Convite à Filosofia De Marilena Chaui Ed. Ática, São Paulo, 2000. Unidade 5 A lógica Capítulo 1 O nascimento da lógica É lógico! “É lógico que eu vou!”, “É lógico que ela disse isso!”. Quando dizemos frases como essas, a expressão “é lógico que” indica, para nós e para a pessoa com quem estamos falando, que se trata de alguma coisa evidente. A expressão aparece como se fosse a conclusão de um raciocínio implícito, compartilhado pelos interlocutores do discurso. Ao dizer “É lógico que eu vou!”, estou supondo que quem me ouve sabe, sem que isso seja dito explicitamente, que também estou afirmando: “Você me conhece, sabe o que penso, gosto ou quero, sabe o que vai acontecer no lugar x e na hora y e, portanto, não há dúvida de que irei até lá”. Ao dizer “É lógico que ela disse isso!”, a situação é semelhante. A expressão seria a conclusão de algo que eu e a outra pessoa sabemos, como se eu estivesse dizendo: “Sabendo quem ela é, o que pensa, gosta, quer, o que costuma dizer e fazer, e vendo o que está acontecendo agora, concluo que é evidente que ela disse isso, pois era de se esperar que ela o dissesse”. Nesses casos, estamos tirando uma conclusão que nos parece óbvia, e dizer “é lógico que” seria o mesmo que dizer: “é claro que” ou “não há dúvida de que”. Em certas ocasiões, ouvimos, lemos, vemos alguma coisa e nossa reação é dizer: “Não. Não pode ser assim. Isso não tem lógica!”. Ou, então: “Isso não é lógico!”. Essas duas expressões indicam uma situação oposta às anteriores, ou seja, agora uma conclusão foi tirada por alguém, mas o que já sabemos (de uma pessoa, de um fato, de uma idéia, de um livro) nos faz julgar que a conclusão é indevida, está errada, deveria ser outra. É possível, também, que as duas expressões estejam indicando que o conhecimento que possuímos sobre alguma coisa, sobre alguém ou sobre um fato não é suficiente para compreendermos o que estamos ouvindo, vendo, lendo e por isso nos parece “não ter lógica”. Nesses vários exemplos, podemos perceber que as palavras lógica e lógico são usadas por nós para significar: 1. ou uma inferência: visto que conheço x, disso posso concluir y como conseqüência; 2. ou a exigência de coerência: visto que x é assim, então é preciso que y seja assim; 3. ou a exigência de que não haja contradição entre o que sabemos de x e a conclusão y a que chegamos; 4. ou a exigência de que, para entender a conclusão y, precisamos saber o suficiente sobre x para conhecer por que se chegou a y. Inferência, coerência, conclusão sem contradições, conclusão a partir de conhecimentos suficientes são algumas noções implicitamente pressupostas por nós toda vez que afirmamos que algo é lógico ou ilógico. Ao usarmos as palavras lógica e lógico estamos participando de uma tradição de pensamento que se origina da Filosofia grega, quando a palavra logos – significando linguagem-discurso e pensamento-conhecimento – conduziu os filósofos a indagar se o logos obedecia ou não a regras, possuía ou não normas, princípios e critérios para seu uso e funcionamento. A disciplina filosófica que se ocupa com essas questões chama-se lógica. O aparecimento da lógica: Heráclito e Parmênides Quando estudamos o nascimento da Filosofia, vimos que os primeiros filósofos se preocupavam com a origem, a transformação e o desaparecimento de todos os seres. Preocupavam-se com o devir. Duas grandes tendências adotaram posições opostas a esse respeito, na época do surgimento da Filosofia: a do filósofo Heráclito de Éfeso e a do filósofo Parmênides de Eléia. Heráclito afirmava que somente o devir ou a mudança é real. O dia se torna noite, o inverno se torna primavera, esta se torna verão, o úmido seca, o seco umedece, o frio esquenta, o quente esfria, o grande diminui, o pequeno cresce, o doente ganha saúde, a treva se faz luz, esta se transforma naquela, a vida cede lugar à morte, esta dá origem àquela. O mundo, dizia Heráclito, é um fluxo perpétuo onde nada permanece idêntico a si mesmo, mas tudo se transforma no seu contrário. A luta é a harmonia dos contrários, responsável pela ordem racional do universo. Nossa experiência sensorial percebe o mundo como se tudo fosse estável e permanente, mas o pensamento sabe que nada permanece, tudo se torna contrário de si mesmo. O logos é a mudança e a contradição. Parmênides, porém, afirmava que o devir, o fluxo dos contrários, é uma aparência, mera opinião que formamos porque confundimos a realidade com as nossas sensações, percepções e lembranças. O devir dos contrários é uma linguagem ilusória, não existe, é irreal, não é. É o Não-Ser, o nada, impensável e indizível. O que existe real e verdadeiramente é o que não muda nunca, o que não se torna oposto a si mesmo, mas permanece sempre idêntico a si mesmo, sem contrariedades internas. É o Ser. Pensar e dizer só são possíveis se as coisas que pensamos e dizemos guardarem a identidade, forem permanentes. Só podemos dizer e pensar aquilo que é sempre idêntico a si mesmo. Por isso somente o Ser pode ser pensado e dito. Nossos sentidos nos dão a aparência mutável e contraditória, o Não-Ser; somente o pensamento puro pode alcançar e conhecer aquilo que é ou existe realmente, o Ser, e dizê-lo em sua verdade. O logos é o ser como pensamento e linguagem verdadeiros e, portanto, a verdade é a afirmação da permanência contra a mudança, da identidade contra a contradição dos opostos. Assim, Heráclito afirmava que a verdade e o logos são a mudança das coisas nos seus contrários, enquanto Parmênides afirmava que são a identidade do Ser imutável, oposto à aparência sensível da luta dos contrários. Parmênides introduz a idéia de que o que é contrário a si mesmo, ou se torna o contrário do que era, não pode ser (existir), não pode ser pensado nem dito porque é contraditório, e a contradição é o impensável e o indizível, uma vez que uma coisa que se torne oposta de si mesma destrói-se a si mesma, torna-se nada. Para Heráclito, a contradição é a lei racional da realidade; para Parmênides, a identidade é essa lei racional. A história da Filosofia grega será a história de um gigantesco esforço para encontrar uma solução para o problema posto por Heráclito e Parmênides, pois, se o primeiro tiver razão, o pensamento deverá ser um fluxo perpétuo e a verdade será a perpétua contradição dos seres em mudança contínua; mas se Parmênides tiver razão, o mundo em que vivemos não terá sentido, não poderá ser conhecido, será uma aparência impensável e viveremos na ilusão. Será preciso, portanto, uma solução que prove que a mudança e os contrários existem e podem ser pensados, mas, ao mesmo tempo, que prove que a identidade ou permanência dos seres também existe, é verdadeira e pode ser pensada. Como encontrar essa solução? O aparecimento da lógica: Platão e Aristóteles No momento de seu apogeu, isto é, de Platão e de Aristóteles, a Filosofia oferecerá as duas soluções mais importantes para o problema da contradição-mudança e identidade-permanência dos seres. Não vamos, aqui, falar dessas duas filosofias, mas destacar um aspecto de cada uma delas relacionado com o nosso assunto, isto é, com o surgimento da lógica. Platão considerou que Heráclito tinha razão no que se refere ao mundo material ou físico, isto é, ao mundo dos seres corporais, pois a matéria é o que está sujeito a mudanças contínuas e a oposições internas. Heráclito está certo no que diz respeito ao mundo de nossas sensações, percepções e opiniões: o mundo natural ou material (que Platão chama de mundo sensível) é o devir permanente. No entanto, dizia Platão, esse mundo é uma aparência (é o mundo dos prisioneiros da caverna), é uma cópia ou sombra do mundo verdadeiro e real e, nesse, Parmênides é quem tem razão. O mundo verdadeiro é o das essências imutáveis (que Platão chama de mundo inteligível), sem contradições nem oposições, sem transformação, onde nenhum ser passa para o seu contraditório. Mas como conhecer as essências e abandonar as aparências? Como sair da caverna? Através de um método do pensamento e da linguagem chamado dialética. Em grego, a palavra dia quer dizer dois, duplo; o sufixo lética deriva-se de logos e do verbo legin (cujo sentido estudamos nos capítulos dedicados à linguagem e ao pensamento). A dialética, como já vimos, é um diálogo ou uma conversa em que os interlocutores possuem opiniões opostas sobre alguma coisa e devem discutir ou argumentar de modo a passar das opiniões contrárias à mesma idéia ou ao mesmo pensamento sobre aquilo que conversam. Devem passar de imagens contraditórias a conceitos idênticos para todos os pensantes. A dialética platônica é um procedimento intelectual e lingüístico que parte de alguma coisa que deve ser separada ou dividida em dois ou duas partes contrárias ou opostas, de modo que se conheça sua contradição e se possa determinar qual dos contrários é verdadeiro e qual é falso. A cada divisão surge um par de contrários, que devem ser separados e novamente divididos, até que se chegue a um termo indivisível, isto é, não formado por nenhuma oposição ou contradição e que será a idéia verdadeira ou a essência da coisa investigada. Partindo de sensações, imagens, opiniões contraditórias sobre alguma coisa, a dialética vai separando os opostos em pares, mostrando que um dos termos é aparência e ilusão e o outro, verdadeiro ou essência. A dialética é um debate, uma discussão, um diálogo entre opiniões contrárias e contraditórias para que o pensamento e a linguagem passem da contradição entre as aparências à identidade de uma essência. Superar os contraditórios e chegar ao que é sempre idêntico a si mesmo é a tarefa da discussão dialética, que revela o mundo sensível como heraclitiano (a luta dos contrários, a mudança incessante) e o mundo inteligível como parmenidiano (a identidade perene de cada idéia consigo mesma). Aristóteles, por sua vez, segue uma via diferente da escolhida por Platão. Considera desnecessário separar realidade e aparência em dois mundos diferentes – há um único mundo no qual existem essências e aparências – e não aceita que a mudança ou o devir seja mera aparência ilusória. Há seres cuja essência é mudar e há seres cuja essência é imutável. O erro de Heráclito foi supor que a mudança se realiza sob a forma da contradição, isto é, que as coisas se transformam nos seus opostos, pois a mudança ou transformação é a maneira pela qual as coisas realizam todas as potencialidades contidas em suas essência e esta não é contraditória, mas uma identidade que o pensamento pode conhecer. Assim, por exemplo, quando a criança se torna adulta ou quando a semente se torna árvore, nenhuma delas tornou-se contrária a si mesma, mas desenvolveu uma potencialidade definida pela identidade própria de sua essência. Cabe à Filosofia conhecer como e por que as coisas, sem mudarem de essência, transformam-se, assim como cabe à Filosofia conhecer como e por que há seres imutáveis (como as entidades matemáticas e as divinas). Parmênides tem razão: o pensamento e a linguagem exigem a identidade. Heráclito tem razão: as coisas mudam. Ambos se enganaram ao supor que identidade e mudança são contraditórias. Tal engano levou Platão à desnecessária divisão dos mundos. Em segundo lugar, Aristóteles considera que a dialética não é um procedimento seguro para o pensamento e a linguagem da Filosofia e da ciência, pois tem como ponto de partida simples opiniões contrárias dos debatedores, e a escolha de uma opinião contra outra não garante chegar à essência da coisa investigada. A dialética, diz Aristóteles, é boa para as disputas oratórias da política e do teatro, para a retórica, pois esta tem como finalidade persuadir alguém, oferecendo argumentos fortes que convençam o oponente e os ouvintes. É adequada para os assuntos sobre os quais só cabe a persuasão, mas não para a Filosofia e a ciência, porque, nestas, interessa a demonstração e a prova de uma verdade. Substituindo a dialética por um conjunto de procedimentos de demonstração e prova, Aristóteles criou a lógica propriamente dita, que ele chamava de analítica (a palavra lógica será empregada, séculos mais tarde, pelos estóicos e Alexandre de Afrodísia). Qual a diferença entre a dialética platônica e a lógica (ou analítica) aristotélica? Em primeiro lugar, a dialética platônica é o exercício direto do pensamento e da linguagem, um modo de pensar que opera com os conteúdos do pensamento e do discurso. A lógica aristotélica é um instrumento que antecede o exercício do pensamento e da linguagem, oferecendo-lhes meios para realizar o conhecimento e o discurso. Para Platão, a dialética é um modo de conhecer. Para Aristóteles, a lógica (ou analítica) é um instrumento para o conhecer. Em segundo lugar, a dialética platônica é uma atividade intelectual destinada a trabalhar contrários e contradições para superá-los, chegando à identidade da essência ou da idéia imutável. Depurando e purificando as opiniões contrárias, a dialética platônica chega à verdade do que é idêntico e o mesmo para todas as inteligências. A lógica aristotélica oferece procedimentos que devem ser empregados naqueles raciocínios que se referem a todas as coisas das quais possamos ter um conhecimento universal e necessário, e seu ponto de partida não são opiniões contrárias, mas princípios, regras e leis necessárias e universais do pensamento. CLIQUE AQUI PARA FAZER O DOWNLOAD DO ARQUIVO “DOC” QUE CONTÉM O TEXTO ACIMA. Convite à Filosofia De Marilena Chaui Ed. Ática, São Paulo, 2000. Unidade 5 A lógica Capítulo 2 Elementos de lógica Principais características da lógica Aristóteles propôs a primeira classificação geral dos conhecimentos ou das ciências dividindo-as em três tipos: teoréticas, práticas e produtivas. Todos os saberes referentes a todos os seres, todas as ações e produções humanas encontravam-se distribuídos nessa classificação que ia da ciência mais alta – a filosofia primeira – até o conhecimento das técnicas criadas pelos homens para a fabricação de objetos. No entanto, nessa classificação não encontramos a lógica. Por quê? Para Aristóteles, a lógica não era uma ciência teorética, nem prática ou produtiva, mas um instrumento para as ciências. Eis por que o conjunto das obras lógicas aristotélicas recebeu o nome de Órganon, palavra grega que significa instrumento. A lógica caracteriza-se como: ● instrumental: é o instrumento do pensamento para pensar corretamente e verificar a correção do que está sendo pensado; ● formal: não se ocupa com os conteúdos pensados ou com os objetos referidos pelo pensamento, mas apenas com a forma pura e geral dos pensamentos, expressa através da linguagem[i]; ● propedêutica: é o que devemos conhecer antes de iniciar uma investigação científica ou filosófica, pois somente ela pode indicar os procedimentos (métodos, raciocínios, demonstrações) que devemos empregar para cada modalidade de conhecimento; ● normativa: fornece princípios, leis, regras e normas que todo pensamento deve seguir se quiser ser verdadeiro; ● doutrina da prova: estabelece as condições e os fundamentos necessários de todas as demonstrações. Dada uma hipótese, permite verificar as conseqüências necessárias que dela decorrem; dada uma conclusão, permite verificar se é verdadeira ou falsa; ● geral e temporal: as formas do pensamento, seus princípios e suas leis não dependem do tempo e do lugar, nem das pessoas e circunstâncias, mas são universais, necessárias e imutáveis como a própria razão. O objeto da lógica é a proposição, que exprime, através da linguagem, os juízos formulados pelo pensamento. A proposição é a atribuição de um predicado a um sujeito: S é P. O encadeamento dos juízos constitui o raciocínio e este se exprime logicamente através da conexão de proposições; essa conexão chama-se silogismo. A lógica estuda os elementos que constituem uma proposição (as categorias), os tipos de proposições e de silogismos e os princípios necessários a que toda proposição e todo silogismo devem obedecer para serem verdadeiros (princípio da identidade, da não-contradição e do terceiro excluído). A proposição Uma proposição é constituída por elementos que são seus termos. Aristóteles define os termos ou categorias como “aquilo que serve para designar uma coisa”. São palavras não combinadas com outras e que aparecem em tudo quanto pensamos e dizemos. Há dez categorias ou termos: 1. substância (por exemplo, homem, Sócrates, animal); 2. quantidade (por exemplo, dois metros de comprimento); 3. qualidade (por exemplo, branco, grego, agradável); 4. relação (por exemplo, o dobro, a metade, maior do que); 5. lugar (por exemplo, em casa, na rua, no alto); 6. tempo (por exemplo, ontem, hoje, agora); 7. posição (por exemplo, sentado, deitado, de pé); 8. posse (por exemplo, armado, isto é, tendo armas); 9. ação (por exemplo, corta, fere, derrama); 10. paixão ou passividade (por exemplo, está cortado, está ferido). As categorias ou termos indicam o que uma coisa é ou faz, ou como está. São aquilo que nossa percepção e nosso pensamento captam imediata e diretamente numa coisa, não precisando de qualquer demonstração, pois nos dão a apreensão direta de uma entidade simples. Possuem duas propriedades lógicas: a extensão e a compreensão. Extensão é o conjunto de objetos designados por um termo ou uma categoria. Compreensão é o conjunto de propriedades que esse mesmo termo ou essa categoria designa. Por exemplo: uso a palavra homem para designar Pedro, Paulo, Sócrates, e uso a palavra metal para designar ouro, ferro, prata, cobre. A extensão do termo homem será o conjunto de todos os seres que podem ser designados por ele e que podem ser chamados de homens; a extensão do termo metal será o conjunto de todos os seres que podem ser designados como metais. Se, porém, tomarmos o termo homem e dissermos que é um animal, vertebrado, mamífero, bípede, mortal e racional, essas qualidades formam sua compreensão. Se tomarmos o termo metal e dissermos que é um bom condutor de calor, reflete a luz, etc., teremos a compreensão desse termo. Quanto maior a extensão de um termo, menor sua compreensão, e quanto maior a compreensão, menor a extensão. Se, por exemplo, tomarmos o termo Sócrates, veremos que sua extensão é a menor possível, pois possui todas as propriedades do termo homem e mais suas próprias propriedades enquanto uma pessoa determinada. Essa distinção permite classificar os termos ou categorias em três tipos: 1. gênero: extensão maior, compreensão menor. Exemplo: animal; 2. espécie: extensão média e compreensão média. Exemplo: homem; 3. indivíduo: extensão menor, compreensão maior. Exemplo: Sócrates. Na proposição, as categorias ou termos são os predicados atribuídos a um sujeito. O sujeito (S) é uma substância; os predicados (P) são as propriedades atribuídas ao sujeito; a atribuição ou predicação se faz por meio do verbo de ligação ser. Por exemplo: Pedro é alto. A proposição é um discurso declarativo (apofântico), que enuncia ou declara verbalmente o que foi pensado e relacionado pelo juízo. A proposição reúne ou separa verbalmente o que o juízo reuniu ou separou mentalmente. A reunião ou separação dos termos recebe o valor de verdade ou de falsidade quando o que foi reunido ou separado em pensamento e linguagem está reunido ou separado na realidade (verdade), ou quando o que foi reunido ou separado em pensamento e linguagem não está reunido ou separado na realidade (falsidade). A reunião se faz pela afirmação: S é P. A separação se faz pela negação: S não é P. A proposição representa o juízo (coloca o pensamento na linguagem) e a realidade (declara o que está unido e o que está separado). Do ponto de vista do sujeito, existem dois tipos de proposições: 1. proposição existencial: declara a existência, posição, ação ou paixão do sujeito. Por exemplo: “Um homem é (existe)”, “Um homem anda”, “Um homem está ferido”. E suas negativas: “Um homem não é (não existe)”, “Um homem não anda”, “Um homem não está ferido”; 2. proposição predicativa: declara a atribuição de alguma coisa a um sujeito por meio da cópula é. Por exemplo: “Um homem é justo”, “Um homem não é justo”. As proposições se classificam segundo a qualidade e quantidade. Do ponto de vista da qualidade, as proposições de dividem em: ● afirmativas: as que atribuem alguma coisa a um sujeito: S é P. ● negativas: as que separam o sujeito de alguma coisa: S não é P. Do ponto de vista da quantidade, as proposições se dividem em: ● universais: quando o predicado se refere à extensão total do sujeito, afirmativamente (Todos os S são P) ou negativamente (Nenhum S é P); ● particulares: quando o predicado é atribuído a uma parte da extensão do sujeito, afirmativamente (Alguns S são P) ou negativamente (Alguns S não são P); ● singulares: quando o predicado é atribuído a um único indivíduo, afirmativamente (Este S é P) ou negativamente (Este S não é P). Além da distinção pela qualidade e pela quantidade, as proposições se distinguem pela modalidade, sendo classificadas como: ● necessárias: quando o predicado está incluído necessariamente na essência do sujeito, fazendo parte dessa essência. Por exemplo: “Todo triângulo é uma figura de três lados”, “Todo homem é mortal”; ● não-necessárias ou impossíveis: quando o predicado não pode, de modo algum, ser atribuído ao sujeito. Por exemplo: “Nenhum triângulo é figura de quatro lados”, “Nenhum planeta é um astro com luz própria”; ● possíveis: quando o predicado pode ser ou deixar de ser atribuído ao sujeito. Por exemplo: “Alguns homens são justos”. Como todo pensamento e todo juízo, a proposição está submetida aos três princípios lógicos fundamentais, condições de toda verdade: 1. princípio da identidade: um ser é sempre idêntico a si mesmo: A é A; 2. princípio da não-contradição: é impossível que um ser seja e não seja idêntico a si mesmo ao mesmo tempo e na mesma relação. É impossível que A seja A e não-A; 3. princípio do terceiro excluído: dadas duas proposições com o mesmo sujeito e o mesmo predicado, uma afirmativa e outra negativa, uma delas é necessariamente verdadeira e a outra necessariamente falsa. A é x ou não-x, não havendo terceira possibilidade. Graças a esses princípios, obtemos a última maneira pela qual as proposições se distinguem. Trata-se da classificação das proposições segundo a relação: ● contraditórias: quando temos o mesmo sujeito e o mesmo predicado, uma das proposições é universal afirmativa (Todos os S são P) e a outra é particular negativa (Alguns S não são P); ou quando se tem uma universal negativa (Nenhum S é P) e uma particular afirmativa (Alguns S são P); ● contrárias: quando, tendo o mesmo sujeito e o mesmo predicado, uma das proposições é universal afirmativa (Todo S é P) e a outra é universal negativa (Nenhum S é P); ou quando uma das proposições é particular afirmativa (Alguns S são P) e a outra é particular negativa (Alguns S não são P); ● subalternas: quando uma universal afirmativa subordina uma particular afirmativa de mesmo sujeito e predicado, ou quando uma universal negativa subordina uma particular negativa de mesmo sujeito e predicado. Quando a proposição é universal e necessária (seja afirmativa ou negativa), diz-se que ela declara um juízo apodítico. Quando a proposição é universal ou particular possível (afirmativa ou negativa), diz-se que ela declara um juízo hipotético, cuja formulação é: Se… então… Quando a proposição é universal ou particular (afirmativa ou negativa) e comporta uma alternativa que depende dos acontecimentos ou das circunstâncias, diz-se que ela declara um juízo disjuntivo, cuja formulação é: Ou… ou… Assim, a proposição “Todos os homens são mortais” e a proposição “Nenhum triângulo é uma figura de quatro lados” são apodíticas. A proposição “Se a educação for boa, ele será virtuoso” é hipotética. A proposição “Ou choverá amanhã ou não choverá amanhã” é disjuntiva. O silogismo Aristóteles elaborou uma teoria do raciocínio como inferência. Inferir é tirar uma proposição como conclusão de uma outra ou de várias outras proposições que a antecedem e são sua explicação ou sua causa. O raciocínio é uma operação do pensamento realizada por meio de juízos e enunciada lingüística e logicamente pelas proposições encadeadas, formando um silogismo. Raciocínio e silogismo são operações mediatas de conhecimento, pois a inferência significa que só conhecemos alguma coisa (a conclusão) por meio ou pela mediação de outras coisas. A teoria aristotélica do silogismo é o coração da lógica, pois é a teoria das demonstrações ou das provas, da qual depende o pensamento científico e filosófico. O silogismo possui três características principais: 1. é mediato: exige um percurso de pensamento e de linguagem para que se possa chegar a uma conclusão; 2. é dedutivo: é um movimento de pensamento e de linguagem que parte de certas afirmações verdadeiras para chegar a outras também verdadeiras e que dependem necessariamente das primeiras; 3. é necessário: porque é dedutivo (as conseqüências a que se chega na conclusão resultam necessariamente da verdade do ponto de partida). Por isso, Aristóteles considera o silogismo que parte de proposições apodíticas superior ao que parte de proposições hipotéticas ou possíveis, designando-o com o nome de ostensivo, pois ostenta ou mostra claramente a relação necessária e verdadeira entre o ponto de partida e a conclusão. O exemplo mais famoso do silogismo ostensivo é: Todos os homens são mortais. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal. Um silogismo é constituído por três proposições. A primeira é chamada de premissa maior; a segunda, de premissa menor; e a terceira, de conclusão, inferida das premissas pela mediação de um termo chamado termo médio. As premissas possuem termos chamados extremos e a função do termo médio é ligar os extremos. Essa ligação é a inferência ou dedução e sem ela não há raciocínio nem demonstração. Por isso, a arte do silogismo consiste em saber encontrar o termo médio que ligará os extremos e permitirá chegar à conclusão. O silogismo, para chegar a uma conclusão verdadeira, deve obedecer a um conjunto complexo de regras. Dessas regras, apresentaremos as mais importantes, tomando como referência o silogismo clássico que oferecemos acima: ● a premissa maior deve conter o termo extremo maior (no caso, “mortais”) e o termo médio (no caso, “homens”); ● a premissa menor deve conter o termo extremo menor (no caso, “Sócrates”) e o termo médio (no caso, “homem”); ● a conclusão deve conter o maior e o menor e jamais deve conter o termo médio (no caso, deve conter “Sócrates” e “mortal” e jamais deve conter “homem”). Sendo função do médio ligar os extremos, deve estar nas premissas, mas nunca na conclusão. A idéia geral da dedução ou inferência silogística é: A é verdade de B. B é verdade de C. Logo, A é verdade de C. A inferência silogística também é feita com negativas: Nenhum anjo é mortal. (A é verdade de B.) Miguel é anjo. (B é verdade de C.) Logo, Miguel não é mortal. (A é verdade de C.) A proposição é uma predicação ou atribuição. As premissas fazem a atribuição afirmativa ou negativa do predicado ao sujeito, estabelecendo a inclusão ou exclusão do médio no maior e a inclusão ou exclusão do menor no médio. Graças a essa dupla inclusão ou exclusão, o menor estará incluído ou excluído do maior. Por ser um sistema de inclusões (ou exclusões) entre sujeitos e predicados, o silogismo é a declaração da inerência do predicado ao sujeito (inerência afirmativa, quando o predicado está incluído no sujeito; inerência negativa, quando o predicado está excluído do sujeito). A ciência é a investigação dessas inerências, por meio das quais se alcança a essência do objeto investigado. A inferência silogística deve obedecer a oito regras, sem as quais a dedução não terá validade, não sendo possível dizer se a conclusão é verdadeira ou falsa: 1. um silogismo deve ter um termo maior, um menor e um médio e somente três termos, nem mais, nem menos; 2. o termo médio deve aparecer nas duas premissas e jamais aparecer na conclusão; deve ser tomado em toda a sua extensão (isto é, como um universal) pelo menos uma vez, pois, do contrário, não se poderá ligar o maior e o menor. Por exemplo, se eu disser “Os nordestinos são brasileiros” e “Os paulistas são brasileiros”, não poderei tirar conclusão alguma, pois o termo médio “brasileiros” foi tomado sempre em parte de sua extensão e nenhuma vez no todo de sua extensão; 3. nenhum termo pode ser mais extenso na conclusão do que nas premissas, pois, nesse caso, concluiremos mais do que seria permitido. Isso significa que uma das premissas sempre deverá ser universal (afirmativa ou negativa); 4. a conclusão não pode conter o termo médio, já que a função deste se esgota na ligação entre o maior e o menor, ligação que é a conclusão; 5. de duas premissas negativas nada pode ser concluído, pois o médio não terá ligado os extremos; 6. de duas premissas particulares nada poderá ser concluído, pois o médio não terá sido tomado em toda a sua extensão pelo menos uma vez e não poderá ligar o maior e o menor; 7. duas premissas afirmativas devem ter a conclusão afirmativa, o que é evidente por si mesmo; 8. a conclusão sempre acompanha a parte mais fraca, isto é, se houver uma premissa negativa, a conclusão será negativa; se houver uma premissa particular, a conclusão será particular; se houver uma premissa particular negativa, a conclusão será particular negativa. Essas regras dão origem às figuras e modos do silogismo. As figuras são quatro e se referem à posição ocupada pelo termo médio nas premissas (sujeito na maior, sujeito na menor, sujeito em ambas, predicado na maior, predicado na menor, predicado em ambas). Os modos se referem aos tipos de proposições que constituem as premissas (universais afirmativas em ambas, universais negativas em ambas, particulares afirmativas em ambas, particulares negativas em ambas, universal afirmativa na maior e particular afirmativa na menor, etc.). Existem 64 modos possíveis, mas, desses, apenas dez são considerados válidos. Combinando-se as quatro figuras e os dez modos tem-se as dezenove formas válidas de silogismo. Tomemos um exemplo da chamada primeira figura e os modos em que pode se apresentar. Na primeira figura, o termo médio é sujeito na maior e predicado na menor: 1º modo – todas as proposições são universais afirmativas: Todos os homens são mortais. Todos os atenienses são homens. Todos os atenienses são mortais. 2º modo – a maior é universal negativa, a menor é universal afirmativa e a conclusão é universal negativa: Nenhum astro é perecível. Todas as estrelas são astros. Nenhuma estrela é perecível. 3º modo – a maior é universal afirmativa, a menor é particular afirmativa e a conclusão é particular afirmativa: Todos os homens são mortais. Sócrates é homem. Sócrates é mortal. 4º modo – a maior é universal negativa, a menor é particular afirmativa e a conclusão é particular negativa: Nenhum tirano é amado. Dionísio é tirano. Dionísio não é amado. Aristóteles considera a primeira figura a mais própria para o silogismo científico, porque nela a inerência do predicado no sujeito é a mais perfeita. A ciência, segundo Aristóteles, encontra a essência das coisas demonstrando a ligação necessária entre um indivíduo, a espécie e o gênero, isto é, a inclusão do indivíduo na espécie e desta no gênero. A primeira figura é a que melhor evidencia essa inclusão (ou a exclusão). O silogismo científico Aristóteles distingue dois grandes tipos de silogismos: os dialéticos e os científicos. Os primeiros são aqueles cujas premissas se referem ao que é apenas possível ou provável, ao que pode ser de uma maneira ou de uma maneira contrária e oposta, ao que pode acontecer ou deixar de acontecer. Suas premissas são hipotéticas e por isso sua conclusão também é hipotética. O silogismo científico é aquele que se refere ao universal e necessário, ao que é de uma maneira e não pode deixar de ser tal como é, ao que acontece sempre e sempre da mesma maneira. Suas premissas são apodíticas e sua conclusão também é apodítica. O silogismo dialético é o que comporta argumentações contrárias, porque suas premissas são meras opiniões sobre coisas ou fatos possíveis ou prováveis. As opiniões não são objetos de ciência, mas de persuasão. A dialética é uma discussão entre opiniões contrárias que oferecem argumentos contrários, vencendo aquele argumento cuja conclusão for mais persuasiva do que a do adversário. O silogismo dialético é próprio da retórica, ou arte da persuasão, na qual aquele que fala procura tocar as emoções e paixões dos ouvintes e não no raciocínio ou na inteligência deles. O silogismo científico não admite premissas contraditórias. Suas premissas são universais necessárias e sua conclusão não admite discussão ou refutação, mas exige demonstração. Por esse motivo, o silogismo científico deve obedecer a quatro regras, sem as quais sua demonstração não terá valor: 1. as premissas devem ser verdadeiras (não podem ser possíveis ou prováveis, nem falsas); 2. as premissas devem ser primárias ou primeiras, isto é, indemonstráveis, pois se tivermos que demonstrar as premissas, teremos que ir de regressão em regressão, indefinidamente, e nada demonstraremos; 3. as premissas devem ser mais inteligíveis do que a conclusão, pois a verdade desta última depende inteiramente da absoluta clareza e compreensão que tenhamos das suas condições, isto é, das premissas; 4. as premissas devem ser causa da conclusão, isto é, devem estabelecer as coisas ou os fatos que causam a conclusão e que a explicam, de tal maneira que, ao conhecê-las, estamos obedecendo as causas da conclusão. Esta regra é da maior importância porque, para Aristóteles, conhecer é conhecer as causas ou pelas causas. O que são as premissas de um silogismo científico? São verdades indemonstráveis, evidentes e causais. São de três tipos: 1. axiomas, como, por exemplo, os três princípios lógicos ou afirmações do tipo “O todo é maior do que as partes”; 2. postulados, isto é, os pressupostos de que se vale uma ciência para iniciar o estudo de seus objetos. Por exemplo, o espaço plano, na geometria; o movimento e o repouso, na física; 3. definições (que, para Aristóteles, são as premissas mais importantes de uma ciência) do gênero que é o objeto da ciência investigada. A definição deve dizer o que a coisa estudada é, como é, por que é, sob quais condições é (a definição deve dar o que, o como, o porquê e o se da coisa investigada, que é o sujeito da proposição). A definição está referida ao termo médio, pois é ele que pode preencher as quatro exigências (que, como, por que, se) e é por seu intermédio que o silogismo alcança o conceito da coisa investigada. Através do termo médio, a definição oferece o conceito da coisa por meio das categorias (substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição, posse, ação, paixão) e da inclusão necessária do indivíduo na espécie e no gênero. O conceito nos oferece a essência da coisa investigada (suas propriedades necessárias ou essenciais) e o termo médio é o atributo essencial para chegar à definição. Por isso, a definição consiste em encontrar para um sujeito (uma substância) seus atributos essenciais (seus predicados). Um atributo é essencial quando faz uma coisa ser o que ela é, ou cuja ausência impediria a coisa de ser tal como é (“mortal” é um atributo essencial de Sócrates). Um atributo é acidental quando sua presença ou sua ausência não afetam a essência da coisa (“gordo” é um atributo acidental de Sócrates). O silogismo científico não lida com os predicados ou atributos acidentais. A ciência é um conhecimento que vai de seu gênero mais alto às suas espécies mais singulares. A passagem do gênero à espécie singular se faz por uma cadeia dedutiva ou cadeia silogística, na qual cada espécie funciona como gênero para suas subordinadas e cada uma delas se distingue das outras por uma diferença específica. Definir é encontrar a diferença específica entre seres do mesmo gênero. A tarefa da definição é oferecer a definição do gênero e a diferença específica essencial que distingue uma espécie da outra. A demonstração (o silogismo) partirá do gênero, oferecerá a definição da espécie e incluirá o indivíduo na espécie e no gênero, de sorte que a essência ou o conceito do indivíduo nada mais é do que sua inclusão ou sua inerência à espécie e ao gênero. A demonstração parte da definição do gênero e dos axiomas e postulados referentes a ele; deve provar que o gênero possui realmente os atributos ou predicados que a definição, os axiomas e postulados afirmam que ele possui. O que é essa prova? É a prova de que as espécies são os atributos ou predicados do gênero e são elas o objeto da conclusão do silogismo. Com isso, percebe-se que uma ciência possui três objetos: os axiomas e postulados, que fundamentam a demonstração; a definição do gênero, cuja existência não precisa nem deve ser demonstrada; e os atributos essenciais ou predicados essenciais do gênero, que são suas espécies, às quais chega a conclusão. Numa etapa seguinte, a espécie a que se chegou na conclusão de um silogismo torna-se gênero, do qual parte uma nova demonstração, e assim sucessivamente. Para que o silogismo científico cumpra sua função, ele deve respeitar, além das regras gerais do silogismo, quatro exigências relativas às suas premissas: 1. devem ser premissas verdadeiras para todos os casos de seu sujeito; 2. devem ser premissas essenciais, isto é, a relação entre o sujeito e o predicado deve ser sempre necessária, seja porque o predicado está contido na essência do sujeito (por exemplo, o predicado “linha” está contido na essência do sujeito “triângulo”), seja porque o predicado é uma propriedade essencial do sujeito (por exemplo, o predicado “curva” tem que estar necessariamente referido ao sujeito “linha”), seja porque existe uma relação causal entre o predicado e o sujeito (por exemplo, o predicado “eqüidistantes do centro” é a causa do sujeito “círculo”, uma vez que esta é a figura geométrica cuja circunferência tem todos os pontos eqüidistantes do centro). Em resumo, as premissas devem estabelecer a inerência do predicado à essência do sujeito; 3. devem ser premissas próprias, isto é, referem-se exclusivamente ao sujeito daquela ciência e de nenhuma outra. Por isso, não posso ir buscar premissas da geometria (cujo sujeito são as figuras) na aritmética (cujo sujeito são os números), nem as da biologia (cujo sujeito são os seres vivos) na astronomia (cujo sujeito são os astros), etc. Em outras palavras, o termo médio do silogismo científico se refere aos atributos essenciais dos sujeitos de uma ciência determinada e de nenhuma outra; 4. devem ser premissas gerais, isto é, nunca devem referir-se aos indivíduos, mas aos gêneros e às espécies, pois o indivíduo define-se por eles e não eles pelo indivíduo. CLIQUE AQUI PARA FAZER O DOWNLOAD DO ARQUIVO “DOC” QUE CONTÉM O TEXTO ACIMA. -------------------------------------------------------------------------------- [i] No século XX, os lógicos afirmaram que a lógica aristotélica não deveria ser considerada plenamente formal porque Aristóteles não afastara por inteiro os conteúdos pensados para ficar apenas com a forma vazia de conteúdo. No entanto, vamos aqui manter essa característica para a lógica aristotélica, porque, se comparada à dialética platônica, nela o papel do conteúdo pensado é menor do que a forma de pensamento, estudada pelo filósofo. Convite à Filosofia De Marilena Chaui Ed. Ática, São Paulo, 2000. Unidade 5 A lógica Capítulo 3 A lógica após Aristóteles A lógica estóica Vimos que Aristóteles emprega a palavra analítica para referir-se ao estudo das leis ou regras que o pensamento deve seguir para exprimir a verdade. Não emprega a palavra lógica. Esta foi introduzida por uma corrente filosófica do período final da Filosofia grega, o estoicismo. Os estóicos afirmavam que só existem corpos (mesmo a alma era corporal, sendo um sopro sutil e invisível, o pneuma). Afirmavam também que há certas coisas que não existem propriamente, mas subsistem por meio de outras, sendo incorporais. Entre os incorporais colocavam o exprimível, isto é, a linguagem ou o discurso, e consideravam o estudo dos discursos ou dos logoi uma disciplina filosófica especial: a lógica. Por afirmarem que somente os corpos existem, os estóicos afirmavam, como conseqüência, que os juízos e as proposições só poderiam referir-se ao particular ou ao singular, uma vez que os universais não têm existência, ou seja, não existem corpos universais, mas apenas singulares. As coisas singulares se imprimem em nós por meio da percepção ou da representação; sobre elas formulamos os juízos e os exprimimos em proposições verdadeiras ou falsas, cabendo à lógica duas tarefas: 1. determinar os critérios pelos quais uma proposição pode ser considerada verdadeira ou falsa; e 2. estabelecer as condições para o encadeamento verdadeiro de proposições, isto é, o raciocínio como ligação entre proposições singulares. Por meio da percepção temos a representação direta de uma realidade. Nossa memória guarda a recordação dessa representação e de muitas outras, formando a experiência. Da experiência nascem noções gerais sobre as coisas, noções comuns, que são antecipações sobre as coisas singulares de que temos ou teremos percepções. A lógica se refere à relação entre as noções comuns gerais e as representações particulares. As noções comuns gerais correspondem ao que Aristóteles chamou de categorias, mas reduzidas a apenas quatro: 1. o sujeito ou substância, expresso por um substantivo ou por um pronome; 2. a qualidade, expressa por adjetivos; 3. a ação e a paixão, expressas pelos verbos; 4. a relação, que se estabelece entre as três primeiras categorias. Uma outra inovação importante trazida pelos estóicos refere-se à proposição. Esta não é, como era para Aristóteles, a atribuição de um predicado ao sujeito (S é P), mas é um acontecimento expresso por palavras: o predicado é um verbo que indica algo que acontece ou aconteceu com o sujeito: “Pedro morre” (e não “Pedro é mortal”); “É dia, está claro” (e não “O dia é claro”); “João adoece” (e não “João é doente”). Como conseqüência das inovações (só há corpos, só há coisas singulares, só há quatro categorias, somente o verbo é predicado), os estóicos concebem a lógica como uma disciplina que se ocupa dos significados, buscando, por meio deles, aquilo que significa e aquilo que é. Por exemplo, se eu disser “Sócrates”, temos nessa palavra aquilo que o significado significa – alguém chamado Sócrates -, e nela temos também o próprio Sócrates, que é aquilo que é, ou seja, a coisa real significada pela palavra Sócrates. O significado estabelece a relação entre a palavra Sócrates e o homem real Sócrates. O significado é, ao mesmo tempo, a representação mental ou o conceito ou a noção que formamos de Sócrates e a relação entre essa representação e o ser real de Sócrates. Em suma, o significado é o que permite estabelecer a relação entre uma palavra e um ser, pela mediação da representação mental que possuímos desse ser. É o sentido. A lógica estóica opera com o sentido ou com o significado. Uma proposição, para os estóicos, é sempre um enunciado simples sobre um acontecimento referente a um significado (“Sócrates escreve”, “Sócrates anda”, “Sócrates senta-se”). Existem cinco tipos de ligações entre as proposições, formando cinco tipos de raciocínios: 1. raciocínio hipotético, que exprime uma relação entre um antecedente e um conseqüente, do tipo Se… então… Por exemplo: “Se há fumaça, então há fogo; há fumaça, portanto, há fogo”; “Se é noite, então há trevas; é noite, portanto, há trevas”; 2. raciocínio conjuntivo, que simplesmente justapõe os acontecimentos. Por exemplo: “É dia, está claro”; ou “É dia e está claro”; 3. raciocínio disjuntivo, que separa os enunciados, de modo que somente um deles seja verdadeiro. Por exemplo: “Ou é dia ou é noite”; 4. raciocínio causal, que exprime a causa do acontecimento. Por exemplo: “Visto que está claro, portanto, é dia”; 5. raciocínio relativo, que exprime o mais (ou maior) e o menos (ou menor). Por exemplo: “Está menos escuro quando é mais dia”. De todos os tipos de raciocínio, o mais importante é o hipotético, porque os outros são variantes dele, como se pode observar no exemplo: “Este soldado tem sangue no peito; se tem sangue no peito, feriu-se; tem sangue no peito, portanto, feriu-se”. Outro exemplo: “Será dia ou noite?; se está claro, então é dia; portanto, não é noite”. Durante a Idade Média, os filósofos se dividiram em duas grandes correntes: os aristotélicos, como santo Tomás de Aquino, e os chamados terministas, que adotaram a lógica estóica, como foi o caso de Guilherme de Ockham. Os primeiros são considerados racionalistas, enquanto os segundos são considerados empiristas, já que só admitem a existência e a experiência de coisas singulares de que temos sensação ou percepção, e porque só aceitam a conexão de proposições cuja conclusão exprima fatos ou acontecimentos presentes. A lógica contemporânea irá buscar nos estóicos a idéia de relação, contrapondo-a à atribuição aristotélica, que estabelece a inclusão do predicado no sujeito. Os medievais e os clássicos Para Platão, a dialética era o instrumento para alcançar a verdade. Por meio dela, a faculdade de conhecer subia das opiniões contrárias ou opostas até às idéias ou essências universais, a realidade verdadeira. A dialética era, assim, um método de diálogo que partia da discussão entre interlocutores que, possuindo apenas imagens confusas das coisas, defendiam posições contrárias sobre um assunto ou sobre alguma coisa; as contradições entre as opiniões iam sendo discutidas, depuradas, purificadas pelos argumentos racionais da dialética, que persuadia os interlocutores a alcançar a identidade da idéia, a mesma para todos. Para Aristóteles, porém, a dialética não poderia cumprir o papel de instrumento do pensamento verdadeiro, porque este exige procedimentos de prova ou demonstração, para além da simples argumentação. Por esse motivo, Aristóteles reservava a dialética para os campos em que a argumentação e a persuasão eram importantes, mas colocava a lógica (a analítica) como instrumento indispensável do pensamento científico e filosófico, isto é, do pensamento que demonstra a verdade das suas teses e conclusões. A lógica era, assim, o instrumento demonstrativo do pensamento verdadeiro. Os estóicos mantiveram a idéia aristotélica de que a lógica era um instrumento de prova. No entanto, como sua teoria do conhecimento afirmava que só conhecemos aquilo de que temos experiência direta, a prova era considerada a maneira pela qual se podia chegar a uma conclusão partindo de premissas meramente prováveis, isto é, do raciocínio hipotético. Por esse motivo, a prova possuía um caráter persuasivo ou argumentativo, levando o estoicismo a identificar lógica e dialética. Durante a Idade Média, embora os filósofos tivessem feito opções diferentes – uns optaram pela concepção de Aristóteles e outros pela dos estóicos -, todos tenderam a identificar lógica e dialética, isto é, a considerar que a lógica é uma arte racional de demonstração, mas que essa demonstração tem a força de um argumento persuasivo. A lógica oferecia os procedimentos racionais da prova e da dialética, os meios de persuadir o ouvinte ou o leitor. A principal contribuição dos medievais esteve no esforço para dar um passo além de Aristóteles, com a proposta de quantificar também o predicado das proposições. Assim, além das proposições serem universais ou particulares em função do sujeito – todos os S, nenhum S, alguns S, este S – deveriam ser também universais ou particulares conforme o predicado - todos os P, nenhum P, alguns P, este P. Por exemplo: “Todos os homens são alguns mortais” (pois os animais e as plantas também são mortais); “Todos os homens são todos os seres compostos de corpo e espírito” (pois os anjos só têm espírito, enquanto os animais e as plantas só têm corpo). Os medievais também contribuíram para a lógica, deixando mais clara a relação entre ela e a linguagem, isto é, mostrando que a lógica é inseparável de um uso ordenado e regulado da linguagem. Partindo do latim – que era a língua culta usada pela Filosofia, pela ciência, pelas artes e pelo direito -, estabeleceram regras para todas as funções sintáticas e semânticas dos signos da língua latina. Essa concepção da lógica como relação entre o pensamento e uma linguagem perfeitamente ordenada e regulada, capaz de exprimir claramente as idéias, foi intensamente desenvolvida no século XVII por Leibniz, que propôs uma Arte Combinatória, inspirada na álgebra. Assim como a álgebra possui símbolos próprios, inconfundíveis, universais para todos os matemáticos, assim também a lógica deveria ser uma linguagem perfeita, totalmente purificada das ambigüidades e contra-sensos da linguagem cotidiana. Leibniz propôs uma linguagem simbólica artificial, isto é, construída especialmente para garantir ao pensamento plena clareza nas demonstrações e nas provas. A relação entre lógica e matemática também foi desenvolvida no século XVII pelo filósofo inglês Hobbes, tendo a geometria como modelo. Hobbes considerava o raciocínio um cálculo, isto é, quando raciocinamos, simplesmente somamos, subtraímos, multiplicamos ou dividimos idéias, cabendo à lógica estabelecer as regras universais desse cálculo. A linguagem, dizia Hobbes, é uma convenção social. É por convenção que fazemos determinados sons e determinadas grafias – isto é, determinadas palavras – corresponderem a certas coisas e não a outras e, conseqüentemente, o significado lingüístico e mental resulta dessa convenção social. À lógica caberia organizar, ordenar e sistematizar as formas corretas do uso das convenções, garantindo que cada palavra e cada idéia, cada proposição e cada conceito pudessem corresponder-se, livres de toda confusão e ambigüidade. Esse ideal de uma lógica simbólica perfeita, inspirada na linguagem matemática, veio concretizar-se apenas nos meados do século XIX, com a publicação de duas obras: Análise matemática da lógica, de Boole (em 1847), e Lógica formal, de Morgan (também em 1847). Caberia mais tarde ao filósofo alemão Frege e aos filósofos ingleses Bertrand Russell e Alfred Whitehead completar e consolidar a grande transformação da lógica, abandonando as teorias aristotélicas da inferência por uma nova concepção de proposição lógica. A lógica matemática Para os antigos e os medievais aristotélicos, os princípios e as leis da lógica correspondiam à estrutura da própria realidade, pois o pensamento exprime o real e dele participa. Aristóteles dizia que a verdade e a falsidade são propriedades do pensamento e não das coisas; que a realidade e a irrealidade (aparência ilusória) são propriedades das coisas e não do pensamento; mas que um pensamento verdadeiro devia exprimir a realidade da coisa pensada, enquanto um pensamento falso nada podia exprimir. Para os medievais terministas e para os modernos (século XVII), a lógica era uma arte de pensar, para bem conduzir a razão nas ciências. Os princípios e as leis da lógica correspondiam à estrutura do próprio pensamento, sobretudo à do raciocínio dedutivo – para os filósofos franceses de Port-Royal – e à do raciocínio indutivo – para o filósofo inglês Francis Bacon. Como arte de pensar, a lógica oferecia ao conhecimento científico e filosófico as leis do pensamento verdadeiro e os procedimentos para a avaliação dos conhecimentos adquiridos. Essa lógica – antiga e moderna – não era plenamente formal, pois não era indiferente aos conteúdos das proposições, nem às operações intelectuais do sujeito do conhecimento. A forma lógica recebia o valor de verdade ou falsidade a partir da verdade ou falsidade dos atos de conhecimento do sujeito e da realidade ou irrealidade dos objetos conhecidos. Ao contrário, a lógica contemporânea, procurando tornar-se um puro simbolismo do tipo matemático e um cálculo simbólico, preocupa-se cada vez menos com o conteúdo material das proposições (a realidade dos objetos referidos pela proposição) e com as operações intelectuais do sujeito do conhecimento (a estrutura do pensamento). Tornou-se plenamente formal. Assim, como o matemático lida com objetos que foram construídos pelas próprias operações matemáticas, de acordo com princípios e regras prefixados e aceitos por todos, assim também o lógico elabora os símbolos e as operações que constituem o objeto lógico por excelência, a proposição. O lógico indaga que forma deve possuir uma proposição para que: ● seja-lhe atribuída o valor de verdade ou falsidade; ● represente a forma do pensamento; e ● represente a relação entre pensamento, linguagem e realidade. A lógica descreve as formas, as propriedades e as relações das proposições, graças à construção de um simbolismo regulado e ordenado que permite diferenciar linguagem cotidiana e linguagem lógica formalizada. Boole definiu a lógica como o “método que repousa sobre o emprego de símbolos, dos quais se conhecem as leis gerais de combinação e cujos resultados admitem interpretação coerente”. A lógica tornou-se cada vez mais uma ciência formal da linguagem, mas de uma linguagem muito especial, que nada tem a ver com a linguagem cotidiana, pois trata-se de uma linguagem inteiramente construída por ela mesma, partindo do modelo da matemática. Dois aspectos devem ser mencionados para melhor compreendermos a relação entre a lógica contemporânea e a matemática. 1. A mudança no modo de conceber o que seja a matemática: Durante séculos (na verdade, desde os gregos), considerou-se a matemática uma ciência baseada na intuição intelectual de verdades absolutas, existentes em si e por si mesmas, sem depender de qualquer interferência humana. Os axiomas, as figuras geométricas, os números e as operações aritméticas, os símbolos e as operações algébricas eram considerados verdades absolutas, universais, necessárias, que existiriam com ou sem os homens e que permaneceriam existindo mesmo se os humanos desaparecessem (para muitos filósofos, a matemática chegou a ser considerada a ciência divina por excelência). No entanto, desde o século XIX passou-se a considerar a matemática uma ciência que resulta de uma construção intelectual, uma invenção do espírito humano, sem que suas entidades sejam existentes em si e por si mesmas. Os entes matemáticos são puras idealidades construídas pelo intelecto ou pelo pensamento, que formula um conjunto rigoroso de princípios, regras, normas e operações, para a criação de figuras, números, símbolos, cálculos, etc. No final do século XIX, o matemático italiano Peano realizou um estudo sobre a aritmética dos números cardinais finitos demonstrando que podia ser derivada de cinco axiomas ou proposições primitivas e de três termos não definíveis – zero, número e sucessor de. Desta maneira, a matemática surgia como um ramo da lógica, cabendo ao alemão Frege e aos ingleses Bertrand Russell e Alfred Whitehead prosseguir o trabalho de Peano, oferecendo as definições lógicas dos três termos que o matemático italiano julgara indefiníveis. Frege ofereceu o primeiro conceito de sistema formal e os primeiros exemplos do cálculo de proposições e de predicados. A matemática é uma ciência de formas e cálculos puros organizados numa linguagem simbólica perfeita, na qual cada signo é um algoritmo, isto é, um símbolo com um único sentido. É elaborada pelo espírito humano e não um pensamento intuitivo que contemplaria entidades perfeitas e eternas, existentes em si e por si mesmas. 2. Mudança no modo de conceber o pensamento, distinguindo psicologia e teoria do conhecimento: Durante muitos séculos, psicologia e teoria do conhecimento estiveram confundidas, constituindo uma só disciplina filosófica, encarregada de estudar os modos como conhecemos as coisas, distinguindo o que é puramente pessoal e individual (a vida psíquica ou mental de cada um de nós) do que é universal e necessário (válido em todos os tempos e lugares, para todos os sujeitos do conhecimento). Quando a psicologia se tornou uma ciência (descrição dos fatos psíquicos e suas leis) independente da Filosofia e a teoria do conhecimento permaneceu filosófica (por não ser apenas uma descrição da vida mental, mas um estudo das diferenças no conteúdo e na forma dos conhecimentos), surgiu a pergunta: “Onde fica a lógica?”. Alguns responderam: “Na psicologia”. Alegavam que os progressos da ciência psicológica iriam definir as regras universais a que todo e qualquer pensamento se submete, e a lógica seria apenas um ramo da psicologia, aquele que estuda como funciona o pensamento científico. Essa corrente lógica recebeu o nome de psicologismo lógico, mas foi logo refutada pela maioria dos lógicos e particularmente pelo alemão Edmund Husserl, o criador da fenomenologia. À pergunta: “Onde fica a lógica?” os lógicos responderam: “Consigo mesma”. Em outras palavras, a lógica não é parte da psicologia nem da teoria do conhecimento, mas uma disciplina filosófica independente. Essa independência decorre da complexidade do pensamento, pois quando pensamos, há quatro fatores que nos permitem pensar: 1. o sujeito que pensa (o sujeito do conhecimento estudado pela teoria do conhecimento); 2. o ato de pensar (as operações mentais estudadas pela psicologia); 3. o objeto pensado (estudado pelas ciências); e 4. o pensamento decorrente do ato de pensar (esse, o objeto da lógica). A lógica não se confunde com a psicologia, nem com a teoria do conhecimento, porque seu objeto é o pensamento enquanto operação demonstrativa, que segue regras orientadas para determinar se a demonstração é verdadeira ou falsa do ponto de vista do próprio pensamento, isto é, se a demonstração obedeceu ou não aos princípios lógicos. Qual o efeito dessas duas mudanças sobre a lógica contemporânea? Em primeiro lugar, ao manter a proximidade e a relação com a matemática, a lógica passou a ser entendida como avaliadora da verdade ou falsidade do pensamento, concebido como uma construção intelectual. Ora, se o pensamento constrói seus próprios objetos, em vez de descobri-los ou contemplá-los, essa construção, segundo os próprios matemáticos, faz com que a matemática deva ser entendida como um discurso ou como uma linguagem que obedece a certos critérios e padrões de funcionamento. Assim sendo, a lógica adotou para si o modelo de um discurso ou de uma linguagem que lida com puras formas sem conteúdo e tais formas são símbolos de tipo matemático (algoritmos). Em segundo lugar, distinguindo-se da psicologia e da teoria do conhecimento, a lógica passou a dedicar-se menos ao pensamento e muito mais à linguagem, seja como tradução, representação ou expressão do pensamento, seja como discurso independente do pensamento. Seu objeto passou a ser o estudo de um tipo determinado de discurso: a proposição e as relações entre proposições. Sua finalidade tornou-se o projeto de oferecer normas e critérios para uma linguagem perfeita, capaz de avaliar as demais linguagens (científicas, filosóficas, artísticas, cotidianas, etc.). Linguagem e metalinguagem Para conseguir seu propósito, a lógica distingue dois níveis de linguagem: 1. linguagem natural, isto é, aquela que usamos em nossa vida cotidiana, nas artes, na política, na filosofia; 2. linguagem formal, isto é, aquela que é construída segundo princípios e regras determinados que descrevem um tipo específico de objeto, o objeto das ciências. Essa distinção também pode ser apresentada como diferença entre dois tipos de linguagem simbólicas: 1. a linguagem simbólica cultural (a linguagem “natural”), que usa signos, metáforas, analogias, esquemas para exprimir significações cotidianas, religiosas, artísticas, políticas, filosóficas. A principal característica desse simbolismo é ser conotativo, isto é, os símbolos carregam muitos sentidos e referem-se a muitas significações. A linguagem cultural é polissêmica, isto é, nela as palavras possuem inúmeros significados; 2. a linguagem simbólica lógico-científica (a linguagem “construída”), que usa um sistema fechado de signos ou símbolos (o algoritmo), em que cada símbolo é símbolo de uma única coisa e corresponde a uma única significação. Sua principal característica é ser essencialmente um simbolismo denotativo ou indicativo, evitando a polissemia e afirmando a univocidade do sentido simbolizado. Por exemplo: H2O, +, x, =, , , etc. são símbolos denotativos ou indicativos de um só objeto ou de um só sentido; são algoritmos. A lógica ocupa-se com a linguagem formal ou com a linguagem simbólico-científica. Por ser um discurso ou uma linguagem que fala de outro discurso ou de outra linguagem, se diz que ela é uma metalinguagem. Na vida cotidiana, podemos dizer, por exemplo, uma frase como: “O Sol é uma estrela”. A lógica começará dizendo: “A frase ‘O Sol é uma estrela’ é uma proposição afirmativa”. Prosseguirá dizendo: “A proposição ‘A frase O Sol é uma estrela é uma proposição afirmativa’ é uma proposição verdadeira”. E assim por diante. A idéia da lógica como metalinguagem transparece com clareza quando examinamos, por exemplo, as teses principais do austríaco Ludwig Wittgenstein, cuja influência seria sentida por toda a lógica do século passado: 1. qualquer proposição que tenha significado é composta por proposições elementares, nas quais se encontra a verdade ou falsidade da proposição com significado; 2. as proposições elementares adquirem significado porque afiguram (retratam) o mundo não como fatos e coisas, mas como “estado de coisas”; 3. as proposições da lógica são verdadeiras independentemente das noções de “significado” e de “estado de coisas”, porque, rigorosamente, não falam de nada, pois referem-se a qualquer fato, significado ou estado de coisas que possam ocorrer ou não no Universo. As proposições lógicas são verdades vazias, referidas apenas ao próprio uso das convenções lógicas. Lógica dos predicados e lógica das relações Vimos que alguns filósofos medievais e clássicos julgaram necessário quantificar, além do sujeito da proposição, também o predicado. No século XIX, o lógico inglês Hamilton levou avante a quantificação dos predicados, chegando a oito tipos de proposições: 1. afirmativas toto-totais, em que sujeito e predicado são tomados em toda sua extensão (universais): “Todo S é todo P”. Por exemplo: “Todo triângulo é todo trilateral”; 2. afirmativas toto-parciais, em que o sujeito é tomado universalmente e o predicado particularmente: “Todo S é algum P”. Por exemplo: “Todo triângulo é alguma figura”; 3. afirmativas parti-totais, em que o sujeito é particular e o predicado é tomado universalmente: “Alguns S são todo P”. Por exemplo: “Alguns sul-americanos são todos os brasileiros”; 4. afirmativas parti-parciais, em que o sujeito e o predicado são tomados como particulares: “Algum S é algum P”. Por exemplo: “Algumas figuras eqüilaterais são alguns triângulos”; 5. negativas toto-totais, em que o sujeito em toda a sua extensão é excluído de toda a extensão do predicado: “Nenhum S é nenhum P”. Por exemplo: “Nenhum triângulo é nenhum quadrado”; 6. negativas toto-parciais, em que todo sujeito é excluído de apenas uma parte do predicado: “Nenhum S é algum P”. Por exemplo: “Nenhum triângulo é algum eqüilateral”; 7. negativas parti-totais, em que só uma parte do sujeito é excluída da extensão do predicado: “Algum S não é nenhum P”. Por exemplo: “Alguma figura eqüilateral não é nenhum triângulo”; 8. negativas parti-parciais, em que uma parte da extensão do sujeito é excluída de uma parte da extensão do predicado: “Alguns S não são alguns P”. Por exemplo: “Algum triângulo não é alguma figura eqüilateral”. As proposições poderiam converter-se simplesmente umas nas outras e, finalmente, uma proposição era apenas uma equação entre um sujeito e um predicado. Com isso, o raciocínio já não consistia em fazer uma noção entrar em outra (a antiga inerência aristotélica), mas ser capaz de substituir outra equivalente, em proposições dadas, de sorte que proposições usando palavras como homem, animal, mortal, etc. poderiam ser tratadas como os raciocínios matemáticos que usam símbolos como x, y e z. Estava aberta a porta para que Boole propusesse o cálculo lógico. O cálculo lógico realizou-se em duas etapas diferentes. Na primeira, com a introdução das noções de classe e função, manteve-se a idéia de que a proposição é a inclusão de um sujeito num predicado, ou melhor, a inclusão de toda ou parte da extensão do sujeito em toda ou parte da extensão do predicado. Na segunda etapa, com a introdução da idéia de relação, passou-se da concepção inclusiva-exclusiva do sujeito e do predicado à de sua equivalência ou substituição de um por outro. À medida que se desenvolveu a formalização e a matematização da lógica, a noção de predicado recebeu um novo sentido e um novo tratamento. Passou a ser tratado como classe. Esta é um conjunto de objetos, que, possuindo algo em comum, “vão juntos”. Um predicado é o que permite reunir determinados objetos em classes: a classe dos azuis, a classe dos esféricos, a classe dos sul-americanos, a classe dos felizes, a classe dos miseráveis, a classe dos sólidos, etc. Um predicado isolado – azul, feliz, sólido, miserável, etc. – não é verdadeiro nem falso. Recebe tal valor apenas a partir da inclusão ou exclusão do sujeito numa classe. Com a classe, o predicado se torna uma relação entre duas variáveis e essa relação chama-se função. A lógica passa a construir um simbolismo que permite definir as funções do predicado, introduzindo novos quantificadores com os quais a função é calculada. Esse cálculo constitui a lógica dos predicados. Por exemplo, a proposição tradicional “Sócrates é homem” será formalizada como F(a), onde F, a função, significa a “quantidade de ser homem” e a, a variável, designa “Sócrates”. Todavia, a variável poderá designar um indivíduo qualquer, um sujeito indeterminado, e a proposição será escrita como F(x). Tal proposição pode ser quantificada: ● a universal será escrita como (x)F(x), devendo ser lida como “para todo x, F de x”; ● a particular ou existencial será escrita como ( x)F(x), devendo ser lida como “existe um x tal que F de x”. Se, em lugar da inclusão tradicional do predicado no sujeito, tivermos classes, a relação será estabelecida entre “elemento” e “classe”, ou entre as próprias classes, tornando a proposição muito mais abrangente e complexa. Tomemos, por exemplo, a proposição “Os homens são mortais” e a proposição “Sócrates é mortal”. Para calculá-las, devemos começar pela relação entre a classe dos homens e a dos mortais: A (Classe dos homens) B (Classe dos mortais) A B (A classe dos homens está incluída na classe dos mortais.) x (Sócrates) A (Classe dos homens) x A (Sócrates pertence à classe dos homens.) Donde: (x) (x A) (x B), onde “ ” significa implica. Lemos: “Para todo x, x pertence a A implica que x pertence a B”. Portanto, “Sócrates é mortal”. São seis as operações que podem ser realizadas com as classes: 1. inclusão de uma classe em outra: A B; 2. reunião de várias classes: D M N; 3. intersecção de várias classes com elementos comuns: A B C; 4. a da classe universal que abrange todos os elementos e cujo símbolo é ; 5. a da classe vazia, isto é, que não contém elemento algum e cujo símbolo é ; 6. a da classe complementar A’ de A, formada por todos os elementos que não pertencem a A. Os lógicos que mais desenvolveram a possibilidade de uma lógica das classes, das funções proposicionais e do cálculo dos predicados foram Frege, Whitehead, Bertrand Russell e Wittgenstein. A lógica dos predicados foi enriquecida e modificada com a lógica das relações, iniciada no século XIX pelos filósofos ingleses Morgan (que também era matemático) e Peirce. A lógica das relações ocupa-se, como o nome indica, com relações entre conjuntos de objetos: maior do que, menor do que, perto de, longe de, mais velho que, mais novo que, pai de, mãe de, irmão de, causa de, finalidade de, semelhança com, diferente de, etc. As relações podem abranger dois ou mais objetos, sendo binárias, ternárias, quaternárias, etc., dependendo do número de objetos abrangidos por ela. A relação mais conhecida é a binária, expressa na fórmula xRy, que significa: há uma relação entre x e y. As relações possuem propriedades calculáveis. Tais propriedades permitem diferenciar os vários tipos de relação, como por exemplo: ● relação transitiva: dados x, y e z e dadas xRy e yRz, há uma relação xRz. Por exemplo: x é maior do que y (xRy), y é maior do que z (yRz), x é maior do que z (xRz). Ou: (xRy) (yRz) (xRz) ● relação não-transitiva: dados x, y e z, e dadas xRy e yRz, não se pode ter xRz, embora haja uma relação entre x e z. Por exemplo: Pedro é pai de João (xRy), João é pai de Antônio (yRz), mas Pedro não é pai de Antônio, pois é seu avô; ● relação intransitiva: dados x, y e z e dadas xRy e yRz, não é possível determinar qual seria a relação entre x e z. Por exemplo: x é maior do que y (xRy), y é menor do que z (yRz), mas não podemos saber se x é maior ou menor do que z; ● relação de simetria: xRy é o mesmo que yRx. Por exemplo: a é igual a b, b é igual a a; Ou: (x)(y)(xRy) (yRx) ● relação de assimetria: quando se tem xRy não se pode ter yRx. Por exemplo: a é maior do que b e, portanto, não se pode ter b é maior do que a. Ou: ~(x)~(y)(xRy) (yRx) ● relação reflexiva: estabelece-se entre uma relação transitiva e uma relação simétrica. Assim, por exemplo, “x pode ver y” é reflexiva num mundo onde haja espelhos, onde “y pode ver x”. ● relação irreflexiva: estabelece-se entre relações intransitivas e assimétricas; ● relação inversa: uma relação é inversa (S) a uma outra relação (R), quando para todos os objetos x, y e z, verifica-se xRy, se e somente se houver ySx. É o caso, por exemplo, da relação “pai de” e “filho de”. Tanto a lógica dos predicados quanto a lógica das relações estão submetidas a uma lógica mais ampla, que é a das proposições ou do cálculo proposicional, pois a proposição é o campo da lógica propriamente dita. O cálculo das proposições consiste em estabelecer os procedimentos pelos quais podemos determinar a verdade ou a falsidade de uma proposição, de acordo com sua ligação com outra ou com outras. Os casos mais simples de cálculos de proposições referem-se à conjunção (“Pedro canta e Pedro dança”), negação (“Pedro canta. Pedro não canta”), disjunção (“Pedro canta ou Pedro dança”) e implicação (“Se Pedro canta, então Pedro dança”). O cálculo consiste em atribuir o valor “verdade” a uma das proposições, o valor “falsidade” à outra e inferir o valor da ligação entre elas. Para que se perceba que o conteúdo das proposições é irrelevante, só interessando sua forma, vejamos como são simbolizados os vários cálculos das ligações proposicionais: ● cálculo da conjunção e (símbolo da conjunção ) p q p q v v v v f f f v f f f f ● cálculo da negação não (símbolo da negação ~) p ~p v f f v ● cálculo da disjunção ou (símbolo da disjunção ) p q p q v v v v f v f v v f f f ● cálculo da implicação implica que (símbolo da implicação ) p q p q v v v v f f f v v f f v Um exemplo poderá nos ajudar a compreender como funciona o cálculo. Se dissermos: “Se Pedro é cearense (p) ou catarinense (q), então é brasileiro (r). Ora, Pedro não é brasileiro. Portanto, não é cearense nem catarinense”, teremos: (p q r) r ~p ~q ● cálculo da bi-implicação ou equivalência (símbolo da equivalência ) p q p q v v v v f f f v f f f v Esses cálculos constituem as matrizes, que são como tabelas que apresentam todas as situações possíveis que cada ligação associa a um par de proposições elementares p e q. CLIQUE AQUI PARA FAZER O DOWNLOAD DO ARQUIVO “DOC” QUE CONTÉM O TEXTO ACIMA. Convite à Filosofia De Marilena Chaui Ed. Ática, São Paulo, 2000. Unidade 5 A lógica Capítulo 4 Lógica e Dialética Vimos a diferença entre Platão e Aristóteles a respeito do papel da dialética no conhecimento. Vimos também a maneira como os estóicos e os medievais articularam lógica e dialética. Vimos, por fim, que a lógica moderna e contemporânea enfatizaram o formalismo lógico e aproximaram ao máximo lógica e matemática. Entretanto, entre o século XVII e o século XX, houve uma outra posição filosófica que, procurando superar as diferenças entre Platão e Aristóteles, de um lado, e recusando a identificação entre lógica e matemática, de outro lado, reuniu, mais uma vez, lógica e dialética. Trata-se da filosofia hegeliana, no século XIX. Para compreendermos a posição de Hegel, precisamos levar em consideração dois acontecimentos filosóficos alemães muito importantes: o idealismo crítico de Kant e o romantismo filosófico. Como já analisamos anteriormente, Kant, ao escrever a Crítica da razão pura e a Crítica da razão prática, havia estabelecido uma distinção profunda entre a realidade em si e o conhecimento da realidade. A primeira, dizia ele, é inalcançável por nosso entendimento, embora nossa razão aspire por ela, tendo criado a metafísica como conhecimento racional das coisas em si. Mas a metafísica não é possível: é uma ilusão (inevitável) de nossa razão. Conhecemos apenas o modo como a realidade se apresenta a nós (os fenômenos), organizada pela estrutura de nossa própria capacidade de conhecer, isto é, segundo as formas do espaço e do tempo, e segundo os conceitos ou categorias de nosso entendimento (substância, qualidade, quantidade, causalidade, atividade, passividade). Embora a realidade em si, isto é, a essência em si de Deus, da alma e do mundo, não possa ser racionalmente conhecida por nós, permanece, porém, como um ideal de nossa razão, que, fazendo dessas essências idéias puras, as coloca como fundamentos de nossa vida ética ou moral. A separação kantiana entre entendimento e razão, conceitos e idéias, fenômenos e realidades em si foi interpretada como separação entre sujeito e mundo, seres humanos e Natureza, espírito e Natureza. Como o sujeito e sua atividade de conhecimento, assim como sua atividade ética e política criam o mundo humano da Cultura, a separação kantiana foi interpretada como separação entre Cultura e Natureza. Os filósofos e artistas românticos alemães não aceitavam tal separação e buscaram caminhos pelos quais humanos e Natureza pudessem reunir-se novamente, ou, como diziam, pudessem “reconciliar-se”. Julgavam haver encontrado o caminho para isso nas Artes. Elas seriam o reencontro dos humanos e da Natureza, através da beleza e do sentimento estético ou da imaginação e da sensibilidade. Hegel, porém, recusou a solução romântica. Dizia ele que, no fundo, não tinha havido reconciliação alguma. Enquanto Kant coloca tudo no sujeito, os românticos haviam colocado tudo na Natureza, desejando fundir-se com ela por meio da imaginação e da sensibilidade. Os dois termos – Cultura e Natureza, sujeito e mundo, espírito e realidade – continuavam separados. Como reuni-los verdadeiramente? Como alcançar a verdadeira reconciliação? Respondeu Hegel: compreendendo que só existe o Espírito, que a Natureza é uma manifestação do próprio Espírito, uma exteriorização do Espírito, que a Cultura também é uma exteriorização do Espírito, manifestação espiritual, e que ambos serão reunidos e reconciliados na interiorização do próprio Espírito, quando este se reconhecer como a interioridade que se manifestou externamente como Natureza e Cultura. O movimento pelo qual o Espírito se exterioriza como Natureza e Cultura e pelo qual retorna a si mesmo como interioridade de ambas é a História, não como seqüência temporal de acontecimentos e de causas e de efeitos, mas como vida do Espírito. O que é o Espírito? É o verbo divino. Em grego: o logos. O que é a vida do logos? (a História)? É a lógica. Que é a lógica como vida do Espírito? É o movimento pelo qual o Espírito produz o mundo (Natureza e Cultura), conhece sua produção e se reconhece como produtor – é, portanto, o movimento da atividade de criação e de autoconhecimento do Espírito. É a ciência da lógica, entendendo-se por ciência não a descrição e explicação dos fatos e de seus encadeamentos causais, mas a atividade pela qual o Espírito se conhece a si mesmo ao criar-se a si mesmo, manifestando-se ou exteriorizando-se como Natureza e Cultura. Essa ciência da lógica é a dialética. O que é a dialética? Platão e Aristóteles, divergindo quanto ao papel da dialética no conhecimento, concordavam porém num ponto: a dialética é o logos dividido internamente em predicados opostos ou contrários, dividido internamente por predicados contraditórios. Ora, que fizeram Platão e Aristóteles? Consideraram que a realidade e a verdade obedecem ao princípio de identidade e expulsam a contradição. Esta é considerada irreal (do ponto de vista da realidade) e impossível (do ponto de vista da verdade), pois é irreal e impossível que uma coisa seja e não seja ela mesma ao mesmo tempo e na mesma relação. Em outras palavras, algo é real e verdadeiro quando podemos conhecer o conjunto de seus predicados positivos e afastar os predicados negativos contrários e contraditórios. Em Platão, a função da dialética era expulsar a contradição. Em Aristóteles, a função da lógica era garantir o uso correto do princípio de identidade. Ambos se enganaram, julga Hegel. A dialética é a única maneira pela qual podemos alcançar a realidade e a verdade como movimento interno da contradição, pois Heráclito tinha razão ao considerar que a realidade é o fluxo eterno dos contraditórios. No entanto, ele também se enganou ao julgar que os termos contraditórios eram pares de termos positivos opostos. A verdadeira contradição dialética possui duas características principais: 1. nela, os termos contraditórios não são dois positivos contrários ou opostos, mas dois predicados contraditórios do mesmo sujeito, que só existem negando um ao outro. Em vez de dizer quente-frio, doce-amargo, material-espiritual, natural-cultural, devemos compreender que é preciso dizer: quente-não quente, frio-não frio, doce-não doce, amargo-não amargo, material-não material, espiritual-não espiritual, natural-não natural, cultural-não cultural; 2. o negativo (o não x: não quente, não-doce, não material, não natural, etc.) não é um positivo contrário a outro positivo, mas é verdadeiramente negativo. Se eu disser, por exemplo, “o caderno não é a árvore”, esse não não é um negativo verdadeiro, pois o caderno e a árvore continuam como dois termos positivos. Esse não, escreve Hegel, é mera negação externa. Nesta, qualquer termo pode ser negação de qualquer outro. Assim, por exemplo, posso dizer: o caderno não é a árvore, não é a porta, não é João, não é a mesa, etc. O verdadeiro negativo é uma negação interna, como aquela que surge se eu disser, por exemplo, “o caderno é a não-árvore”, pois, aqui, o ser do caderno, a sua realidade, é a negação da realidade da árvore; o caderno é a árvore negada como árvore. Não tenho uma árvore que virou um caderno, mas uma árvore que deixou de ser árvore porque foi transformada em caderno. A negação interna é aquela na qual um ser é a supressão de seu outro, de seu negativo. A contradição dialética nos revela um sujeito que surge, se manifesta e se transforma graças à contradição de seus predicados. Em lugar de a contradição ser o que destrói o sujeito (como julgavam todos os filósofos), ela é o que movimenta e transforma o sujeito, fazendo-o síntese ativa de todos os predicados postos e negados por ele. Que é a lógica, vida do Espírito? É o movimento dialético pelo qual o Espírito, como sujeito vivo, põe ou cria seus predicados, manifesta-se através deles, nega-os e os suprime como termos separados dele e diferentes dele, para fazê-los coincidirem com ele. Os predicados não são, como na lógica formal e matemática, termos positivos inertes que atribuímos ou recusamos a um sujeito, mas são realidades criadas, negadas, suprimidas e reincorporadas pelo próprio sujeito, isto é, pelo Espírito. Se retornarmos agora ao nosso ponto de partida – a separação sujeito-mundo, Cultura-Natureza – poderemos compreender por que a ciência da lógica, tal como Hegel a concebe, é a reconciliação racional dos termos. O Espírito começa como um sujeito que se exterioriza no predicado Natureza, isto é, manifestando-se como coisa (substância, qualidade, quantidade, relações de causa e efeito, etc.). Ele é terra, água, ar, fogo, céu, astros, mares, minerais, vegetais, animais. Para conservar-se vivo, o ser natural (a coisa) precisa consumir os seres que o rodeiam: o Espírito como Natureza nega-se a si mesmo consumindo-se a si mesmo (os animais consomem água, plantas, outros animais, ar, calor, luz; as plantas consomem calor, água, luz; os astros consomem energia e matéria, etc.). Essa negação pelo consumo não é transformadora, pois ela se realiza para conservar as coisas. Entretanto, o Espírito se manifesta num outro predicado, a Consciência. Esta também busca conservar-se, mas, agora, o faz não pelo simples consumo das coisas naturais mas pela negação da mera naturalidade delas. O que é essa negação? Quando digo “Isto é uma montanha”, tenho a impressão de que me refiro a uma coisa natural, diferente de mim, existente em si mesma e com características positivas próprias. Entretanto, o simples fato de que chame uma coisa de montanha indica que ela não existe em si, mas existe para mim, isto é, possui um sentido em minha experiência. Suponhamos agora que eu pertença a uma comunidade politeísta, que acredita que os deuses, superiores aos homens, mas dotados de forma humana, habitem os lugares altos. Para mim, agora, a montanha não é mais uma simples coisa, mas a morada sagrada dos deuses. Imaginemos em seguida que somos uma empresa capitalista exploradora de minérios e que haja uma jazida de ferro na montanha. Como empresários, compramos a montanha para explorá-la. Novamente, ela deixou de ser uma simples coisa natural para tornar-se propriedade privada, local de trabalho e capital. Consideremos, por fim, que somos pintores. Nesse caso, a montanha não é nem morada dos deuses, nem propriedade privada capitalista, nem local de trabalho, mas forma, cor, volume, linhas, profundidade – um campo de visibilidade. Sob essas quatro formas: “isto é uma montanha”, “morada dos deuses”, “jazida de minério de ferro/propriedade privada/capital” e “campo de visibilidade”, a montanha como coisa natural desapareceu, foi negada como mera coisa pela consciência e pela ação humanas. Tornou-se não-coisa porque tornou-se montanha-para-nós, significação, ente cultural. Foi consumida-destruída-suprimida-negada pela Cultura. Em termos hegelianos, o Espírito negou-se como Natureza e afirmou-se como Cultura. Negou-se como ser-em-si, tornando-se ser-para-si. Deve-se compreender que a negação dialética não significa a destruição empírica ou material de coisas empíricas ou materiais, e sim a destruição de seu sentido imediato que é superado por um sentido novo, posto pelo próprio espírito. Ao reconhecer-se como movimento interno de posição, negação e supressão de seus predicados (S é Natureza; S é não-Natureza porque é Cultura), o Espírito reconhece-se como sujeito que se produz a si mesmo e que é o movimento de autoprodução de si mesmo (S é Natureza e Cultura porque é o Espírito). Nesse reconhecimento, reconcilia-se consigo mesmo; é, ao mesmo tempo, em si e para si. Como se observa, em Hegel, a lógica não é um instrumento formal para o bom uso do pensamento, mas é ontologia. CLIQUE AQUI PARA FAZER O DOWNLOAD DO ARQUIVO “DOC” QUE CONTÉM O TEXTO ACIMA.