide usar um determinado método e espera obter certos resultados, sua atividade não é neutra nem imparcial, mas feita por escolhas precisas. Vamos tomar três exemplos que nos ajudarão a esclarecer este ponto.

O racismo não é apenas uma ideologia social e política. É também uma teoria que se pretende científica, apoiada em observações, dados e leis conseguidas com a biologia, a psicologia, a sociologia. É uma certa maneira de construir tais dados, de sorte a transformar diferenças étnicas e culturais em diferenças biológicas naturais imutáveis e separar os seres humanos em superiores e inferiores, dando aos primeiros justificativas para explorar, dominar e mesmo exterminar os segundos.

Por que Copérnico teve que esconder os resultados de suas pesquisas e Galileu foi forçado a comparecer perante a Inquisição e negar que a Terra se movia ao redor do Sol? Porque a concepção astronômica geocêntrica (elaborada, na Antiguidade, por Ptolomeu e Aristóteles) permitia que a Igreja Romana mantivesse a idéia de que a realidade é constituída por uma hierarquia de seres, que vão dos mais perfeitos – os celestes – aos mais imperfeitos – os infernais – e que essa hierarquia colocava a Igreja acima dos imperadores, estes acima dos barões e estes acima dos camponeses e servos.

Se a astronomia demonstrasse que a Terra não é o centro do Universo e que o Sol não é apenas uma perfeição imóvel, e se a mecânica galileana demonstrasse que todos os seres estão submetidos às mesmas leis do movimento, então as hierarquias celestes, naturais e humanas, perderiam legitimidade e fundamento, não precisando ser respeitadas. A física e a astronomia pré-copernicanas (elaboradas por Ptolomeu e Aristóteles) serviam – independentemente da vontade de Ptolomeu e de Aristóteles, é verdade – a uma sociedade e a uma concepção do poder que se viram ameaçadas por uma nova concepção científica.

Um último exemplo pode ser dado através da antropologia. Durante muito tempo, os antropólogos afirmaram que havia duas formas de pensamento cientificamente observáveis e com leis diferentes: o pensamento lógico-racional dos civilizados (europeus brancos adultos) e o pensamento pré-lógico e pré-racional dos selvagens ou primitivos (africanos, índios, tribos australianas). O primeiro era considerado superior, verdadeiro e evoluído; o segundo, inferior, falso, supersticioso e atrasado, cabendo aos brancos europeus “auxiliar” os selvagens “primitivos” a abandonar sua cultura e adquirir a cultura “evoluída” dos colonizadores.

O melhor caminho para perceber a impossibilidade de uma ciência neutra é levar em consideração o modo como a pesquisa científica se realiza em nosso tempo.

Durante séculos, os cientistas trabalharam individualmente (mesmo que possuíssem auxiliares e discípulos) em seus pequenos laboratórios. Suas pesquisas eram custeadas ou por eles mesmos ou por reis, nobres e burgueses ricos, que desejavam a glória de patrocinar descobertas e as vantagens práticas que delas poderiam advir. Por sua vez, o senso comum social olhava o cientista como inventor e gênio.

Hoje, os cientistas trabalham coletivamente, em equipes, nos grandes laboratórios universitários, nos dos institutos de pesquisa e nos das grandes empresas transnacionais que participam de um sistema conhecido como complexo industrial-militar. As pesquisas são financiadas pelo Estado (nas universidades e institutos), pelas empresas privadas (em seus laboratórios) e por ambos (nos centros de investigação do complexo industrial-militar). São pesquisas que exigem altos investimentos econômicos e das quais se esperam resultados que a opinião pública nem sempre conhece. Além disso, os cientistas de uma mesma área de investigação competem por recursos, tendem a fazer segredo de suas descobertas, pois dependem delas para conseguir fundos e vencer a competição com outros.

Sabemos, hoje, que a maioria dos resultados científicos que usamos em nossa vida cotidiana – máquinas, remédios, fertilizantes, produtos de limpeza e de higiene, materiais sintéticos, computadores – tiveram como origem investigações militares e estratégicas, competições econômicas entre grandes empresas transnacionais e competições políticas entre grandes Estados. Muito do que usamos em nosso cotidiano provém de pesquisas nucleares, bacteriológicas e espaciais.

O senso comum social, agora, vê o cientista como engenheiro e mago, em roupas brancas no interior de grandes laboratórios repletos de objetos incompreensíveis, rodeado de outros cientistas, fazendo cálculos misteriosos diante de dezenas de computadores.

Tanto na visão anterior – o cientista como inventor e gênio solitário – quanto na atual – o cientista como membro de uma equipe de engenheiros e magos -, o senso comum vê a ciência desligada do contexto das condições de sua realização e de suas finalidades. Eis porque tende a acreditar na neutralidade científica, na idéia de que o único compromisso da ciência é o conhecimento verdadeiro e desinteressado e a solução correta de nossos problemas.

A ideologia cientificista usa essa imagem idealizada para consolidar a da neutralidade científica, dissimulando, com isso, a origem e a finalidade da maioria das pesquisas, destinadas a controlar a Natureza e a sociedade segundo os interesses dos grupos que controlam os financiamentos dos laboratórios.

A razão instrumental

Por que há uma ideologia e uma mitologia da ciência?

Quando estudamos a teoria do conhecimento, examinamos a noção de ideologia como lógica social imaginária de ocultamento da realidade histórica. Ao estudarmos o nascimento da Filosofia, examinamos a diferença entre mythos e logos, isto é, entre a explicação antropomórfica e mágica do mundo e a explicação racional. Quando estudamos a razão, vimos que alguns filósofos alemães, reunidos na Escola de Frankfurt, descreveram a racionalidade ocidental como instrumentalização da razão. Se reunirmos esses vários estudos que fizemos até aqui, poderemos responder à pergunta sobre a ideologização e a mitologização da ciência.

A razão instrumental – que os frankfurtianos, como Adorno, Marcuse e Horkheimer também designaram com a expressão razão iluminista – nasce quando o sujeito do conhecimento toma a decisão de que conhecer é dominar e controlar a Natureza e os seres humanos. Assim, por exemplo, o filósofo Francis Bacon, no início do século XVII, criou uma expressão para referir-se ao objeto do conhecimento científico: “a Natureza atormentada”.

Atormentar a Natureza é fazê-la reagir a condições artificiais, criadas pelo homem. O laboratório científico é a maneira paradigmática de efetuar esse tormento, pois, nele, plantas, animais, metais, líquidos, gases, etc. são submetidos a condições de investigação totalmente diversas das naturais, de maneira a fazer com que a experimentação supere a experiência, descobrindo formas, causas, efeitos que não poderiam ser conhecidos se contássemos apenas com a atividade espontânea da Natureza. Atormentar a Natureza é conhecer seus segredos para dominá-la e transformá-la.

O tormento da realidade aumenta com a ciência contemporânea, uma vez que esta não se contenta em conhecer as coisas e os seres humanos, mas os constrói artificialmente e aplica os resultados dessa construção ao mundo físico, biológico e humano (psíquico, social, político, histórico). Assim, por exemplo, a organização do processo de trabalho nas indústrias apresenta-se como científica porque é baseada em conceitos da psicologia, da sociologia, da economia, que permitem dominar e controlar o trabalho humano sob todos os aspectos (controle sobre o corpo e o espírito dos trabalhadores), a fim de que a produtividade seja a maior possível para render lucros ao capital.

Na medida em que a razão se torna instrumental, a ciência vai deixando de ser uma forma de acesso aos conhecimentos verdadeiros para tornar-se um instrumento de dominação, poder e exploração. Para que não seja percebida como tal, passa a ser sustentada pela ideologia cientificista, que, através da escola e dos meios de comunicação de massa, desemboca na mitologia cientificista.

Todavia, devemos distinguir entre o momento da investigação científica propriamente dita e o da ideologização-mitologização de uma ciência. Um exemplo poderá auxiliar-nos a perceber essa diferença. Quando Darwin elabora a teoria biológica da evolução das espécies, o modelo de explicação usado por ele permitia-lhe supor que o processo evolutivo ocorria por seleção natural dos mais aptos à sobrevivência.

Ora, na mesma época, a sociedade capitalista estava convencida de que o progresso social e histórico provinha da competição e da concorrência dos indivíduos, segundo a lei econômica da oferta e da procura. Um filósofo, Spencer, aplicou, então, a teoria darwiniana à sociedade: nesta, os mais “aptos” (isto é, os mais capazes de competir e concorrer) tornam-se naturalmente superiores aos outros, vencendo-os em riqueza, privilégios e poder.

Ao transpor uma teoria biológica para uma explicação filosófica sobre a essência da sociedade, Spencer transformou a teoria científica da evolução em ideologia evolucionista. Por quê? Em primeiro lugar, porque generalizou para toda a realidade resultados obtidos num campo particular de conhecimentos específicos. Em segundo lugar, porque tomou conceitos referentes a fatos naturais e os converteu em fatos sociais, como se não houvesse diferença entre Natureza e sociedade. Uma vez criada a ideologia evolucionista, o evolucionismo tornou-se teoria da História e, a seguir, mitologia científica do progresso humano.

A noção de razão instrumental nos permite compreender:

● a transformação de uma ciência em ideologia e mito social, isto é, em senso comum cientificista;

● que a ideologia da ciência não se reduz à transformação de uma teoria científica em ideologia, mas encontra-se na própria ciência, quando esta é concebida como instrumento de dominação, controle e poder sobre a Natureza e a sociedade;

● que as idéias de progresso técnico e neutralidade científica pertencem ao campo da ideologia cientificista.

Confusão entre ciência e técnica

Vimos que a ciência moderna e contemporânea transforma a técnica em tecnologia, isto é, passa da máquina-utensílio à máquina como instrumento de precisão, que permite conhecimentos mais exatos e novos conhecimentos.

Essa transformação traz duas conseqüências principais: a primeira se refere ao conhecimento científico e a segunda, ao estatuto dos objetos técnicos:

1. o conhecimento científico é concebido como lógica da invenção (para a solução de problemas teóricos e práticos) e como lógica da construção (de objetos teóricos), graças à possibilidade de estudar os fenômenos sem depender apenas dos recursos de nossa percepção e de nossa inteligência. É assim que, por exemplo, Galileu se refere ao telescópio como um instrumento cuja função não é a de simplesmente aproximar objetos distantes, mas de corrigir as distorções de nossos olhos e garantir-nos a imagem correta das coisas. O mesmo foi dito sobre o microscópio, sobre a balança de precisão, sobre o cronômetro.

Em nosso tempo, os instrumentos técnico-tecnológicos vão além da correção de nossa percepção, pois corrigem falhas de nosso pensamento, uma vez que são inteligências artificiais (o computador foi chamado de “cérebro eletrônico”) mais acuradas do que nossa inteligência individual. Evidentemente, são conhecimentos científicos que permitem a construção desses instrumentos, mas dando-lhes capacidades que cada um de nós, enquanto indivíduo, não possui. Ora, os objetos técnico-tecnológicos ampliam a idéia da ciência como invenção e construção dos próprios fenômenos;

2. os objetos técnicos são criados pela ciência como instrumentos de auxílio ao trabalho humano, máquinas para dominar a Natureza e a sociedade, instrumentos de precisão para o conhecimento científico e, sobretudo, em sua forma contemporânea, como autômatos. Estes são o objeto técnico-tecnológico por excelência, porque possuem as seguintes características, marcas do novo estatuto desse objeto:

● são conhecimento científico objetivado, isto é, depositado e concretizado num objeto. São resultado e corporificação de conhecimentos científicos;

● são objetos que possuem em si mesmos o princípio de sua regulação, manutenção e transformação. As máquinas antigas dependiam de forças externas para realizar suas funções (alavancas, polias, manivelas, força muscular de seres humanos ou de animais, força hidráulica, etc.). As máquinas modernas são autômatos porque, dado o impulso eletro-eletrônico inicial, realizam por si mesmas todas as operações para as quais foram programadas, incluindo a correção de sua própria ação, a realimentação de energia, a transformação. São auto-reguladas e autoconservadas, porque possuem em si mesmas as informações necessárias ao seu funcionamento;

● como conseqüência, não são propriamente um objeto singular ou individual, mas um sistema de objetos interligados por comandos recíprocos;

● são sistemas que, uma vez programados, realizam operações teóricas complexas, que modificam o conteúdo dos próprios conhecimentos científicos, isto é, os objetos técnico-tecnológicos fazem parte do trabalho teórico.

Ora, o senso comum social ignora essas transformações da ciência e da técnica e conhece apenas seus resultados mais imediatos: os objetos que podem ser usados por nós (máquina de lavar, videogame, televisão a cabo, máquina de calcular, computador, robô industrial, etc.).

Como, para usá-los, precisamos receber um conjunto de informações detalhadas e sofisticadas, tendemos a identificar o conhecimento científico com seus efeitos tecnológicos. Com isso, deixamos de perceber o essencial, isto é, que as ciências passaram a fazer parte das forças econômicas produtivas da sociedade e trouxeram mudanças sociais de grande porte na divisão social do trabalho, na produção e na distribuição dos objetos, na forma de consumi-los. Não percebemos que as pesquisas científicas são financiadas por empresas e governos, demandando grandes somas de recursos que retornam, graças aos resultados obtidos, na forma de lucro e poder para os agentes financiadores.

Por não percebermos o poderio econômico das ciências, lutamos para ter acesso, para possuir e consumir os objetos tecnológicos, mas não lutamos pelo direito de acesso tanto aos conhecimentos como às pesquisas científicas, nem lutamos pelo direito de decidir seu modo de inserção na vida econômica e política de uma sociedade.

Eis porque, entre outros efeitos de nossa confusão entre ciência e tecnologia, aceitamos, no Brasil, políticas educacionais que profissionalizam os jovens no segundo grau – portanto, antes que tenham podido ter acesso às ciências propriamente ditas – e que destinam poucos recursos públicos às áreas de pesquisa nas universidades – portanto, mantendo os cientistas na mera condição de reprodutores de ciências produzidas em outros países e sociedades.

O problema do uso das ciências

Além do problema anterior, isto é, de teorias científicas serem formuladas a partir de certas decisões e escolhas do cientista ou do laboratório onde trabalham os cientistas, com conseqüências sérias para os seres humanos, um outro problema também é trazido pelas ciências: o de seu uso.

Vimos que uma teoria científica pode nascer para dar resposta a um problema prático ou técnico. Vimos também que a investigação científica pode ir avançando para descobertas de fenômenos e relações que já não possuem relação direta com os problemas práticos iniciais e, como conseqüência, é freqüente uma teoria estar muito mais avançada do que as técnicas e tecnologias que poderão aplicá-la. Muitas vezes, aliás, o cientista sequer imagina que a teoria terá aplicação prática.

É exatamente isso que torna o uso da ciência algo delicado, que, em geral, escapa das mãos dos próprios pesquisadores. É assim, por exemplo, que a microfísica ou física quântica desemboca na fabricação das armas nucleares; a bioquímica e a genética, na de armas bacteriológicas. Teorias sobre a luz e o som permitem a construção de satélites artificiais, que, se são conectáveis instantaneamente em todo o globo terrestre para a comunicação e informação, também são responsáveis por espionagem militar e por guerras com armas teleguiadas.

Uma das características mais novas da ciência está em que as pesquisas científicas passaram a fazer parte das forças produtivas da sociedade, isto é, da economia. A automação, a informatização, a telecomunicação determinam formas de poder econômico, modos de organizar o trabalho industrial e os serviços, criam profissões e ocupações novas, destroem profissões e ocupações antigas, introduzem a velocidade na produção de mercadorias e em sua distribuição e consumo, modificando padrões industriais, comerciais e estilos de vida. A ciência tornou-se parte integrante e indispensável da atividade econômica. Tornou-se agente econômico e político.

Além de fazer parte essencial da atividade econômica, a ciência também passou a fazer parte do poder político. Não é por acaso, por exemplo, que governos criem ministérios e secretarias de ciência e tecnologia e que destinem verbas para financiar pesquisas civis e militares. Do mesmo modo que as grandes empresas financiam pesquisas e até criam centros e laboratórios de investigação científica, assim também os governos determinam quais as ciências que irão ser desenvolvidas e, nelas, quais as pesquisas que serão financiadas.

Essa nova posição das ciências na sociedade contemporânea, além de indicar que é mínimo ou quase inexistente o grau de neutralidade e de liberdade dos cientistas, indica também que o uso das ciências define os recursos financeiros que nelas serão investidos.

A sociedade, porém, não luta pelo direito de interferir nas decisões de empresas e governos quando estes decidem financiar um tipo de pesquisa em vez de outra. Dessa maneira, o campo científico torna-se cada vez mais distante da sociedade sem que esta encontre meios para orientar o uso das ciências, pois este é definido antes do início das próprias pesquisas e fora do controle que a sociedade poderia exercer sobre ele.

Um exemplo de luta social para intervir nas decisões sobre as pesquisas e seus usos encontra-se nos movimentos ecológicos e em muitos movimentos sociais ligados a reivindicações de direitos. De um modo geral, porém, a ideologia cientificista tende a ser muito mais forte do que eles e a limitar os resultados que desejariam obter.